segunda-feira, 28 de maio de 2012

W.J.SOLHA: ENSAIO




IVO BARROSO E A PROEZA DE TRADUZIR  PEREC



W. J. Solha





            Eis que há cerca de um mês me chegou pelo Sedex um pacote enviado por Ivo Barroso. Dentro da caixa, um exemplar de A Vida modo de usar - de Georges Perec. Ivo traduzira o famoso romance editado pela Companhia das Letras em 1991, e o livro saía novamente, agora, pela série Companhia de Bolso.

            La Vie mode d´emploi,  publicado pela editora parisiense Hachette em 78, demonstrara – depois do Cien Años de Soledad de Gabriel García Márquez, de 65 – que o romance estava muito e muito vivo, ao contrário do que muitos propalavam depois dos aparentes extremos atingidos pelo Ulysses e pelo Finnegans Wake, de Joyce. Ele conta tudo a respeito dos apartamentos e moradores do prédio número 11 da rua Simon-Crubellier, décimo sétimo arrondissement de Paris, e é de um tal exagero de técnica e imaginação, que me pareceu ser a tentativa premeditada, bem sucedida, da construção de um marco literário, tal como fizeram João Martins de Athayde e Leandro Gomes de Barros – guardadas as devidas proporções - com seus cordéis Marco Meio Mundo e Como Derribei o Marco do Meio do Mundo, de 1915 e 1917, onde um se empenhou em criar uma Babel mais delirante do que a do outro.

            É incrível o que Perec faz em quase dez anos de trabalho maluco, na criação desse romance. Nem falo da matemática que aplicou na sua concepção, coisa que Osman Lins fez por aqui em Avalovara, e que arquitetos e pintores têm utilizado em todo o mundo, desde que Virgílio e Fidias, Leonardo e Piero della Francesa, Le Corbusier e o grupo Section d´Or descobriram o calculado macete de que a natureza se serve, através da série Fibonacci, para a reprodução animal ou para a proporção ideal  de uma concha ou a disposição mais coerente das sementes de um girassol. Foram dez anos de trabalho obsessivamente concentrado no registro de pormenores que nos cercam a todos, com paralelo apenas, talvez, nos iguais quase dez anos que o pintor inglês Richard Dadd  levou, preso no Departamento de Lunáticos do Bethlem Royal Hospital de Londres, para pintar todos os detalhes da tela de 54 X 40 centímetros intitulada Golpe de Mestre do Lenhador Mágico. Mas não exatamente. Embora exímio contador de uma centena de pequenas estórias que há no romance (que ele chama de romances), Perec faz com que seus milhares ou milhões de objetos de cena tenham tanto realce no texto, quanto os desenhos dos papéis de parede, das tapeçarias, das toalhas de mesa e dos vestidos que envolvem as figuras retratadas pelo pós-impressionista Edouard Vuillard, ou mais: tudo isso acrescentado de muitas jóias, flores, deteriorações e amarfanhamentos das roupas, como os retratados do americano Ivan Allbright.

            O resultado é exaustivo, mas impressionante. Barroso sabia que eu iria gostar de Perec e,  ao ver meu entusiasmo, lá pela página duzentos, disse-me que aguardasse o capítulo 74. Esse trecho, de fato, é um dos mais fascinantes que li em toda a minha vida. Em Maquinaria do Elevador – Machinerie de l´ascenseur – Perec, depois de descrever todo o edifício, desce conosco a seus segredos inferiores, vasculhando tudo, acabando por nos levar, com  seu exacerbado realismo, para a mais pura e - no caso – inesperada literatura à la Brueghel e Bosch..

Foi nesse ponto da leitura que tive consciência completa do trabalho igualmente minucioso, detalhista, perfeccionista de Ivo Barroso. Apenas com um Virgílio desse poderíamos – em português -  ir tão fundo em La Vie mode d´emploi. Somente com o poeta que escreveu  O Peixe de Neruda e enfrentou a tradução de Baudelaire, Breton, Gide, Malraux, Romain Rolland, Rimbaud e Yourcenar, além de Svevo, Shakespeare e Hesse, entre outros, poderíamos sentir-nos tão à vontade entre tanta extravagância literária.

            Ivo jamais é traditore, apesar de me lembrar o talentoso Ripley, que assume a personalidade de Dickie Greenleaf  - imitando-lhe voz, assinatura e modo de se vestir – até tomar seu lugar, como Matt Demon, nesse filme de Anthony Minghella, toma o de Alain Delon de O Sol por Testemunha, de René Clément. A leitura de Ivo Barroso para La Vie mode d´emploi nos proporciona o mesmo prazer pesado e poderoso que nos dá Miguelângelo na sua versão Rodin.


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