domingo, 27 de maio de 2012

JORGE TUFIC: ENSAIO

(Ruaz)

Jorge Tufic

Com a transdicção virtual e a técnica singular do fazer, cujo objetivo é o poema, a poesia passou a distinguir-se da literatura como arte de bem escrever, mas, na afirmativa de Cassiano Ricardo, “toda poesia é literatura, sem ser prosa”. Ezra Pound contorna o penhasco e dispara: depois de Stendhal tê-la visto e denunciado, a farolagem poética dos séculos precedentes foi substituída pela nova prosa, que era criação do próprio Stendhal e de Flaubert. A poesia permaneceu então como arte inferior até emparelhar-se com a prosa desses dois autores, o que alcançou fazer, em grande parte, com base no DICHTEN = condensare. “(...) Não quer isso dizer que ela fosse algo mais etéreo e mais imbecil que a prosa, e sim algo que estava carregado de potencial mais elevado”. Tente-se acrescentar ao raciocínio do grande crítico o fato de que esse potencial se enraíza nas formas de arte mais primitivas, com a predominância do mito, que se engendra e se desenvolve na origem da religião, da filosofia e da própria criação estética, sempre carregada de sentimentos e impulsos que medeiam a linguagem dos sonhos. Pouco enfaticamente, no entanto, Pound o reconhece. Homo sapiens, homo faber, homo ludens (Huizinga). O jogo de toda a vida permeado pelos ganchos do sonho, afluentes do mito. Potencial elevado = forma superior de resposta aos atalhos da luz e da treva numa única síntese estabilizadora. Dichten = condensare. As antenas da raça podem estar, de repente, numa espécie de “Canto ao sol da maloca”, na quarta escala vocal de um pajé, ou, simplesmente, num erro de revisão que muda o título de uma crônica de jornal. É o próprio mestre do ABC que ensina: “O som fica melhor lá onde o idioma claudica.”

                        Ora bem, mas não vamos repetir, aqui, uma certa arenga sobre o que seja e o que não seja poesia. A nosso ver, Cassiano Ricardo e os teóricos da poesia concreta já quiseram ou pretenderam esgotar este assunto. Por essa importante contribuição de um passado recente, quem não sabe estabelecer, hoje, a diferença entre prosa e poesia? Prosadores inventivos como Guimarães Rosa e “transformadores” como João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, revalorizam a linguagem poética no exercício da prosa ou esticam a massa do poema até disfarçá-lo numa outra coisa, aparentemente estranha e sem nome. Isto é poesia. De qualquer modo, porém, um poema é um poema, e uma prosa é uma prosa. Pode também acontecer de um poema não conter nenhuma poesia, seja em versos livres ou não, sendo“escusado dizer (e agora a palavra é de Cassiano Ricardo) que estas distinções de ordem técnica e forma não significam – sob um critério de valor –desconhecer certas obras-primas que são os “poemas em prosa” de Baudelaire (“Petits Poèmes em Prose”), de Rimbaud (“Iluminations”) ou os poemas também em prosa de Saint-John-Perse (“Anabase” ou “Vents”) e, pra não irmos tão longe, os que se praticam entre nós: os de Raul Pompéia, os de Aníbal Machado, os de Manuel Bandeira, os de Mário Quintana etc...”

                        À parte, no entanto, os ismos do ofício, podemos afirmar que a poesia é indefinível, o verso um artifício e o poema um desafio, uma armadilha, algo parecido com a figura emblemática de um touro que se tomasse de asas, para voar. É desse ponto de vista que a criação poética, ao ver de L. Ruas, torna-se um problema complexo, um problema vital do poeta-homem, cuja “situação humana, ou, se quisermos, existencial do poeta não é um simples fato de significação anedótica mas, ao contrário, é algo essencial e inerente à obra de arte” (“Os Graus do Poético”, L. Ruas, Ed. Rio Mar, Manaus-Am, 1979). Encarado, assim, por uma ótica transcendental, o fenômeno da criação poética ou da obra de arte encontra, em Tasso da Silveira, uma síntese perfeita, quando diz: “Na obra de arte se fundem três mistérios diferentes. O mistério do indivíduo, o mistério do ser e o resultante destes dois, a catálise do impulso criador, o mistério da expressão” (idem). Além da forma e da evolução semântica das palavras, além do sentimento do tempo ao longo de anos aprofundado através dos grandes inventores, mudara, porventura, a essência da poesia? Achamos que não. Outras conquistas, é certo, dotaram o faber de novas técnicas e novos processos. Na ponta do exagero, contudo, degringola a cavalice do “pintor” que tenta esboçar uma tela com um rabo de cavalo melado na tinta, e sucumbe o eventual consumidor de LSD quando pensa que, “numa boa”, será capaz de produzir alguma coisa semelhante aos poemas de Vicente Huidobro.


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