NO ÚLTIMO JULGAMENTO
Somente o amor e suas consolações. A minúcia das horas, o amparo dos dias. Em cada gesto, tributo ao tempo. Mãos que se unem em presença vivida. Lívido, incólume o olhar sobre o definitivo. As insinuações de outrora rememoradas em resignação, os equívocos destituídos de significação. No último julgamento não se prescinde da culpa. Uma rosa fenece sobre o estio. Para a consumação de todas as esperanças.
domingo, 28 de fevereiro de 2010
POEMA
UM SONETO DE CRUZ E SOUSA
TORTURA ETERNA
Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, ó luta secular, insana!
Que tu não possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.
Que tu não possas, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.
Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!...
Ah! que eu não possa eternizar as dores
Nos bronzes e nos mármores eternos!
Missal, Broqueis. Ed. Martins Fontes
sábado, 27 de fevereiro de 2010
MÁXIMAS OU AFORISMOS II
Amamos pouco quando satisfazemos nossos desejos, pois o amor não reside na posse e sim no desprendimento.
Amamos quando outorgamos ao outro o direito de ser si mesmo; portanto, de não ser apropriado.
Todo objeto de desejo é uma reclusão ao amor.
A insuficiência do homem advém do fato de que ele morre e de que nada pode ser feito ou remediado por aqueles que permanecem vivos.
Não raro, na iminência da morte consentimos em viver.
Se a morte possui uma dimensão trágica, essa reside no encerramento definitivo de todos os fatos, pois a vida não tolera dimensões definitivas.
As desgraças alheias pouco ou nada significam, visto estarem distantes do campo restrito de nossos sentimentos. Assim, o egoísmo impede que sejamos demasiado humanos.
A relevância de nossos problemas advém da percepção vaidosa dos mesmos.
Seríamos trágicos se tivéssemos a consciência de todos os fatos.
Um ideal de vida nem sempre corresponde às circunstâncias que o determina. O que explica a infelicidade de muitos.
Nunca amamos o suficiente para não precisarmos odiar.
Para além das verdades históricas encontra-se o homem.
É duvidoso crer no destino quando ele se torna um fardo ao fato de existirmos.
Duvidamos de nossas verdades quando elas não resultam em consolo às nossas desilusões.
A consciência do incerto é o resultado da razão em seu excesso de lucidez. Assim, as incertezas da vida não pertencem ao cotidiano.
Obs: aforimos de minha autoria protegidos por direitos autorais.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
POEMA
O IRREMEDIÁVEL
Porque agora atravessamos o horizonte fixo do silêncio. Como outrora a luz ilumina a esperança de certezas rudimentares. Cálido é o amor, simples como a água dos cântaros. Saciamos a sede do afeto remido. Do amparo exímio. Isentos da solidão sedimentada, da graça exclusa, de alguma forma antecipamos a recompensa de ser. A lucidez de persistir ante o irremediável, de acreditar ante a perda do que nunca possuímos derradeiramente. Caminhamos sobre o infinito de nossos passos.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
UM POEMA DE WEYDSON BARROS LEAL
Arde nos santos a certeza da Terra.
Sob a lua, a mesma lua, o chão. Aqui depositaram as lâminas.
Acre e suspensa sua imagem só – luz e solidão – onde não cabe o silêncio mais que a noite criada.
Longe das luzes a passagem dos carros evoca um futuro: é preciso manter os castelos, a história das casas – portas e janelas: – Outros meios compõem a próxima arquitetura.
Sinto o calor com seus beijos úmidos. Sua boca de água e fogueira.
A cidade guarda nas cinzas o sono das estrelas: sombras e réstias – palavras de minha infância.
Entre o céu e a curvatura da noite há pombas de pedra carregando cristais; –
e brilham seus pés sob a chuva branca.
Os ritmos do fogo, Ed. Topbooks
MÁXIMAS OU AFORISMOS
Na morte tudo nos remete à vida.
Morte: insulto predatório ao encalço dos homens.
Poucos são capazes de admitir a pequenez que os caracteriza. Muitos são aqueles que acreditam na ilusão de sua grandeza.
As virtudes não excluem os vícios, elas podem tanto rechaçá-los como realçá-los.
A verdade nos aflige quando a mentira reivindica o direito de ser justa.
Não raro, a falta de amor próprio tem como conseqüência a lisonja.
No amor elevamos e rebaixamos o que desejamos.
Para aqueles que foram felizes há um momento em que a morte se faz necessária.
Não saberemos do amor a sua verdade. Somente a sua condição: amar.
As contradições da vida não justificam os equívocos de quem vive.
O que louvamos nos outros são as prerrogativas de nossas mentiras.
Pelo desprezo também perdoamos.
A verdadeira amizade é aquela que não negligencia os limites da sinceridade.
Com o consentimento dos outros aceitamos nossas mentiras sem ferirmos nossa moralidade.
Porque amamos acreditamos ser amados.
Como cadáveres não sepultados a clamarem por enterro de alguma forma nossos erros nos acompanham.
Podemos ser impiedosos quando pautamos nossos desejos na indiferença de suas conseqüências.
Um sonho torna-se realidade tão logo passamos a acreditar na possibilidade de sua realização. O mesmo ocorre com o pesadelo.
De alguma forma somos punidos por nossos antepassados.
A deturpação da ordem natural é sempre uma irreverência para aqueles que fazem da mentira um modelo de vida.
A incapacidade de se decidir pela verdade não é senão a falência do ser humano em face do mal.
Se pudéssemos mudar o passado certamente nos tornaríamos escravos de todos os equívocos.
ROLAND BARTHES: A MÁXIMA
Roland Barthes, O grau zero da escrita. Ed. Martins Fontes
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
O ROMANCE CATÓLICO: LÚCIO CARDOSO - CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA II
Sem pressa, com a mesma timidez de quem desobedece ditames de uma lei oculta, inclinei-me e levantei a ponta do lençol. Foi a primeira vez que vi o rosto de um cadáver, e aquilo deu-me uma sensação estranha como se uma música longínqua, em acordes muito finos, vibrasse em meu espírito. Ah, seria impossível expressão humana modificar-se com maior rapidez: nela, de linhas tão suaves e perfeitas, tudo havia sido vincado com violência, desde os cílios alongados, um tanto excessivamente, até a testa branca, larga demais, e a curva acentuada das asas do nariz, positivando um aspecto inesperado de semita. E em torno desse rosto, a rigidez estabelecera uma aura intransponível. Bem se via que a morte não era uma brincadeira, que o ser estabelecido originalmente, e toscamente modelado em barro pelas mãos de Deus, ali irrompia de todos os disfarces, para se instalar onipotente em sua essência mais verídica. Bem se via também que tudo se achava definitivamente dito entre nós. Inúteis as palavras que haviam sobrado, os afagos que não haviam sido feitos, as flores com que ainda pudéssemos adorná-la. Libertada, repousava em sua pureza final. Ah, e inútil também tudo o que não fosse fúria e submissão. Sem resposta, como se nós, criaturas, nada mais merecêssemos senão o luto e a injustiça, tudo terminava ali. E o que existira não passara de um sonho, de uma magnífica e passageira ilusão dos meus sentidos. Nada conseguiria mais romper o duro peso que se acumulava sobre meu coração, e diante daquela ruína, já tocada pela corrupção, eu custava a reconhecer aquela que fora o objeto do meu amor, e nenhuma lágrima, nem mesmo de piedade, subia-me aos olhos.
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Morremos quase sempre da crueldade ignorada dos seres que nos cercam.
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Quem somos nós que assim passamos como espuma, e nada deixamos do que construímos, senão um punhado de cinza e de sombra? Debato-me, o coração me vem aos lábios: que é valido, que é invulnerável à fúria do tempo, qual o sentimento que não se esgota e não se ultraja?
Crônica da casa assassinada. Ed. Civilização Brasileira
GUSTAVO CORÇÃO: LIÇÕES DE ABISMO III
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Tentemos outras direções. A vida não é um poema; não tem a inteireza de um bailado; não se completa como a música. Mas será, quem sabe? uma coleção descontínua de momentos, com intervalos mais ou menos prolongados e mais ou menos insípidos. O conjunto será confuso, como as obras completas de um autor que tenha andado por caminhos diversos; mas os pedaços, os volumes, serão compreensíveis e razoáveis. Vem a morte e deixa um resto, como em gaveta de laborioso escritor que não teve tempo de rasgar seus abortos. Mas o que ficou, ficou.
Lições de abismo. Ed. Agir
JULIEN GREEN: ADRIENNE MESURAT II
Adrienne assistia a esses concertos há tanto tempo que já não sentia nenhum prazer especial. Tinha bom ouvido, o bastante para saber que os músicos eram medíocres, que nem sempre observavam o ritmo e que a qualidade dos instrumentos não fazia justiça ao virtuosismo dos compositores. Nesse dia, porém, desde os primeiros acordes sentiu uma estranha emoção. Sem dúvida os últimos acontecimentos de sua vida a tinham deixado mais sensível. Ouviu uma longa frase musical que se elevava lenta e preguiçosamente e, de súbito, passava a um ritmo cada vez mais acelerado. Sentiu-se atingida por uma voz que se dirigia a ela, numa linguagem que compreendia, e entre seu espírito e a orquestra estabeleceu-se essa comunicação misteriosa, essa espécie de diálogo secreto que é o mais poderoso encanto da música e que explica a sua influência sobre o coração humano. Adrienne escutava. Toda a alegria e toda a tristeza que se sucediam nos temas musicais, comunicando-se entre si, cortavam-lhe o coração e, ao mesmo tempo, traziam-lhe aos olhos lágrimas de prazer. Reconhecia-se nos ritmos diversos que eram como as batidas do seu coração. Lembrava-se da dor, da solidão e, na estrada nacional, do riso mais triste do que um soluço. Teve uma sensação de abafamento. Era como se num minuto estivesse revivendo todo o sofrimento dos últimos meses e a dor, expressa numa voz que não era a sua, parecia mais viva e mais real. Pela primeira vez ouvia a história da sua infelicidade e ela lhe pareceu apavorante. Talvez tivesse se habituado ao sofrimento, como a uma ferida incurável, e a música explicava tudo, todas as razões pelas quais devia continuar suportando.
Adrienne Mesurat. Ed. Novo Século
MARCIAL: EPIGRAMAS
34
Sem guardas, Lésbia, e sempre de portas abertas, tu fornicas e não ocultas as tuas escapadelas e deleita-te mais o voyeur do que o amante; não te dão gozo os prazeres se alguma coisa escondem. Uma prostituta afasta os curiosos com a cortina e a chave, e poucas fendas se vêem no bordel de Submémio. Ao menos aprende com o pudor de Quíone ou de Ias: até estas putas reles se ocultam nos túmulos. Acaso dura de mais te parece esta censura? Proíbo-te de seres surpreendida, Lésbia, não de seres fodida.
84
Quirinal não acha necessário ter esposa, embora queira ter filhos; e encontrou a forma de resolver o problema: fode as escravas enche a mansão e os campos de servos cavaleiros em casa nascidos. Quirinal é um verdadeiro pater familiae.
3
Sexto, não deves nada a ninguém, não deves nada , Sexto, confesso: só deve de verdade quem pode pagar, Sexto.
47
Foge, te aconselho, das arteiras redes de uma afamada adúltera, oh! tu, mais delicado, Galo, que as conchas de Citera. Confias nas nádegas? O marido não gosta de ir ao cu. Só faz duas coisas: dá-o a chupar ou fode.
54
Que suspeitas, Lino, tem de ti a tua mulher e em que parte ela te quer mais casto, com indícios bastante claros o provou, ao dar-te, por guarda, um castrado. Nada mais sagaz do que ela, nem mais malicioso.
56
Entre as gentes da Líbia, a tua mulher, Galo, tem má fama, devido à feia acusação de avareza desmedida. Mas é pura mentira o que se conta: ela não costuma receber tudo. Que costuma então? Dar tudo.
61
Quando as tuas faces floresciam de incerta penugem, a tua perversa língua lambia os homens mesmo a meio. Depois que a tua sinistra cabeça a repugnância dos cangalheiros e a aversão dos infelizes carrascos passou a merecer, usas de outro modo a boca e, tomado de desenfreada inveja, injurias todo o nome que te vem à cabeça. Agarre-se antes ao baixo-ventre tão malfazeja língua: é que, quando chupava, era mais pura.
32
Se posso fazer amor com uma velha – é tua pergunta, Matrínia. Até com uma velha eu posso, mas tu és uma defunta, não uma velha. Posso com Hécuba, posso com Níobe, ó Matrínia, desde que um ainda não seja uma cadela, desde que a outra ainda não seja uma pedra.
Tradução: Delfim Ferreira Leão, José Luís Brandão e Paulo Sérgio Ferreira.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
MINÚCIAS
O chafariz
envelhecido
outrora reluzente.
Espólios
do tempo.
II
Espalhadas
ao redor
do jardim,
as amoras.
Tênue
tapete
carmesim.
III
O poço d’ água
entre o canteiro
de hortaliças.
Tivemos sede
e bebemos.
IV
Sobre as telhas
da dispensa
galhos apodrecidos.
Prelúdio
da existência.
UM POEMA DE WILLIAM CARLOS WILLIAMS
SONG
beauty is a shell
scallops and
undying accents
CANÇÃO
beleza é uma concha
vieiras e
acentos eternos
Tradução: Virna Teixeira
UM POEMA DE PAUL ÉLUARD
Voir le silence, lui donner un baiser sur les lèvres et les toits de la ville seront de beaux oiseaux mélancoliques, aux ailes décharnées.
Ne plus aimer que la douceur et l’immobilité à l’ceil de plâtre, au front de nacre, à l’ceil absent, au front vivant, aux mains qui, sans se fermer, gardent tout sur leurs balances, les plus justes du monde, invariables, toujours exactes.
Le coeur de l’homme ne rougira plus, il ne se perdra plus, je reviens de moi-même, de toute éternité.
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Retornar a uma cidade de veludo e porcelana, as janelas serão dos vasos onde as flores, que terão deixado a terra, mostrarão a luz tal como ela é.
Ver o silêncio, beijar-lhe os lábios e os telhados da cidade serão dos belos pássaros melancólicos, de asas descarnadas.
Amar apenas a doçura e a imobilidade no olho de gesso, na fronte de nácar, no olho ausente, na fronte viva, nas mãos as quais, sem se fechar, guardam tudo sobre suas balanças, os mais justos do mundo, invariáveis, sempre exatos.
O coração do homem não ruborizará mais, não se perderá mais, eu volto de mim mesmo, de toda a eternidade.
Tradução: Virna Teixeira
domingo, 7 de fevereiro de 2010
POEMA
UM POEMA DE MURILO MENDES
Pelas curvas da tarde vem surgindo
A inefável palavra Agnus Dei.
Ouço balidos pelo mundo inteiro:
Matam o cordeiro branco redentor.
As armas do futuro desenhadas
Vejo no espaço, túmulos abertos:
Os balidos rebentam das gargantas
Até dos que inda estão para nascer.
De variadas maneiras matam o homem.
Matam a pureza, a paz, a liberdade,
Pelo cutelo, a bomba, a guilhotina,
Pelo silêncio, a fome, a solidão.
Fecha o leque de plumas o Oriente,
Abre o Ocidente o tanque de terror.
sábado, 6 de fevereiro de 2010
O ROMANCE CATÓLICO: LÚCIO CARDOSO - CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA
Crônica da casa assassinada. Ed. Civilização Brasileira
O ROMANCE CATÓLICO: JULIEN GREEN - ADRIENNE MESURAT
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Após algumas horas, acordou tão subitamente quanto havia dormido. Olhou em volta, mas a escuridão era completa e não conseguia nem ver o travesseiro branco. Lembrou-se então de uma poesia aprendida há muito tempo e as palavras lhe vieram aos lábios. Murmurou:
Foi durante o horror de uma noite profunda.
Jamais pensara no sentido dessas palavras e, agora que a lembrança as trazia do passado, pareciam-lhe revestidas de uma beleza poderosa e terrível. E Adrienne sentiu medo. Há realmente, nas primeiras horas de obscuridade, algo de calmo e seguro, mas, à medida que a noite avança e que todos os ruídos da terra se calam, a sombra e o silêncio adquirem um aspecto diferente. Pesa sobre tudo uma imobilidade sobrenatural, e nada descreve tão bem os momentos que antecedem a aurora como a palavra horror.
Adrienne Mesurat. Ed. Novo Século
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
DOIS POEMAS DE NYDIA BONETTI
o dia de repente desbota. o vento sopra poeiras antigas - gravetos, painas, folhas e flores de dente de leão. na casa em frente, lampiões seculares se agitam. enlouquecem os pássaros, cães se escondem, árvores alteradas dançam num balé convulsivo. mulher puxa depressa os meninos pra dentro, arranca a roupa do varal, fecha correndo portas e janelas, acende velas, prepara a palma benta pra queimar: a chuva vai chegar.
DESARVORADA
árvore antiga
GUSTAVO CORÇÃO: LIÇÕES DE ABISMO II
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Curioso é esse contraste: a morte é o que há de mais certo, a ponto de servir no modelo clássico de silogismo; e é por outro lado a ideia que mais nos custa admitir, e tanto mais custa quanto mais perto nos toca. É uma certeza que anda ao contrário das outras.
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Há pessoas que falam quase sempre de um modo caloroso, com indignação fácil e cólera pronta. A qualquer injustiça cerram os punhos e desatam a generosa paixão dos sanguíneos. Gosto de vê-los; mas em geral fico alheio ao tom maior de suas indignações. A mim o que mais fere, o que mais dói sãos os equívocos que vejo no mundo. Essa é minha triste dominante: uma exasperação do senso do ridículo. E só quem já viveu essa experiência é capaz de avaliar a dor aguda, penetrante, glacial, que permanentemente me faz companhia. Falam de um inferno de fogo; eu penso, às vezes, num inferno de gelo.
Lições de Abismo. Ed. Agir
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
CLAUDIO DANIEL: POEMA LETRA NEGRA
Fernando Pessoa
I
escuto escuro – sombras surdas –
no espaço espesso
lodo torvo
de um tempo esquivo
em que começo e recomeço
o pugilato
comigo mesmo
luta ou luto
que me cega e segue
como treva ou trava
ao vento curvo.
II
verde é o segredo
verde é o silêncio
escrito em cicatriz
escrito em anti-flor-de-lis
– para a necessária
abolição de mim –
III
estou morto e não-morto
vértebras ao inverso
letras tontas
de um nome incerto
vocábulo equívoco
desfeito em água
– para a necessária
abolição de mim –
escuto espesso – sombras mudas –
no escuro escuro.
IV
nada me aquieta
entre espectros
de palavras-coisas:
anêmonas trafegam
pensamentos rotos,
roídos até o muco
– eis a era desolada
de cortes e recortes
tempo-cutelo
no espaço lacerado
pele-de-lua violada
por línguas-gárgulas
lua-esfinge-macerada
por caninos cérberos:
tempo nigromante
– corvo corvo corvo
recrocitando escárnios.
V
“quando nada mais faz sentido” –
busco o mistério animal,
a ferocidade da noite:
deslizando por meus lábios,
ela se transforma, revoluta,
desentranhada, não me decifra,
não te devoro, abisma fábulas
na desordem dos cabelos;
entre pupilas, expandindo luas,
tensionando a pele, na cegueira dos mamilos.
VI
floresta de enganos, se me esmagam,
furiosos, com simulações,
é tua face que me escapa à pele;
se atravesso veredas infernais,
desalentado, paisagem de fraturas,
é apenas para encontrar-te,
tua imagem reversa é o meu labirinto.
VII
espaço vegetal, tempo lagarto:
mãos fluidas; voz movediça;
olhos de musgo, na pedra;
quem sou eu, nessa era líquida,
menos homem que número,
letra negra, fragmento do caos,
movendo-me à roda de teu nome?
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
O ROMANCE CATÓLICO: GUSTAVO CORÇÃO LIÇÕES DE ABISMO
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Este é o ponto de suprema importância: a harmonia, a composição exata, o contraponto das horas, que agora se tornou possível.
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Lá estão nos armários os dorsos imóveis das dez mil testemunhas que ouvi. Que me dissestes vós, ó gregos? Que me contastes vós, ó homens inquietos de meu tempo? Corro os olhos: lá vejo um título que me traz à memória uma análise austera, com cifras, com neologismos, leis, teoremas, colorários, para me provar que o homem vive de pão; acolá, duma lombada com letras de ouro, sai uma voz a dizer-me que não só do pão vive o homem. Economistas, profetas, historiadores, filósofos que continuam a dizer que viram mais longe, porque subiram em ombros de gigante, e filósofos que se obstinam em dizer que mais longe chegaram porque das bagagens antigas se alijaram; humoristas que choram escondidos, poetas que escondidos se riem; hagiógrafos, exegetas, hermeneutas, psicólogos, ensaístas; vozes pausadas, vozes ardentes, vozes minuciosas, vozes entrecortadas; quem de vós, quem se eu gritar me responderá, ó aprendizes angélicos!?
Lições de abismo. Ed. Agir