domingo, 31 de janeiro de 2010

UM POEMA DE RAIMUNDO CORREIA

(Marc Chagall)
NUVEM BRANCA

Dizei-me: é ela a noiva casta e pura,
Que no alvor dessa nuvem rutilante,
Passa agora? Dizei-me, neste instante,
Turbilhões de translúcida brancura;

Colar, broches de perolas e opalas;
Gaza que, em níveos flocos, por formosas,
Rijas pomas de mármore, ondulosas
Curvas e espáduas de marfim, resvalas...

Dizei-me, branca, virginal capela;
Nítida espuma de nevadas rendas;
Alvos botões de laranjeira; prendas
Simbólicas do amor; dizei-me: é ela?

É ela a noiva? É mesmo, ou prazenteiro,
Seu doce olhar? Sorri alegre, ou chora,
Seu semblante gentil oculto agora
Do espesso véu no altíssimo nevoeiro?

É ela, sim! Su’alma, entre os fulgores
Das claras tochas cândidas e ardentes,
Nas querúbicas asas transparentes,
Voa, festiva, a um tálamo de flores...

Mistérios nupciais, só vos devassa
Um louco amante! Ao seu olhar ansioso
Velais debalde o arcanjo, o astro radioso
Que, dentro dessa nuvem branca, passa...

DOIS POEMAS DE JULIO RODRIGUES CORREIA

(Ismael Nery)




A profundeza abissal da palavra

declamada

ecoa nítida na linguagem abstrata

das mãos

(gestos prontos),

e o atrito dos dias

confunde as cicatrizes

do tempo,

derramado sobre a mesa

o poema ignora nas pálpebras

o pesadelo do sonho.



A noite
de ruídos

e latidos

soçobrou

ao peso

e domínio

da chuva

torrencial.

E na plangência

do velório

havia no olhar

do morto

uma manifesta

reprovação

contra a vida.

sábado, 30 de janeiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA IV

(Munch)

- Nós formamos ainda o pequeno laço, o nó a prender ainda, dando-lhes realidade, as nossas recordações de família. Mas talvez dentro de pouco tempo ele se romperá, e tudo será dispersado pelo mundo, sem significação, sem o amor e o respeito que lhes dá vida, alma e finalidade. Elas nos prendem, nos fazem companhia, e representam o nosso lar, mesmo de empréstimo, mesmo precário e devido unicamente à caridade dos que nos acolhem, e são o nosso apoio, o nosso arrimo... mas, tudo isso porque sabemos, porque elas viveram conosco, e ainda guardam as marcas de mãos amadas, já desaparecidas da memória dos outros.
___________________

- Eu estou só – tentou ela explicar, e sentia ao mesmo tempo toda a humilhação de quem se confessa a alguém inferior ao seu próprio mal – já não posso mais saber o significado de certas palavras, para os outros tão claras e luminosas... Estou fora de tudo que tornaria possível minha vida e faria minha conduta ser aceita por todos, para me deixarem tranqüila.
___________________

Os dias, os meses e os anos se escoaram em seu ritmo sempre igual, na ampulheta do silêncio, da renúncia e da serena tristeza sem remédio... As armadilhas sutis do nada, do ausente e do real perdiam-se na corrida implacável do tempo, e a casa, na desordem estática de seus quartos numerosos, das salas em grandes espaços, os terreiros calcinados pelo sol, as senzalas silenciosas e indecifráveis, a floresta invasora e tenaz, com seu horror sombrio, onde as serpentes adormeciam agora em paz, livre das línguas abrasadoras e dos turbilhões acres das queimadas, dos machados desumanos que despedaçavam suas árvores seculares ainda intumescidas de seiva poderosa, tudo caminhava em atropelo, na cegueira de sua marcha.
___________________

Entretanto para Carlota, tornada outra mesmo em seu vulto, a vida se tornara um rio de sombra, rápido e profundo, a deslizar invencivelmente por entre margens crepusculares, e ela conseguira fazer de tudo um movimento, um instante eterno. Refugiada no silêncio como a única solidão possível, ela compreendia agora a linguagem de sua casa e dos objetos que a compunham, na impossível reconciliação consigo mesma, na transposição de seu eu diante da eternidade de Deus, protegida por sua vontade que aceitara as suas próprias dimensões.

A menina morta. Ed. José Olympio.

UM POEMA DE RUY ESPINHEIRA FILHO

(Edward Hopper)
CANÇÃO DAS CINZAS DA TARDE

As cinzas da tarde descem
sobre o horizonte que arde
em agonia, e o que tecem
vem das cinzas de outra tarde.

Lembras-te, amor? Não te lembras.
És esquecimento e calma.
E entre as coisas que deslembras
está o que eu chamava alma

em mim, e que hoje também
se esquece de si, cansada
de se sonhar e ninguém
sonhar do seu sonho. Nada

foi colhido dessa hora
senão o vê-la passar.
Olho estas cinzas de agora
apagando as luzes do ar

– eu, aqui, sem quem me guarde
de ressentir sempre, assim,
quando agoniza uma tarde,
esta história que, enfim,

jaz nas cinzas de outra tarde
(de outra tarde – e de mim).

Poesia Reunida. Ed. Record

UMA PAUSA: POEMA DE LARA BARROS

(Eduardo Fiel)


Um intervalo para almoço, uma hora digerindo peças orgânicas; um intervalo para o banho, despindo-se, removendo o superflúo; um intervalo para o sono, trinta minutos descansando as magras pálpebras, um intervalo para as palavras, a troca de olhares silencia a disseminação de verbos; um intervalo para a saudade, porém, o coração não costuma seguir regras, em meio a tantos intervalos, tantas idas e vindas, findo o corredor temporal, da janela ouvi-se a voz da bela:

-Um intervalo para o amor, eu vos suplico!

sábado, 16 de janeiro de 2010

ENTREVISTA COM O ARTISTA PLÁSTICO EDUARDO FIEL



1- Como ocorreu seu contato inicial com as artes plásticas?

Bem, desenho desde sempre. Meu primeiro contato com óleo sobre tela foi em 1996 mas profissionalmente em 1999.

2- Fale sobre a estética realista que você apregoa em sua obra.

Penso que a estética no realismo é orientada pelo bom senso. Para mim, a estética, a técnica e o contexto são imprescindíveis tanto no processo criativo quanto na produção artística.

3- O que é arte para Eduardo Fiel?

Arte é uma oportunidade. Oportunidades são presentes, são dádivas em qualquer lugar, em qualquer tempo. A oportunidade é um poder transformador, ascendendo uma luz de significado no mero existir. Não é algo que se possa desperdiçar.

4- Fale sobre a temática do nu em suas telas.

Nu feminino com sobreposições de releituras de grandes artistas em diferentes áreas do corpo. Uma série de quadros que teve início em 2004.

5- Em um país como o Brasil, onde a questão da sensualidade é explorada muitas vezes de forma banal, o que faz com que a dimensão do nu explorada por você em suas telas torne-se uma manifestação artística?

A nudez que eu abordo é a condição humana. A temporalidade do existir sentida na pele, da ponta dos pés aos fios de cabelo. É, com efeito, uma nudez que convida o observador a se “despir de preconceitos” e ao despertar da consciência sobre a verdade nua do que somos feitos.

6- Quais são suas influências nas artes plásticas?

Tento estar acordado para tudo. Isso é um exercício realista. Mas ouço algo como New Order, U2, The Smiths enquanto reflito sobre Bouguereau em dias nostálgicos, Blues enquanto me aconselho com Caravaggio em noites circunspectas, jazz com Ingres para uma happy hour, um Pablo pop para abstrair. Todos têm sua hora e lugar. Influência é uma combinação de fatores em um horizonte de eventos.

7- Como você vê o atual panorama das artes plásticas no Brasil? Quais nomes você destacaria?

O Brasil é um labirinto cultural. A arte desenvolve-se dentro do possível segmentada e em diferentes direções. Gerar mais oportunidades seria um bom começo para artistas se destacarem segundo seus méritos e suas propostas.

O REALISMO DE EDUARDO FIEL


O REALISMO DE EDUARDO FIEL II


O REALISMO DE EDUARDO FIEL III


Nu, como preparado para a entrada de uma só pessoa. E quem entrasse se transformaria num “ela” ou num “ele”. Eu era aquela a quem o quarto chamava de “ela”. Ali entrara um eu a que o quarto dera uma dimensão de ela. Como se eu fosse também o outro lado do cubo, o lado que não se vê porque se está vendo de frente.

Clarice Lispector

O REALISMO DE EDUARDO FIEL IV



Sonharás uns amores de romance, quase impossíveis. Digo-lhe que faz mal, que é melhor contentar-se com a realidade, se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.

Machado de Assis

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

(Marc Chagall)
15 /01 /2010

A Marta dos Reis Valeriano

Como o vento, uma canção reincidente.
Afloram presságios, intentos.
Cálido amparo, minúcia do tempo.
– Instância premente de amor.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O REALISMO DE EDUARDO FIEL V

Prece

Escutei o silêncio meu amor
da sua oração, celebrando a vida
num altar de espelhos.
Senti na sua boca
a ressurreição da carne
comungada num beijo.
Em devota posição, seu amor,
meu amor, me provaste de joelhos.

CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA III

(Munch)

Por entre os arbustos do jardim que ficava sob as janelas dos quartos de dormir via-se passar lentamente na luz indecisa da manhã, parando aqui e ali, uma moça feia e vestida de luto. O dia surgira timidamente, envolto em grandes nuvens muito brancas e enoveladas no horizonte em grandes reservas, vindas de longe, de grande batalha fantástica cujo canhoneio de velhas peças de bronze cessasse subitamente, sustido por mão divina, e tudo parara até mesmo o céu. Trazia grande cabaz tecido de palha sem tampa e nele depositava devagar as flores que colhia com extremo cuidado, para evitar que se perdesse uma folha ou qualquer pequeno ramo que fosse, das plantas vergadas quando tentava torcer as hastes mais resistentes.
___________________

O canto dos pássaros, àquela hora ainda abrigados nas copas das árvores, chegava-lhe aos ouvidos em música longínqua, muito calma, e os mugidos dos bois que eram levados para o pasto depois do exame e do tratamento ao qual deviam ser submetidos todas as madrugadas, faziam um fundo majestoso e solene ao cântico da natureza mal desperta que lhe embalava o coração e a fazia respirar amplamente, como se quisesse se integrar naquela festa de saúde e de força.

Instintivamente, sem o perceber, ela murmurava as orações que devia dizer lá na Capela. Prometera bem no íntimo de sua alma rezá-las todos os dias para livrar-se dos sentimentos estranhos que sentia ocultos dentro de si, aprisionados pelo próprio terror por eles inspirado, mas que sabia estavam bem vivos e latentes, tal tumor maligno a espera de instante propício para irromper sem piedade e matar...

Fechava os olhos e sacudia a cabeça para negar a verdade que a acompanhava por toda a parte, e muitas vezes sua respiração se tornava precipitada e ofegante fazendo com que olhassem com admiração e desconfiança, pois parecia de súbito extremamente cansada como se tivesse vindo de muito longe, apesar de ter estado sempre no mesmo lugar. Mas agora estava esquecida, e o sorriso que lhe entreabria os lábios era triste, cheio de ternura, pois formava aos poucos o projeto de fazer com aquelas rosas desabrochadas e as pequeninas dos buquês-de-noiva, grande grinalda muito linda igual às que via sempre de porcelana mate, suntuosas e muitos compostas, guardadas em grande caixas de papelão enviadas de Paris e que lá estavam em depósito na arrecadação, à espera do Dia de Finados. Aquelas, com sua pompa um pouco fria, com as cores desmaiadas do colorido artístico eram bem próprias para a ornamentação arrogante das sepulturas dos senhores, porém a coroa que iria fazer, muito frágil, efêmera e bela, não teria outra igual para a pedra da parede onde havia apenas escrito à tinta o nome da menina morta.

A menina morta. Ed. José Olympio

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

UM POEMA DE NYDIA BONETTI




VELHAS ÁRVORES

observando a velha árvore pude ver tão claro (manifesto)
que ela tem corpo e alma (como tudo que vive)
tronco (matéria) que se eleva rumo ao infinito (sol)
galhos (braços) que se estendem sobre a avenida (vida)
e a alma
sob
(raiz)

DOIS POEMAS DE ORIDES FONTELA

(Enrico Bianco)
NOTÍCIA

Não mais sabemos do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão.

ROTA

Há um rumo intacto, uma
absoluta aridez
na ave que repousa. Nela
o repouso é a rota: não há mais
necessidade de vôo.

Poemas do livro Poesia reunida. Ed. 7 letras Cosacnaify

UM POEMA DE DORA FERREIRA DA SILVA

(Ismael Nery)

AGORA, AS COISAS SIMPLES

Agora, as coisas simples
antes cegas em nossos olhos.
E nada tocamos
mãos sobre as cordas mudas.
Se o som desperta é dele
o ouvido em flor. Mas corre o sangue
porque tudo é vivo sob as folhas mortas.
Sozinho se arma o acorde no piano
há surpresas na colheita deste ano, novos grãos na seara.
Sobre o braço em ângulo a fronte repousa
e o olhar reflete
uma flor.

(1994)

Do livro Poesia reunida. Ed. Topbooks

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA II

(Munch)
Devia ser agora uma época nova, em que já não poderiam fazer nada por suas próprias mãos, e teriam sempre de recorrer aos outros, para os mais simples atos de suas vidas. Pois nem sequer carregar a menina conseguiam elas, as duas ao mesmo tempo, quando a tinham erguido ao colo mil vezes, com facilidade, colhendo-a do chão como uma grande flor muito fresca e agitada!... Tiveram de colocar depressa o fèretrozinho no estribo da vitória, o primeiro ponto de apoio que lhes surgiu, para descansarem um pouco do esforço tão repentino que haviam feito, e entreolharam-se, de novo, geladas da lembrança de que seria necessário abri-lo lá dentro da igreja, quando se realizassem as últimas cerimônias religiosas, antes do sepultamento. Ao tirarem a tampa, ainda presa com os laços de fita branca por elas mesmas atados, quando abrissem o cadeado que a prendia solidamente, e cuja chave Dona Virgínia escondera no seio, que iriam ver? Surgiria diante delas um rosto inchado, deformado pelo calor e pela podridão que decerto já se procedia ali dentro, no afã de transformar o anjo que elas tinham vestido e perfumado com água de alfazema em um monstro repelente? E balbuciaram ao mesmo tempo, muito baixinho, com as gargantas apertadas por mãos invisíveis e cruéis:
- Não... não é possível!
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O padre, que ouvira o carro parar, e as vozes que se erguiam nervosas, viera para a porta da igreja e observava a cena sem um gesto, como se tivesse receio de tocar naquele caixão, onde tantas e tão desencontradas tristezas se escondiam, e decerto nunca teriam consolo.
Quando se aproximou das escadas o humilde cortejo, com sua estranha confusão de cativos e de senhoras envoltas em sedas negras, ele não o esperou no portal, foi para o interior do templo, e ficou em pé em silêncio diante do altar.
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A matriz fechou-se. A escuridão a invadiu de um só golpe e formou-se o bloco negro, impenetrável de treva e de silêncio... Pouco a pouco um raio de luz tremeu e infiltrou-se pelas frinchas da porta lateral onde o sol batia de chapa na madeira já carunchada sob a pintura cor de oca toda ressequida e estalada e difundiu ondas doces e longas de claridade, transformando a treva que parecia invencível em penumbra onde levemente surgiam os vultos dos santos, dos confessionários e dos grandes bancos. Aqui e ali um reflexo respondia ao toque luminoso e fazia reluzir pontos de luz móvel como silenciosos vaga-lumes sob a abóbada das árvores lá na floresta, que se acendiam e apagavam trêmulos e deles seria difícil distinguir a pequena chama avermelhada do lampadário de prata que velava junto do Santíssimo. Bem perto dele estava a pedra com os sinais muito novos ainda do reboco e da argamassa que tinham sido postos para calafetar o carneiro onde fora encerrado para sempre o corpo da menina morta.
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O templo inteiro recolhia-se em seu próprio viver e sua alma formada pelas centenas de preces, de suspiros e de gritos de angústia, de confidências e de súplicas ditas ora com imperioso desespero ora em ciciar humilde, concentrava-se naquela harmonia pobre e parecia subir no ar a desvanecer-se no céu onde as neblinas do dia já bem avançado estendiam amplo véu de crepe. A menina era agora levada para o alto com tudo que a cercava naquela alba secreta e formava assim grande esquife cheio de oferendas e promessas sagradas.

A menina morta. Ed. José Olympio

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

DOIS SONETOS DE RAIMUNDO CORREIA

(Enrico Bianco)

SAUDADE

Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito coche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os ouropéis mais finos...

Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, bandeiras desfraldadas,
Girândolas, clarins, atropeladas
Legiões de povo, bimbalhar de sinos...

Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;

Em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia, e chora, como Jeremias,
Sobre a Jerusalém de tantos sonhos!...


FASCINAÇÃO

Todo o teu ser contemplo agora; e é quando,
Só para o contemplar até prescindo
Do meu; e enquanto o meu se vai sumindo,
Vai o teu aos meus olhos avultando...

Assim quem vai o píncaro galgando
De uma alta serra, do horizonte infindo,
Nota que, à proporção que vai subindo,
Se vai em torno o círculo ampliando...

E, ínfimo em face da amplidão tão grande,
Fosco, a pupila com pavor expande...
Abaixo mares vê, selvas, cidades,

Montanhas... E até onde o olhar atinge,
À imensidade esplêndida que o cinge,
Vê ligarem-se mais imensidades...

domingo, 10 de janeiro de 2010

UM POEMA DE WILLIAM CARLOS WILLIAMS

SOLSTÍCIO

O rio está cheio
O tempo está maduro
Esqueça os pensamentos assassinos

Sem folhas nas árvores
Um sol pálido escurece
a terra congelada

Quietude reina
Sem pássaros, sem vento
O dia mais curto do ano

é favorável
__________

SOLSTICE

The river is full
The time is ripe
Give murderous thoughts rest

No leaves on the trees
A mild sun darkens
the frosty earth

Quietness reigns
No birds, no wind
The shortest day of the year

is favorable

Tradução: Virna Teixeira

CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA

(Munch)
As árvores estavam tão pesadas de folhagens e de parasitas que se curvavam sobre a estrada, debruçando-se de tal forma que havia ali espesso caramanchão, interminável túnel verde opulentado de flores coloridas, e em todo ele reinava a meia-luz roxa entremeada de amarelo do sol coado pelos galhos, emaranhados em gestos de braços amigos. A terra, nesse lugar, onde fora aberta a extensa alameda da entrada do Grotão, era arenosa e quase rosada e sugava toda a umidade ali acumulada. Depois das grandes chuvas, em vez dos lameiros escuros e de sinistra aparência dos outros caminhos, apresentava-se fresca e limpa, como se o temporal apenas a tivesse lavado. Se não fossem as grandes gotas d’água, despendidas de súbito das folhas em golpes de chuvisco, que as multiplicavam, muitas vezes quando o céu estava já límpido e muito alto, ninguém diria terem passado por ali as verdadeiras trombas habituais no vale do rio Paraíba. Os claros-escuros da abóbada assim formada, em claustro sem fim, apoiado nas colunas das árvores em dórico severo, davam qualquer coisa de irreal a tudo, naquela manhã muito clara, e o mundo esfumava-se em tons de arte e de artifício, que só mesmo a natureza sabe dar, quando imita a si mesma, para disfarçar a sua verdade demasiado rica e forte.
____________________

- Está tudo pronto, meu Senhor – disse o rapaz, e abaixou a cabeça, para que não fosse vista a sua boca trêmula, os lábios grossos reluzentes, tornados ainda mais escuros pela pressão dos dentes alvíssimos. – Foi tudo feito conforme o meu Senhor mandou, e minha Sinhá está à espera, no quarto dela.

O fazendeiro apeou com sua poderosa agilidade de animal sadio, e seu corpo tornava belas as suas roupas pesadas e impróprias para o campo. Subiu os breves degraus do alpendre que dava entrada para a casa, do lado do terreiro, e ninguém pode perceber o leve recuo que teve, ao dar com os quatros candelabros acesos, guarnecidos de velas enormes em seus braços trabalhados. Eram de cinco luzes cada um, mas a Senhora os escolhera para serem postos em cada canto da mesa coberta de veludo vermelho, e apesar das freiras orantes esculpidas em cada uma das faces de suas bases, davam ar de festa suntuosa à sala, de grande banquete, à espera talvez das pessoas imperiais...

Mas não era refeição pomposa que esperavam, e sim o caixão que só chegava agora, tendo dentro o corpo da menina morta, coberta pelo vestido de brocado branco, de grandes ramagens de prata onde brilhavam os tons azulados e cinzentos, coroado de pequeninas rosas de toucar, feitas de penas levemente rosadas e postas sobre seus cabelos curtos, cortados rente da cabeça. As mãos tinham sido cruzadas sobre o colo, bem baixas, quase junto da cintura, mas os dedos eram tão polpudos ainda, apesar da cor lívida que os cobrira, tornando-os quase transparentes, que se tinham separado, e formavam um gesto de espanto, desmentido pela expressão extremamente pura e ausente do rosto. A verdadeira Sinhá-pequena, via-se, não estava ali, partira para muito longe, e viajava em altas nuvens, muito distante, e apenas seu vulto jazia sobre a mesa, esquecido...

O Senhor entrou e parou diante dela, sem conseguir derramar uma só lágrima. As pessoas ajoelhadas em torno murmuravam preces e não o olharam, nem fizeram qualquer movimento indicativo de terem notado sua chegada.

Nas pontas dos pés, com o chapéu seguro junto ao peito, repetiu maquinalmente o mesmo sinal de respeito de seus escravos diante das imagens do Oratório, que passavam à frente dele medrosos, fazendo-se pequenos, para que Deus não visse toda extensão de sua miséria, tão grande que a julgavam indigna de seus divinos olhos...
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Prima Virgínia, como todos a chamavam, ajoelhou-se bem junto da mesa, e isolou-se em suas orações, depois de ter ouvido o seco e áspero “agradecida”, quando fora até o quarto da Senhora e avisara com voz muito tremida estar tudo pronto.

- O nosso anjinho já está vestido e preparado na sala do Oratório – dissera ela, apoiada à porta, do lado de fora, do quarto dos Senhores, e entrecortada as frases com soluços que deviam ser ouvidos lá dentro. Ficara tão entretida com o papel que representava, naquelas dramáticas circunstâncias, que se esquecera por momentos de sua dor verdadeira, e chorou lágrimas artísticas, sem a menor correspondência com o que se passava em seu coração e em seu espírito. A voz da fazendeira, ao agradecer-lhe, fora tão cortante, que desfizera qualquer veleidade de continuar a cena dilacerante, cujo seguimento seria a aparição da mãe desgrenhada, arfante de dor, descuidada de qualquer artifício. A palavra seca ouvida e a convicção de que a porta não seria aberta, para receber a sua visita, fizeram-na cair em si e olhar para sua própria imagem com mordente autocrítica. Teve ímpeto de esbofetear o próprio rosto, pois traira de forma irrisória a memória da criança que fora a sua alegria sem mistura, o seu carinho sem segundas intenções. Tinha sido o seu amor mais puro, aquele que dedicara à menina, e por ele sentia-se redimida de todas as intenções amargas e muitas vezes sangrentas que a tinham agitado em sua vida, de todos os crimes que cometera no recôndito de sua alma, atrás de seus olhos e de sua boca sorridentes. Como ousava agora fingir o que sentia cruelmente, com profunda realidade? Essa era a pior das humilhações, e não poderia suportá-la diante de seu tribunal íntimo, onde poucas vezes pudera perdoar seu gênio inquieto, seu coração confuso exaltado.

A menina morta. Ed. José Olympio

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O NU II

(Renoir)
Se o nu é menos um “tema” da arte do que um de seus territórios essenciais, é que o erotismo encontra na obra de arte sua necessária e legítima presença (até na arte mais modesta, tal como as esposas nuas pintadas no interior dos baús de casamento, na Idade Média). O nu suscita uma emoção específica; é com o nosso próprio corpo de carne que o percebemos, e as sensações que agitam nosso ser multiplicam, sublimando-a, a emoção erótica que o nu nos proporciona. Por sua formação, a glorificação dessa matéria viva com a qual o espectador também é modelado reconcilia-o com seu próprio corpo; contemplar um nu apazigua o desejo e confere ao olhar uma serenidade que a presença imediata de uma nudez proíbe; através da miragem da imortalidade de um corpo penetrado de espiritualidade, o nu parece revelar a ordem e a harmonia do mundo.

Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus

O NU

(Renoir)
Se a nudez é uma experiência naturalista, o nu é um conceito de arte. O rosto de um corpo despido deixa de ser o pólo de atração da vida expressiva, ele já não exprime tudo: perplexo, nosso olhar não sabe onde pousar. Além disso, ameaçada por suas próprias desordens e profundamente perturbadora, pois anuncia a embriaguez ou a violência dos prazeres possíveis que o cerimonial da roupa e dos adornos já não atenua, a nudez é reformulada pelo olhar da arte para se tornar o Nu. Adorno que aderiria à totalidade de um corpo, apresentação melódica da nudez remodelada, o nu artístico é enfim o corpo seguro de si mesmo e por isso oferecido sem reservas ao divino prazer da contemplação.

Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus


O homem mais capaz de destruir o lugar que ama é exatamente aquele que o ama por uma razão.

A questão não é que este mundo é triste demais para ser amado ou alegre demais para não o ser; a questão é que, quando se ama alguma coisa, a sua alegria é a razão para amá-la, e a sua tristeza é a razão para amá-la ainda mais.

G. K. Chesterton, Ortodoxia. Ed. Mundo Cristão

UM POEMA DE REGINA LYRA

(Edward Hopper)
INSTANTE PARADO

A vida torna-se um instante parado,
É preciso vê-la adiante.

Embarcou em palavras mortas,
Destacou os sem-importância.
Não notou o amor vivenciado,
Viu apenas o amor egoísta.
Nem tudo era maravilha,
Preso a uma ilha.

Ser solícito o amado,
É o desejo amparado
Pelo sentimento.
O mais era exagero,
Não precisaria jamais.

Poema do livro Entre-Nós. Ed. UFPB

A ARTE E A PERCEPÇÃO

(MONET)
Mais que um acontecimento, a experiência perceptiva de uma obra é a de um advento: advento de um mundo que começa a se organizar sob meus olhos e adquirir consistência.

Desenvolvendo seu tempo próprio e seu próprio espaço para neles fazer circular um sentido, a obra de arte produz a impressão de uma necessidade interna que também define a beleza. O verdadeiro lugar da arte instaura-se nessa separação entre o mundo em que a arte é produzida e o mundo produzido pela arte.

Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus

UM POEMA DE IACYR ANDERSON FREITAS


PASSAGEM

apenas isto: uma luz
que nos deixasse,

um sopro, algo
leve, imperceptível

até e, após,
um silêncio, um silêncio

tão profundo
que, dentro, ouvíssemos

um tambor, a própria
terra (agora posta

em corpo, agora
percutindo nos ossos,

em nosso corpo)
isto apenas

e o esquecimento
dos dias, a treva

consumida em treva
e assombro e cal,

nenhuma carta,
nenhum aceno,

somente o manto
escuro desses seixos

e o sigilo sob a terra
que fugia

Poema do livro Quaradouro. Ed. Nankin

UM POEMA DE CLAUDIO DANIEL


SILÊNCIO

para Duda Machado

A pedra;
o que não diz
em sua epiderme,
sua opaca tessitura
de areia e indiviso
tempo; a pedra –
(digo) (a não voz)
o silêncio em tuas
pupilas de pálida
lua, como chama
que se adensa
(mudez de sombra,
solilóquio de água
imóvel, em cisterna
ressecada); e então,
as palavras.

Do livro Figuras metálicas. Ed. Perspectiva