IVO BARROSO E A PROEZA DE TRADUZIR PEREC
W. J. Solha
Eis
que há cerca de um mês me chegou pelo Sedex um pacote enviado por Ivo Barroso.
Dentro da caixa, um exemplar de A Vida modo de usar - de Georges Perec. Ivo
traduzira o famoso romance editado pela Companhia das Letras em 1991, e o livro
saía novamente, agora, pela série Companhia de Bolso.
É
incrível o que Perec faz em quase dez anos de trabalho maluco, na criação desse
romance. Nem falo da matemática que aplicou na sua concepção, coisa que Osman
Lins fez por aqui em Avalovara, e que arquitetos e pintores têm utilizado em
todo o mundo, desde que Virgílio e Fidias, Leonardo e Piero della Francesa, Le
Corbusier e o grupo Section d´Or descobriram o calculado macete de que a
natureza se serve, através da série Fibonacci, para a reprodução animal ou para
a proporção ideal de uma concha ou a
disposição mais coerente das sementes de um girassol. Foram dez anos de
trabalho obsessivamente concentrado no registro de pormenores que nos cercam a
todos, com paralelo apenas, talvez, nos iguais quase dez anos que o pintor inglês
Richard Dadd levou, preso no
Departamento de Lunáticos do Bethlem Royal Hospital de Londres,
para pintar todos os detalhes da tela de 54 X 40 centímetros
intitulada Golpe de Mestre do Lenhador Mágico. Mas não exatamente. Embora
exímio contador de uma centena de pequenas estórias que há no romance (que ele
chama de romances), Perec faz com que seus milhares ou milhões de objetos de
cena tenham tanto realce no texto, quanto os desenhos dos papéis de parede, das
tapeçarias, das toalhas de mesa e dos vestidos que envolvem as figuras
retratadas pelo pós-impressionista Edouard Vuillard, ou mais: tudo isso
acrescentado de muitas jóias, flores, deteriorações e amarfanhamentos das
roupas, como os retratados do americano Ivan Allbright.
O
resultado é exaustivo, mas impressionante. Barroso sabia que eu iria gostar de
Perec e, ao ver meu entusiasmo, lá pela
página duzentos, disse-me que aguardasse o capítulo 74. Esse trecho, de fato, é
um dos mais fascinantes que li em toda a minha vida. Em Maquinaria do Elevador
– Machinerie de l´ascenseur – Perec, depois de descrever todo o edifício, desce
conosco a seus segredos inferiores, vasculhando tudo, acabando por nos levar,
com seu exacerbado realismo, para a mais
pura e - no caso – inesperada literatura à la Brueghel e Bosch..
Foi nesse
ponto da leitura que tive consciência completa do trabalho igualmente minucioso,
detalhista, perfeccionista de Ivo Barroso. Apenas com um Virgílio desse
poderíamos – em português - ir tão fundo
em La Vie mode
d´emploi. Somente com o poeta que escreveu
O Peixe de Neruda e enfrentou a
tradução de Baudelaire, Breton, Gide, Malraux, Romain Rolland, Rimbaud e
Yourcenar, além de Svevo, Shakespeare e Hesse, entre outros, poderíamos
sentir-nos tão à vontade entre tanta extravagância literária.
Ivo
jamais é traditore, apesar de me
lembrar o talentoso Ripley, que assume a personalidade de Dickie Greenleaf - imitando-lhe voz, assinatura e modo de se
vestir – até tomar seu lugar, como Matt Demon, nesse filme de Anthony
Minghella, toma o de Alain Delon de O Sol por Testemunha, de René Clément. A leitura
de Ivo Barroso para La Vie
mode d´emploi nos proporciona o mesmo prazer pesado e poderoso que nos dá Miguelângelo
na sua versão Rodin.
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