sábado, 30 de janeiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA IV

(Munch)

- Nós formamos ainda o pequeno laço, o nó a prender ainda, dando-lhes realidade, as nossas recordações de família. Mas talvez dentro de pouco tempo ele se romperá, e tudo será dispersado pelo mundo, sem significação, sem o amor e o respeito que lhes dá vida, alma e finalidade. Elas nos prendem, nos fazem companhia, e representam o nosso lar, mesmo de empréstimo, mesmo precário e devido unicamente à caridade dos que nos acolhem, e são o nosso apoio, o nosso arrimo... mas, tudo isso porque sabemos, porque elas viveram conosco, e ainda guardam as marcas de mãos amadas, já desaparecidas da memória dos outros.
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- Eu estou só – tentou ela explicar, e sentia ao mesmo tempo toda a humilhação de quem se confessa a alguém inferior ao seu próprio mal – já não posso mais saber o significado de certas palavras, para os outros tão claras e luminosas... Estou fora de tudo que tornaria possível minha vida e faria minha conduta ser aceita por todos, para me deixarem tranqüila.
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Os dias, os meses e os anos se escoaram em seu ritmo sempre igual, na ampulheta do silêncio, da renúncia e da serena tristeza sem remédio... As armadilhas sutis do nada, do ausente e do real perdiam-se na corrida implacável do tempo, e a casa, na desordem estática de seus quartos numerosos, das salas em grandes espaços, os terreiros calcinados pelo sol, as senzalas silenciosas e indecifráveis, a floresta invasora e tenaz, com seu horror sombrio, onde as serpentes adormeciam agora em paz, livre das línguas abrasadoras e dos turbilhões acres das queimadas, dos machados desumanos que despedaçavam suas árvores seculares ainda intumescidas de seiva poderosa, tudo caminhava em atropelo, na cegueira de sua marcha.
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Entretanto para Carlota, tornada outra mesmo em seu vulto, a vida se tornara um rio de sombra, rápido e profundo, a deslizar invencivelmente por entre margens crepusculares, e ela conseguira fazer de tudo um movimento, um instante eterno. Refugiada no silêncio como a única solidão possível, ela compreendia agora a linguagem de sua casa e dos objetos que a compunham, na impossível reconciliação consigo mesma, na transposição de seu eu diante da eternidade de Deus, protegida por sua vontade que aceitara as suas próprias dimensões.

A menina morta. Ed. José Olympio.

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