terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA II

(Munch)
Devia ser agora uma época nova, em que já não poderiam fazer nada por suas próprias mãos, e teriam sempre de recorrer aos outros, para os mais simples atos de suas vidas. Pois nem sequer carregar a menina conseguiam elas, as duas ao mesmo tempo, quando a tinham erguido ao colo mil vezes, com facilidade, colhendo-a do chão como uma grande flor muito fresca e agitada!... Tiveram de colocar depressa o fèretrozinho no estribo da vitória, o primeiro ponto de apoio que lhes surgiu, para descansarem um pouco do esforço tão repentino que haviam feito, e entreolharam-se, de novo, geladas da lembrança de que seria necessário abri-lo lá dentro da igreja, quando se realizassem as últimas cerimônias religiosas, antes do sepultamento. Ao tirarem a tampa, ainda presa com os laços de fita branca por elas mesmas atados, quando abrissem o cadeado que a prendia solidamente, e cuja chave Dona Virgínia escondera no seio, que iriam ver? Surgiria diante delas um rosto inchado, deformado pelo calor e pela podridão que decerto já se procedia ali dentro, no afã de transformar o anjo que elas tinham vestido e perfumado com água de alfazema em um monstro repelente? E balbuciaram ao mesmo tempo, muito baixinho, com as gargantas apertadas por mãos invisíveis e cruéis:
- Não... não é possível!
____________________

O padre, que ouvira o carro parar, e as vozes que se erguiam nervosas, viera para a porta da igreja e observava a cena sem um gesto, como se tivesse receio de tocar naquele caixão, onde tantas e tão desencontradas tristezas se escondiam, e decerto nunca teriam consolo.
Quando se aproximou das escadas o humilde cortejo, com sua estranha confusão de cativos e de senhoras envoltas em sedas negras, ele não o esperou no portal, foi para o interior do templo, e ficou em pé em silêncio diante do altar.
____________________

A matriz fechou-se. A escuridão a invadiu de um só golpe e formou-se o bloco negro, impenetrável de treva e de silêncio... Pouco a pouco um raio de luz tremeu e infiltrou-se pelas frinchas da porta lateral onde o sol batia de chapa na madeira já carunchada sob a pintura cor de oca toda ressequida e estalada e difundiu ondas doces e longas de claridade, transformando a treva que parecia invencível em penumbra onde levemente surgiam os vultos dos santos, dos confessionários e dos grandes bancos. Aqui e ali um reflexo respondia ao toque luminoso e fazia reluzir pontos de luz móvel como silenciosos vaga-lumes sob a abóbada das árvores lá na floresta, que se acendiam e apagavam trêmulos e deles seria difícil distinguir a pequena chama avermelhada do lampadário de prata que velava junto do Santíssimo. Bem perto dele estava a pedra com os sinais muito novos ainda do reboco e da argamassa que tinham sido postos para calafetar o carneiro onde fora encerrado para sempre o corpo da menina morta.
___________________

O templo inteiro recolhia-se em seu próprio viver e sua alma formada pelas centenas de preces, de suspiros e de gritos de angústia, de confidências e de súplicas ditas ora com imperioso desespero ora em ciciar humilde, concentrava-se naquela harmonia pobre e parecia subir no ar a desvanecer-se no céu onde as neblinas do dia já bem avançado estendiam amplo véu de crepe. A menina era agora levada para o alto com tudo que a cercava naquela alba secreta e formava assim grande esquife cheio de oferendas e promessas sagradas.

A menina morta. Ed. José Olympio

Nenhum comentário:

Postar um comentário