sábado, 31 de outubro de 2009

UM POEMA





Carne


Carne: repositório de lascivas

possibilidades.


Satisfação do que se tem

face ao que se pode ter:


desejo


transposto o limite do decoro

e seu inútil anseio.

MONET


RAINER MARIA RILKE: UM POEMA

I: 3

Um deus o pode. Mas, diz-me, poderia um

homem acompanhá-lo na lira acanhada?

Sua mente é discórdia e nas encruzilhadas

do coração Apolo não tem templo algum.

O canto, como o ensinas, não é o querer

nem busca do que quer que seja de atingível.

Cantar é existir. Para o deus, tão factível.

Mas nós, quando é que somos? Quando ao nosso ser

dará ele de volta a terra e as estrelas?

Não é o que amas, jovem, mesmo que forçasse

a voz em tua boca. Aprende a esquecê-las,

tais canções. Elas passam, frutos do momento.

O cantar em verdade de outro sopro faz-se.

Um sopro de nada. Um alento em Deus. Um vento.

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I: 3

Ein Gott vermags. Wie aber, sag mir, soll

ein Mann ihm folgen durch die schmale Leier?

Sein Sinn ist Zwiespalt. An der Kreuzung zweier

Herzwege steht Kein Tempel für Apoll.

Gesang, wie du ihn lehrst, ist nicht Begehr,

nicht Werbung um ein endlich noch Erreichtes;

Gesang ist Dasein. Für den Gott ein Leichtes.

Wann aber sind wir? Und wann wendet er

an unser Sein die Erde und die Sterne?

Dies ists nicht, Jüngling, dass du liebst, wenn auch

die Stimme dann den Mund dir aufstösst, – lerne

vergessen, dass du aufsangst. Das verrinnt.

In Wahrheit singen, ist ein andrer Hauch.

Ein Hauch um nichts. Ein Wehn im Gott. Ein Wind.

Tradução: José Paulo Paes

LOCUS AMOENUS



Existe, na geografia retórico-poética do Ocidente, uma paisagem ideal; ela constitui, pelo menos até o século XVIII, o motivo principal de toda descrição da natureza; seu mínimo de apresentação consiste, como nesta passagem ovidiana, “numa árvore (ou várias), numa campina e numa fonte ou regato.” Trata-se de um topos tecnicamente chamado de locus amoenus, embora na poesia arcaica – antes, portanto, das nomenclaturas retóricas – esse lugar fosse o ponto em que o homem se enlaça à phýsis, que é divina. É ainda no quadro de uma sintonia entre o sagrado e o humano que Virgílio situa no tempo e no espaço seus pastores, embora Horácio já denunciasse a transformação de descrições desse tipo em simples procedimentos ou estilemas.



Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos. Ed. Iluminuras

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

DOIS POEMAS DE EUNICE ARRUDA






TRATO


Conviver

com os poemas


Ao redor da mesa

ao redor dos dias

como filhos


Acariciar cercear

deixar


Ao calor do sol

à melancolia do crepúsculo

Apertar ao peito

apalpar a febre a testa

ler as linhas

ler a vida em suas mãos


Conviver

com os poemas


Ao redor da mesa

ao redor dos dias

como filhos


Demora

a hora

em que eles nos abandonam



RISCO


Um poema livre

da gramática, do som

das palavras

livre

de traços


Um poema irmão

de outros poemas

que bebem a correnteza

e brilham

pedras ao sol


Um poema

sem o gosto

de minha boca

livre da marca

de dentes em seu dorso


Um poema nascido

nas esquinas nos muros

com palavras pobres

com palavras podres

e

que de tão livre


traga em si a decisão

de ser escrito ou não


(Poemas do livro Risco, Nankin editorial)



domingo, 25 de outubro de 2009

SAFO DE LESBOS


mais do que o leite, cândida

mais do que a água, branda

mais do que liras, harmônica

mais do que um cavalo, impetuosa

mais do que a rosa, frágil

mais do que um leve manto, imponderável

mais do que o ouro, áurea

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Tradução: Joaquim Brasil Fontes

sábado, 24 de outubro de 2009

A ARTE GREGA: ESSÊNCIA E TRANSITORIEDADE


Ao elaborar um retrato, os escultores gregos da era clássica não visavam o particular, mas o instante mágico em que o frêmito da individualidade se lê à superfície de uma ideia abstrata: Martin Robertson detecta com fineza, em bustos de Platão derivados de originais helênicos, uma surpreendente semelhança com Sócrates, cuja persona o discípulo tinha assumido em seus escritos. Analogia que, longe de ser uma coincidência, era procurada e às vezes sublinhada com certa infelicidade pelo escultor: ao vê-los, reconhecemos imediatamente nos bustos helenísticos dos filósofos Metrodoro e Hermarco os traços fisionômicos do mestre de ambos, Epicuro. E se nesses dois exemplos o idioma artístico da nova era impõe a semelhança, a iconografia do período clássico soube entretanto sustentar, em seus melhores momentos, o equilíbrio instável entre as imutáveis essências e a existência fugaz, o indivíduo e a ideia.

Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos. Ed. Iluminuras

MARC CHAGALL III


A ARTE E A ABSTRAÇÃO

Essencial a qualquer arte, a abstração está ligada a toda criação. Ela surge desde o primeiro gesto do pintor, com o desenho, que é o delineamento do contorno de uma figura; representado por meio de uma linha que não existe na realidade, sempre será necessário escolher o traçado desse contorno sobre a tela. O desenho depende primeiro de um ato do espírito que, abstraindo-se da maciça materialidade das qualidades sensíveis, instaura um limite ideal que define uma forma: não existe desenho na natureza, e quando se encontra uma forma desenhada numa gruta inexplorada há milênios, logo se infere que aí viveram homens. No desenho que está sendo feito, o espírito intervém para tornar o contorno tal como o olhar teria prazer em vê-lo e a mão em fazê-lo, adequando-o também à forma idealmente concebida. A verdade do contorno não está literalmente na coisa representada, mas na sua beleza, ou seja, na forma que traduz, experimentada pelo artista; esse efeito de movimento, de peso, de poder, graça ou espiritualidade de que a coisa viva muitas vezes não é mais que um pálido esboço.

Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

RAINER MARIA RILKE: DOIS POEMAS


HORA GRAVE

Quem chora agora em algum lugar do mundo,
sem razão chora no mundo,
chora por mim.

Quem ri agora em algum lugar da noite,
sem razão se ri na noite,
ri-se de mim.

Quem anda agora em algum lugar do mundo,
sem razão anda no mundo,
vem para mim.

Quem morre agora em algum lugar do mundo,
sem razão morre no mundo,
olha pra mim.

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ERNSTE STUNDE

Wer jetzt lacht irgendwo in der Welt,
ohne Grund weint in der Welt,
weint über mich.

Wer jetzt lacht irgendwo in der Nacht,
ohne Grund lacht in der Nacht,
lacht mich aus.

Wer jetzt geht irgendwo in der Welt,
ohne Grund geht in der Welt,
geht zu mir.

Wer jetzt stirbt irgendwo in der Welt,
ohne Grund stirbt in der Welt,
sieht mich an.


Se bem, como de uma prisão odiada e sofrida,
cada um de nós forceje por escapar de dentro
de si próprio, existe no mundo um grande portento
que sinto a cada passo: toda vida é vivida.

Quem a vive então? As coisas que, no fim do dia,
jamais executada melodia,
permanecem como sons numa harpa armazenados?
Vivem-na os ventos das águas desatados?
Ou os ramos, com os seus gestos descompassados?
Ou as flores, com os seus aromas misturados?
Ou, das aléias, o longo leito sombreado?
Ou os animais cálidos que andam sobre o chão?
Ou, pelo céu afora, as aves de arribação?

Quem a vive? És tu, Deus, que vives a vida então?

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Und doch, obwohl ein jeder vom sich strebt
wie aus dem Kerker, der ihn hasst und halt, –
es ist ein grosses Wunder in der Welt:
ich fühle: alles Leben wird gelebt.

Wer lebt es denn? Sind das die Dinge, die
wie eine ungespielte Melodie
im Abend wie in einer Harfe stehn?
Sind das die Winde, die von Wassern wehn,
sind das die Zweige, die sich Zeichen geben,
sind das die Blumen, die die Düfte weben,
sind das die langen alternden Alleen?
Sind das die warmen Tiere, welche gehn,
sind das die Vögel, die sich fremd erheben?

Wer lebt es denn? Lebst du es, Gott, – das Leben?

Tradução: José Paulo Paes




quarta-feira, 21 de outubro de 2009

MARC CHAGALL II


EMILY DICKINSON: UM POEMA

Pousou hoje num galho o Pássaro mais belo
Que conheci em minha vida
E enquanto Mundo houver
Anseio ver de novo outra visão tão meiga
E já por nada mais cantava
Que o íntimo Prazer
Cessava e retomava a efêmera Cantiga –
A que feliz Acaso dá-se
A Glória mais sutil!

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The most triumphant Bird I ever knew or met
Embarked upon a twig today
And till Dominion set
I famish to behold so eminent a sight
And sang for nothing scrutable
But intimate Delight
Retired, and resumed his transitive Estate –
To what delicious Accident
Does finest Glory fit!

Tradução: José Lira

FEDERICO GARCÍA LORCA: UM POEMA

PERGUNTAS

Maio de 1918

Um montão de cigarras tem o campo.
- Que dizes, Marco Aurélio,
destas velhas filósofas da planície?
Pobre é teu pensamento!

Corre a água do rio mansamente.
- Oh, Sócrates! O que vês
na água que vai para amarga morte?
Pobre e triste é tua fé!

Desfolham-se as rosas no lodo.
Oh, doce João de Deus!
O que vês nestas pétalas gloriosas?
Pequeno é teu coração!


PREGUNTAS

Mayo de 1918

Un pleno de cigarras tiene el campo.
- ¿Qué dices, Marco Aurelio,
de estas viejas filósofas del llano?
¡Pobre es tu pensamiento!

Corre el agua del río mansamente.
- ¡Oh Sócrates! ¿Qués ves
en el agua que va a la amarga muerte?
¡Pobre y triste es tu fe!

Se deshojan las rosas en el lodo.
¡Oh dulce Juan de Dios!
¿Qué ves en estos pétalos gloriosos?
¡Chico es tu corazón!

Tradução: Willian Agel de Mello

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

POEMA


Meditação sobre ruínas III

Como um olhar que cicatriza recordações.

Sonho que antecipa à vida

a iminência de todas as calamidades.

POEMA


A colheita

Limiar de um gesto incólume.

Sob o sol

feixes reluzem.

Dádiva da complacência.

FEDERICO GARCÍA LORCA: DOIS POEMAS


O CANTO QUER SER LUZ

O canto quer ser luz.
No escuro o canto tem
fios de fósforo e lua.
A luz não sabe o que quer.
Em seus limites de opala,
encontra-se consigo mesma
e volta.

EL CANTO QUIERE SE LUZ

El canto quiere se luz.
En lo oscuro el canto tiene
hilos de fósforo y luna.
La luz no sabe qué quiere.
En sus límites de ópalo,
se encuentra ella misma,
y vuelve.

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VARIAÇÃO

O remanso do ar
sob o ramo do eco.

O remanso da água
sob fronde de luzeiros.

O remanso de tua boca
sob espessura de beijos.

VARIACIÓN

El remanso dela aire
bajo la rama del eco.

El remanso del agua
bajo fronda de luceros.

El remanso de tu boca
bajo espesura de besos.

Tradução: William Agel de Mello

EMILY DICKINSON: DOIS POEMAS


A Natureza é o que sabemos
Mas a Arte não diria –
Tão cega é para o que é Simples
Nossa Sabedoria.

Nature is what we know –
Yet have no Arte to say –
So impotent our Wisdom is
To her Simplicity.

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O Céu não nos usurpa nada –
Mesmo aparentes furtos
São compensados sutilmente
Por desígnios ocultos –

Not One by Heaven defrauded stay –
Although he seem to steal
He restitutes in some sweet way
Secreted in his will –

Tradução: José Lira

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

MARC CHAGALL


DOIS POEMAS

Primavera

Ruas, trajetos
circunscritos.
Aglomeração
de pessoas.
Novos velhos
colóquios.
Alarido obtuso, insigne.
A existência consumida
como uma coisa.
Na escadaria
da catedral
pedintes ingênitos
sob um sol
obsequioso.
É primavera:
não há flores.


Noite

Somente as luzes
dos postes
iluminam
a noite.
O céu esquálido,
obstruído
por prédios e
fios elétricos.
Insetos
conclamam
a subserviência
do sono.

A DIMENSÃO CULTURAL DO HOMEM



Nós apreendemos a natureza apenas através da ideia que dela formamos: uma ideia cultural, ligada à verdade do homem e do mundo, que a história humana, por meio tanto da arte quanto da filosofia e da ciência, não cessa de elaborar e questionar.

Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus

Homem e coisa. – Por que o homem não enxerga as coisas? Ele próprio está no caminho: ele esconde as coisas.

Friedrich Nietzsche, Aurora. Ed. Companhia das Letras

domingo, 11 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

POEMAS DE MAJELA COLARES



"fazer poemas é soldar palavras
fundir o signo - literal sentido -
do verbo frio, transformando em chama
aceso verso, pensado e medido"









A CEGUEIRA DA LUZ

a cor da luz que refugia a noite
reflete sombras pressentidas quando

o tempo, ocaso, conspirou a luz

e nas pupilas desta noite fria
a luz fundiu-se contornando sombras

e se fez sombras quando luz, a luz...


VERTIGEM DA HORA

janela, muro, firmamento
a liberdade esvoaçando, rondando a vida
a imaginação rondando a mente
criando mundos
- mundo é o que dentro de nós existe
seus limites estão na ideia
circundam o tempo...
poderá ir um pouco além do muro
no entanto
confunde-se com o firmamento
com a vertigem da hora

a solução para o caos
está dentro de si
da mais remota e obscura
profundeza dos sentidos
à nítida e expressiva superfície de cada instante

os horizontes do grito de liberdade
a solidão do cárcere
nos habitam...
- cada homem é levado a conspirar um desses templos


CANTO VI

Essa História
longa e árdua
vem escrita
vem traçada
pela tinta
vil e trágica
rascunhando
noutras linhas
transcrevendo
noutras páginas
falsas letras
desbotadas
no silêncio
das palavras


AS MARCAS DO TEMPO

o último impulso do segundo antes
ao projetar-se no após segundo

risca no tempo cicatrizes, fendas
(o largo corte invariável, sempre)
que esculpe a forma virtual do instante

no confundível e abstrato mármore
imagem sólida do momento único


Poemas do livro As cores do Tempo