domingo, 10 de janeiro de 2010

CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA

(Munch)
As árvores estavam tão pesadas de folhagens e de parasitas que se curvavam sobre a estrada, debruçando-se de tal forma que havia ali espesso caramanchão, interminável túnel verde opulentado de flores coloridas, e em todo ele reinava a meia-luz roxa entremeada de amarelo do sol coado pelos galhos, emaranhados em gestos de braços amigos. A terra, nesse lugar, onde fora aberta a extensa alameda da entrada do Grotão, era arenosa e quase rosada e sugava toda a umidade ali acumulada. Depois das grandes chuvas, em vez dos lameiros escuros e de sinistra aparência dos outros caminhos, apresentava-se fresca e limpa, como se o temporal apenas a tivesse lavado. Se não fossem as grandes gotas d’água, despendidas de súbito das folhas em golpes de chuvisco, que as multiplicavam, muitas vezes quando o céu estava já límpido e muito alto, ninguém diria terem passado por ali as verdadeiras trombas habituais no vale do rio Paraíba. Os claros-escuros da abóbada assim formada, em claustro sem fim, apoiado nas colunas das árvores em dórico severo, davam qualquer coisa de irreal a tudo, naquela manhã muito clara, e o mundo esfumava-se em tons de arte e de artifício, que só mesmo a natureza sabe dar, quando imita a si mesma, para disfarçar a sua verdade demasiado rica e forte.
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- Está tudo pronto, meu Senhor – disse o rapaz, e abaixou a cabeça, para que não fosse vista a sua boca trêmula, os lábios grossos reluzentes, tornados ainda mais escuros pela pressão dos dentes alvíssimos. – Foi tudo feito conforme o meu Senhor mandou, e minha Sinhá está à espera, no quarto dela.

O fazendeiro apeou com sua poderosa agilidade de animal sadio, e seu corpo tornava belas as suas roupas pesadas e impróprias para o campo. Subiu os breves degraus do alpendre que dava entrada para a casa, do lado do terreiro, e ninguém pode perceber o leve recuo que teve, ao dar com os quatros candelabros acesos, guarnecidos de velas enormes em seus braços trabalhados. Eram de cinco luzes cada um, mas a Senhora os escolhera para serem postos em cada canto da mesa coberta de veludo vermelho, e apesar das freiras orantes esculpidas em cada uma das faces de suas bases, davam ar de festa suntuosa à sala, de grande banquete, à espera talvez das pessoas imperiais...

Mas não era refeição pomposa que esperavam, e sim o caixão que só chegava agora, tendo dentro o corpo da menina morta, coberta pelo vestido de brocado branco, de grandes ramagens de prata onde brilhavam os tons azulados e cinzentos, coroado de pequeninas rosas de toucar, feitas de penas levemente rosadas e postas sobre seus cabelos curtos, cortados rente da cabeça. As mãos tinham sido cruzadas sobre o colo, bem baixas, quase junto da cintura, mas os dedos eram tão polpudos ainda, apesar da cor lívida que os cobrira, tornando-os quase transparentes, que se tinham separado, e formavam um gesto de espanto, desmentido pela expressão extremamente pura e ausente do rosto. A verdadeira Sinhá-pequena, via-se, não estava ali, partira para muito longe, e viajava em altas nuvens, muito distante, e apenas seu vulto jazia sobre a mesa, esquecido...

O Senhor entrou e parou diante dela, sem conseguir derramar uma só lágrima. As pessoas ajoelhadas em torno murmuravam preces e não o olharam, nem fizeram qualquer movimento indicativo de terem notado sua chegada.

Nas pontas dos pés, com o chapéu seguro junto ao peito, repetiu maquinalmente o mesmo sinal de respeito de seus escravos diante das imagens do Oratório, que passavam à frente dele medrosos, fazendo-se pequenos, para que Deus não visse toda extensão de sua miséria, tão grande que a julgavam indigna de seus divinos olhos...
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Prima Virgínia, como todos a chamavam, ajoelhou-se bem junto da mesa, e isolou-se em suas orações, depois de ter ouvido o seco e áspero “agradecida”, quando fora até o quarto da Senhora e avisara com voz muito tremida estar tudo pronto.

- O nosso anjinho já está vestido e preparado na sala do Oratório – dissera ela, apoiada à porta, do lado de fora, do quarto dos Senhores, e entrecortada as frases com soluços que deviam ser ouvidos lá dentro. Ficara tão entretida com o papel que representava, naquelas dramáticas circunstâncias, que se esquecera por momentos de sua dor verdadeira, e chorou lágrimas artísticas, sem a menor correspondência com o que se passava em seu coração e em seu espírito. A voz da fazendeira, ao agradecer-lhe, fora tão cortante, que desfizera qualquer veleidade de continuar a cena dilacerante, cujo seguimento seria a aparição da mãe desgrenhada, arfante de dor, descuidada de qualquer artifício. A palavra seca ouvida e a convicção de que a porta não seria aberta, para receber a sua visita, fizeram-na cair em si e olhar para sua própria imagem com mordente autocrítica. Teve ímpeto de esbofetear o próprio rosto, pois traira de forma irrisória a memória da criança que fora a sua alegria sem mistura, o seu carinho sem segundas intenções. Tinha sido o seu amor mais puro, aquele que dedicara à menina, e por ele sentia-se redimida de todas as intenções amargas e muitas vezes sangrentas que a tinham agitado em sua vida, de todos os crimes que cometera no recôndito de sua alma, atrás de seus olhos e de sua boca sorridentes. Como ousava agora fingir o que sentia cruelmente, com profunda realidade? Essa era a pior das humilhações, e não poderia suportá-la diante de seu tribunal íntimo, onde poucas vezes pudera perdoar seu gênio inquieto, seu coração confuso exaltado.

A menina morta. Ed. José Olympio

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