terça-feira, 8 de maio de 2012

JORGE ELIAS NETO: UM POEMA INÉDITO


(Caravaggio)

Discurso para o cadáver

Teus olhos
não mentem,
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida –
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.

Do exato
ponto
que se parte
– se esquece–
o espectro
da carne
                   – do irremediável.

Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
– questão alheia –
(prevalecerá a vontade
               do Universo.)

Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.

Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos
ao lançar os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.

E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posto a ausência
cúmplice.

Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
                        pendurada
em teus lábios.

(Como é bela e
                              inútil
a última
                   centelha...)

Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
                         despeja
suas crias.)

Vestirei a máscara
e restarei
um momento – breve –
(o tempo de observar a indecisão
das chamas perante o choro
                        humano.)


Vitoria, 05 de maio de 2012



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