sábado, 28 de novembro de 2009

JORGE DE LIMA: A ESSÊNCIA CRISTÃ DA POESIA


TARDE OCULTA NO TEMPO

O andarilho sem destino reparou então
que seus sapatos tinham a poeira indiferente
de todas as pátrias pitorescas;
e que seus olhos conservavam as noites e os dias
dos climas mais vários do universo;
e que suas mãos se agitaram em adeuses
a milhares da cais sem saudades e amigos;
e que todo o seu corpo tinha conhecido
as mil mulheres que Salomão deixou.
E o andarilho sem destino viu
que não conhecia a Tarde que está oculta no tempo
sem paisagens terrenas, sem turismos, sem povos,
mas com a vastidão infinita onde os horizontes
são as nuvens que fogem.


ACEITO AS GRANDES PALAVRAS

Aceito as grandes palavras eficazes
e os caminhos que Deus pôs diante de mim.
Aceito o sangue derramado se é necessário
para levantar o pobre.
(Minha meditação me queima, Senhor!
Mas me deixai falar para me desafogar.)
Aceito a oração para mim e para distribuí-la como pão.
(Minha meditação me queima, dai-me água
para me dessedentar.)
Aceito a não importância da vida.
(Senhor, pegai minha mão para não me matar.)
Aceito os dias com seus cinemas, seus bonds,
seus flirts, suas praias de banho, sua atualidade.
Mas deixai-me ver no meio dessa conturbação
o que está acima do tempo, o que é imutável.
Senhor, estou cansado, quero descansar.


SOU PARA ME SALVAR SOBRE AS TÁBUAS DA LEI

Não sou só para comer trigo.
Sou para cair e para me levantar,
para viver e para não ligar à vida
nem à morte nem ao tempo
nem às águas paradas
que apodrecem dentro dele.
A mansão de meu pai tem muitas casas:
a nostalgia dessas casas mora em mim.
Sou para procurar roteiros no mar,
para me arrepender e me salvar,
para anunciar como um profeta
e negar três vezes antes do galo cantar.
Sou para me enlamear no mundo e para me lavar na luz.
Sou para me afundar nos pecados mortais.
E para me salvar sobre as tábuas da Lei.


O POETA VENCE O TEMPO

Já não vejo mais a paisagem de plantas carnívoras.
Levadas pelos riachos a água velha canta de novo.
A relva ignora sua tragédia e alteia as folhas inocentes.
Regresso ao teu tempo, Davi.
Como tu tenho harpa e tenho Deus.
E num dia Bíblico assim
fora dos tempos duros
posso voltar às origens,
e sentir como tu
que sou mais forte que o rei,
mais forte que todos os Golias.
Mas não sei como tu
distinguir se essa estrela claríssima
é a estrela da manhã
ou se é mesmo a poesia
que nós vemos no céu
– antecedente e posterior a tudo.


OS QUE VIRÃO NOS CAMELOS

Pobres de espírito os que julgam a Lei pelos homens da lei,
a Igreja pelos homens da Igreja,
a eternidade por um trapo de tempo.
Pobres os que não têm perspectiva
e são fortes de ódio para dominar.
Pobres os que iluminam os falsos dias
e são fugazes como as tempestades.
Pobres os que enfraquecem o espírito
e não têm joelhos para ajoelhar.
Pobres os que não passarão
onde os camelos atravessarão.
Pobres os que não vêem o que ficou atrás,
e o que há de vir, quando as portas baterem.
Pobres os que não conhecem
um minuto sequer de poesia.
Pobres esses pobrezinhos.
Misericórdia, Senhor, para esses pobres.


O TORMENTO

Na sétima lua edifiquei a porta grande da casa do Senhor
e mandei traçar nos muros exteriores os exemplos do céu.
E ensombrei de nuvens gordas o recinto dos povos.
Quebrei as estátuas de Baal, para evitar as calamidades surdas,
equipei as frotas sagradas e mandei-as partir:
renovei a aliança com a suprema Presença,
e ela uma noite me ofereceu um sinal.
Compreendi a grande significação dos mistérios
para saber que nesse mundo apagado,
as verdades são nulas, o real está além.
Mandei buscar num país muito longe
o filho dum ourives para gravar silêncios.
Abri o livro diante do povo
pensando que o povo estava no nível do Alto.
Mas o povo não pôde enxergar os silêncios do livro.
Nem suportar a claridade esquisita que das páginas saía.
Baixei a cabeça no maior dos desânimos.
E o tempo me chamou para morrer.
A eternidade me chamou para viver: irei.

(Poemas de Tempo e Eternidade. Ed. Nova Aguilar)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A SERENIDADE DA PALAVRA: HAICAIS DE LÍRICA


água da manhã

fim de tempestade

caminho no silêncio

_____

ventania sem flor

sombra na montanha

sonho incolor

_____

planície líquida

manhã dourada

história de sal

_____

trilhas de silêncio

areia de mandala

lótus que floresce
_____

estrela d'água

areia que cintila

gota de mar azul
_____

nenhuma nuvem

imensidão azul

borboletas e jasmim
_____

neve que cai

janelas de inverno

cerejeiras sem flor
_____

no interior do mundo

na dança da escuridão

"estátua de gelo"
_____

montanha escondida

luar que vai embora

céu de tempestade
_____

em dia de verão

canta o canarinho

na varanda do sonho
_____

folhas pálidas

contas de orvalho

fantasia de outono
_____

no sol da manhã

cantando

sabiá de primavera
_____

papel de seda

palavras mágicas

música de passarinho
_____

em tule e cristal

água de flor

matizes de prata
_____

névoa na colina

cerejeiras de luz

céu que desperta
_____

pés descalços

crisântemos amarelos

montanha ensolarada

_____


canto de rouxinol


água de riacho


luz de primavera

_____


voo de andorinha

planícies de alfazema


histórias sem fim

_____


brinquedo de menino


desenhos de giz


dia de verão dourado

_____


flor de laranjeira

doce açucarado


lembrança de menina

_____

caminho do meio


história de amor


coração de cristal

_____

raios e trovões


chuva que não para


lago que transborda

_____

menino só


cavalinhos mágicos


sonho cor de prata

_____

asa partida


cristal diáfano


hoje não posso voar

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

MINÚCIA E SENSIBILIDADE: NOVE HAICAIS DE NYDIA BONETTI


1.

chuva e escuridão

o mesmo céu da infância

...sem lamparinas


2.

dança na janela

vermelha e branca – asa

pássaro é flor


3.

poesia,

flor de primavera


nós

ávidos beija-flores


4.

acordei tarde demais

quase noite

e era este o último sol


5.

ando em busca de doçuras

- mel, passarinho, flor

bom mesmo fosse amor


6.

verão nos olhos

inverno sob as asas

sonha andorinha!


7.

fogão de lenha

tacho de cobre e a “nonna”

saudade doce...


8.

peço silêncio:

há uma flor

se abrindo no jardim

9.

bambus no vento:

no tronco habita a força

no oco, a paz.

domingo, 22 de novembro de 2009

UM POEMA


Circunstâncias

Vês a aparente necessidade de todas as coisas?
Aceite-as em sua fragilidade essencial.

Acolhimento e recusa aguardam
incautos andarilhos.

Vês a perplexidade de todos os fatos?
Aceite-os em sua precária alegria de ser.

Resignação e esquecimento aguardam
altivos andarilhos.

Acaso reclamas os despojos de tua derrota?
Soma de nulidades!

Todas as circunstâncias são inelutáveis.

MONET III


DOIS POEMAS DE RODRIGO DE HARO

NADA É FIXO NA FACE DO POETA

Nada é fixo na face do poeta
Seu rosto é lisa mancha solar
Espectro
Ele desce ao jardim do lago
Diante da Noite.
Os sóis interceptados giram em sua testa
Sóis imperceptíveis de constelações
Insuspeitadas
Enquanto
Um pássaro liberta-se dos linhos
Entre Andrômeda e a estrela da tarde
Em torno dele giram estandartes e lembranças
Giram doze casas de planetas
Seu Duplo gira
Verde e negro no coração das esferas.

O poeta quase que não lembra
Sua forma fixa
Na aparência livre fluir do tempo
Fita por acaso o espaço
Em que se volatiliza a tensa face amada
O poeta e seu poema:
Estão rodeados de névoas em seus duelos
Antípodas
Cegos por mesma seta de amor
Que aos tumultos não se furta
Nem detém o fluir um no outro
De chama e orvalho
Água e Labareda
A lágrima salgada que na concha da língua
Em pérola de pronto se transforma.

O poeta e seu poema
Árduo e festivo sempre o seu Dilema.



ESTAMPA DO CÃO SENTADO NUMA CADEIRA

Delicadíssima relação dos cães
com a morte. Quero
morrer como cão, fitando
as coisas transparentes.

Em piedosa aridez
eu me aproximo sem levantar
as orelhas. Estendo
as patas e me deito

fitando o horror das coisas
transparentes, roendo
um fêmur seco.

Nada sabe ele. Tudo
é inacabado e aspira
ao vazio da rua em que nas-
cestes: sibilino, arbóreo,
transparente e lúcido

sopro na colina.

OS GRANDES ESQUECIDOS: UMA CONVERSA COM JOAQUIM BRASIL FONTES SOBRE LÉON BLOY, CHARLES PÉGUY, BERNANOS, MAURIAC E PAUL CLAUDEL


Duas ou três coisas que sei sobre eles...



Bloy, Péguy, Bernanos, Mauriac, Claudel... Os autores sobre os quais você me questiona não figuram entre os meus preferidos, mas eu os li, e muito, na adolescência, graças aos acasos das traduções e das bibliotecas: eles circularam, no Brasil, entre os leitores da geração anterior à minha, e estavam ao alcance da mão, por assim dizer, nas estantes de livros de nossos tios, pais e vizinhos cultos. Nas Alianças Francesas, onde, na época, era de bom-tom aprender o francês, aqueles autores se impunham como uma espécie de reserva moral e patriótica da velha Gália: o establishment literário os tinha enfim incorporado, embora eles fossem maiores e melhores do que ele.

***

Léon Henry Marie Bloy (1846-1917) e Charles Péguy (1873-1914) são ainda homens do século XIX, se aceitarmos a tese de Hobsbawn, segundo a qual o século XX começa com a Primeira Grande Guerra. Léon Bloy participou, aliás, do conflito franco-germânico de 1870, que abre simbolicamente, no século XIX, a primeira grande crise do capitalismo europeu. Católico fervoroso, era amigo de Barbey d’Aurevilly e de Villiers de L’Isle-Adam, típicas figuras do fin-de-siècle francês. Dizia escrever “para Deus somente” e aguardava, nos últimos anos de vida, “o advento dos cossacos e do Espírito Santo”. Um apocalíptico, em suma. Mas também “um entrepreneur de démolitions”, como ele a si mesmo definia.
Deixou novelas e um diário em oito volumes, os dois últimos significativamente intitulados Au Seuil de l’Apocalypse e La Porte des Humbles.

***

Deleuze fala rapidamente de Péguy em Diferença e Repetição, mas lhe dá um lugar de honra na estruturação dos conceitos do seu livro: evocando o “tríptico do pastor, do anticristo e do católico” (Kierkegaard, Nietzsche e Péguy), o filósofo observa que cada um dos três, à sua maneira, fez da repetição não só uma potência própria da linguagem e do pensamento, um pathos e uma patologia superior, mas também a categoria fundamental da Filosofia do futuro. A cada um daqueles homens corresponderia um Testamento e um Teatro, uma concepção do teatro e um personagem eminente nesse teatro, como herói da repetição; o de Péguy seria Joana D’Arc/Clio: a mulher cristã-soldado-inspirada por Deus e a Musa da História. Jeanne D’Arc e Clio são, aliás, os títulos de duas obras de Péguy, não sei se já traduzidas para o português.
Se o admirador da poésie pure permanece reticente diante da poesia de Péguy (retórica, mística, talvez grandiosa demais, patriótica, fruto da obra literária concebida como apostolado), não creio que não se possa negar o valor de sua poética como um todo, sobretudo se nos voltarmos para os seus admiráveis Mystères, composições inspiradas na Idade Média, mas de um barroquismo impressionante.

***

Os autores sobre os quais você me questiona pertencem ao bloco, muito coerente, da literatura católica francesa na primeira metade do século XX e fazem parte, em geral, de um movimento de renovação do pensamento religioso contra os conservadores, a política de adesão ao Estado, contra o bersgonismo, a censura papal e sobretudo contra a “Action Française” positivista e reacionária. Talvez fosse interessante acrescentar a eles o nome de Jacques Maritain, que marcou a juventude do período entre-guerras e cruzou, em certo momento, o caminho do irrequieto Jean Cocteau. Seria interessante estudar, aliás, um certo catolicismo “mundano” e “programático” que vicejou naquele momento... Fica para outra ocasião.

***

François Mauriac, nascido em 1888, sobreviveu à sua própria época atormentada e já era póstumo de si mesmo quando morreu em 1970: a literatura francesa e universal haviam tomado, depois da Segunda Guerra Mundial, rumos nos quais ele não conseguia se engajar.
Mauriac é o grande representante do romance psicológico francês, e sua obsessão central é a do pecado, que é sempre o “pecado da carne”. Carpeaux dizia, com uma ponta de ironia, que a tentação era para ele mais do que um tema: era própria razão de ser do romance católico.
Mauriac é um mestre ao pintar “a miséria da criatura humana sem Deus”: aquela que é talvez sua obra-prima, Thérèse Desqueyroux (1926), esboça, de forma exemplar e com rápidos traços, o caso de uma jovem provinciana movida pela tentação do crime. Tudo, nessa novela, acontece nos limites da tragédia cristã. (Depois de tanto tempo, me vem a vontade de reler este livro.)
Os romances de Mauriac, impregnados de fé e desespero, têm, contudo, uma formatação clássica. A narrativa densa e breve, num ritmo ascendente que enfeitiça (ou enfeitiçava... ). São histórias de crises e seu locus favorito é a província, onde não há, talvez, para as “almas pecadores” divertimento melhor do que o mergulho nos abismos do coração e a entrega temerosa e gozosa às tentações do demônio da carne.

***

Georges Bernanos é outro escritor dominado pelo pathos católico, embora sem as sutilezas cruéis e a fineza estilística de um Mauriac: em narrativas às vezes caóticas (para o apreciador dos clássicos) ele apresenta seus heróis enfrentando as forças do Mal, e a maiúscula, aqui, se impõe: o pecado original teria submetido o homem, para sempre à potência de Satan. Um dos livros mais conhecidos de Bernanos tem por título, aliás, Sous les Soleil de Satan, narrativa apaixonada dos tormentos de um padre dividido entre o amor de Deus e a tortura do desespero. Outra obra sua, antigamente muito lida, foi levada ao cinema por Bresson: Le Journal d’un Curé de Campagne.
E não nos esqueçamos da outrora famosíssima peça de teatro O Diálogo das Carmelitas, também filmada, com Jeanne Moreau num dos papéis centrais. Foi traduzida para o português nos anos 60, numa coleção da antiga Editora Agir, que nos deu de presente, aliás, outras obras de Claudel e Bernanos.

***

Deixei para o final, propositalmente, Paul Claudel (1869-1955), com certeza a maior e a mais brilhante entre as cinco estrelas que você menciona. E a mais contraditória, sem dúvida.
Contam que Apollinaire, um dos meus poetas favoritos, havia mandado gravar na porta do seu estúdio parisiense estas palavras: “Se você não aprecia Claudel, entre sem bater”. Pode ser que, mais do que ao poeta, Apollinaire estivesse tentando exorcizar – no umbral do seu território espiritual – o “bom católico”, o patriota, o embaixador da França, o burguês de quem, para muitos, Paul Claudel ainda é o emblema.
Numa entrevista concedida a um jornal italiano em 1925, Claudel, na época embaixador da França no Japão, havia declarado:

“Quanto aos movimentos (literários) atuais, não há sequer um que possa conduzir a uma verdadeira renovação ou criação. Nem o dadaísmo nem o surrealismo, cujo significado é apenas pederástico.
Muitos são os que se espantam, não de eu ser um bom católico, mas de ser ao mesmo tempo escritor, diplomata, embaixador da França e poeta. Mas eu não acho nada disto estranho. Durante à guerra fui à América do Sul a fim de adquirir trigo, carne congelada e toucinho para o exército e dei a ganhar duzentos milhões ao meu país”.

Os surrealistas endereçaram então a Claudel uma resposta que ficou famosa. Dou, abaixo, alguns excertos, exatíssimos no tom e na dissonância:

“Pouco nos importa a criação. Desejamos, com todas as nossas forças, que as revoluções, as guerras e as insurreições coloniais acabem por aniquilar esta putrefata civilização ocidental que V. defende até no Oriente e declaramos que esta destruição é o estado de coisas menos inaceitável para o espírito.

(...)

Só se mantém de pé uma idéia moral que impede, por exemplo, que se seja ao mesmo tempo embaixador da França e poeta.

(...)

Aproveitamos este ensejo para nos dessolidarizarmos publicamente com quanto for francês, em palavras e em ações.

(...)

Um singular desconhecimento da capacidade e das possibilidades do espírito exige que canalhas da vossa espécie procurem periodicamente a sua salvação numa tradição católica ou greco-romana. A salvação para nós não está em nenhum lugar. Nós consideramos Rimbaud como um homem que desesperou da salvação e cuja obra, como a vida, são verdadeiros testemunhos de perdição. Catolicismo e classicismo greco-romano, nós os deixamos à vossas infames beatices. Bom proveito lhe façam; engorde mais, rebente com a admiração e o respeito de seus concidadãos. Escreva, reze e babe-se; nós reclamamos a desonra de o ter tratado de uma vez por todas de pedante e de canalha”.

É sintomática a referência, nesta carta, à figura emblemática de Rimbaud, que os surrealistas reivindicavam como um dos seus mais brilhantes faróis, ao lado de Lautréamont.
Claudel havia descoberto a obra de Rimbaud em 1886, quando tinha 17 anos de idade. Foi imediatamente enfeitiçado por ela. Seis meses mais tarde, ouvindo um Magnificat na Catedral de Notre-Dame, em Paris, o jovem poeta se converte definitivamente ao catolicismo: “En un instant” – escreveria ele mais tarde – “mon coeur fut touché et je crus”.
Me permita sublinhar esse “en um instant”: a conversão de Claudel tem o caráter de uma iluminação de Rimbaud.

***


Poeta lírico e dramaturgo, Claudel traz na sua escritura ecos da Bíblia, da liturgia, da tragédia grega, de Shakespeare. Seu verso tem uma força extraordinária, um sopro que toma conta do leitor/ouvinte. Não deixe de ler Cinq Grandes Odes suivies d’um Processionnel pour saluer le siècle nouveau, de 1910. Não deixe de ler Le Soulier de Satin, um oratório escrito em 1921 e encenado em 1943, durante a guerra.

***

Quando Claudel morre, em 1955, a literatura francesa e a universal haviam passado por uma revolução extrema. A guerra havia varrido a Europa, literalmente, de seus valores culturais, espirituais, e ameaçava sua herança. Desponta a literatura chamada existencialista, à qual Camus às vezes é assimilado. O teatro de Jean Genet abala a cena francesa. Kafka é finalmente traduzido e lido com paixão pela juventude. Inaugura-se o teatro do absurdo. Em breve, uma nova geração domina o palco e o romance chamado de “novo” perspectiva o mundo do ponto de vista do objeto. É o momento de Robbe-Grillet.
Morte do autor, do personagem e, dizem, do próprio romance.

***

Examine estas palavras: tentação, graça divina, o Mal, com a necessária maiúscula... E pecado. Que sentido tem a noção católica de pecado para o homem de hoje?
Sim, os autores sobre os quais você me questiona pertencem a um mundo para sempre perdido.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

ENTREVISTA COM O POETA CLÁUDIO NEVES


1) Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?


Comecei a ler poesia meio tarde, com mais de quinze anos. Os primeiros autores sobre os quais me debrucei mais detidamente foram Camões e Vinícius, mas acho que me tornei um efetivo leitor de poesia a partir da descoberta de Pessoa, alguns anos mais tarde. Também comecei a escrever tarde, com dezoito ou dezenove anos, na Faculdade. Minha expressão, desde criança, sempre foi o desenho. Não digo que me tornar escritor tenha sido exatamente um acaso, mas uma surpresa.


2) Como é seu procedimento ao escrever um poema?


Não creio que tenha o “método”, mas o “hábito” de fazer pequenas anotações manuais ou diretamente no computador. Coisas soltas – às vezes um verso, uma imagem, uma idéia. Volto às anotações dias depois, quase sempre nos finais de semana. O que resulta disso é uma “primeira forma” do texto. Depois, posso passar semanas, meses, até que o dê por resolvido. Agora é lógico que há textos que já surgem quase prontos e outros que não andam de jeito nenhum.


3) O que é poesia para Cláudio Neves?


É uma forma de expressão eficiente. Pode parecer pouco, mas, de fato, não é. Não partilho a idéia de que a poesia é mais “nobre”, se é que esse conceito realmente existe, que a prosa, por exemplo. É tão eficiente quanto. Como, apesar de também escrever prosa, não me considero um prosador no sentido maior do termo, então, quando digo que a poesia é “eficiente”, digo que o é para mim. É a forma de arte em que me expresso melhor.

4) Comente sobre as características poéticas presentes em seus dois livros.

Publiquei o primeiro, De Sombras e Vilas, com 39 anos. Passei quase uma década acrescentando e retirando textos. A primeira parte é de poemas “suburbanos”, de viés memorialista e, muitas vezes, narrativo. Há um segundo ciclo de poemas chamado De sombras e gatos (que originalmente dava nome ao volume). A seção Os Construtores traz dois poemas que integram um livro de mesmo nome, ainda por publicar. E a seção final é uma reunião de poemas soltos, escritos em épocas distintas. O livro mais recente, Os Acasos Persistentes, é mais conciso, foi concebido quase que como um único texto. São variações sobre o amor, a morte, mas talvez o tema central seja, como disse o Antonio Carlos Secchin na contracapa, o embate entre a memória e a dissipação. Creio que, nesse segundo livro, minha sintaxe está mais homogênea, mais ajustada a seus objetivos. Quanto às características, creio que permanecem as mesmas. No plano temático, a memória, a especulação metafísica. No plano formal, a utilização de formas regulares ou semi-regulares, a busca por uma expressão cada vez mais “justa”.

5) Sua poesia parece transitar entre uma dimensão meditativa onde a linguagem busca continuamente a concisão, mas sem abrir mão de certo lirismo. Como você vê essa questão?


Tenho quase uma obsessão pela clareza. Sempre admirei a poesia em que os objetos são bem recortados. Se alguma coisa sobra no texto, é porque não deve permanecer nele. Tenho ainda um natural repúdio à poesia obscura, hermética, bem como a beletrismos. Também não vejo função numa poesia auto-referencial, ou seja, aquela em que o leitor tenha de ter lido outro autor (muitas vezes menor) ou uma dúzia de outros textos para entender uma analogia, uma ironia. E também não partilho a crença de que a poesia seja o principal tema da poesia. Tudo isso – o recorte impreciso, o hermetismo da linguagem e a crença nos metapoemas – , na minha opinião, tornou certo tipo de poesia uma espécie de ritual para iniciados, sem qualquer vínculo com a realidade. Você termina de ler a imensa maiores de textos contemporâneos e se pergunta: mas, afinal, sobre o que li? Há grandes poetas etéreos? Claro. Cecília Meireles é um bom exemplo. Mas, quando Cecília propõe uma imagem que expresse sentimentos indefinidos, essa imagem é justa, justíssima. Porque o sentimento ou a idéia podem ser hesitantes; a metáfora, não. Por outro lado, sempre tive a intuição de que há um certo limite de concisão além do qual cessa o efeito poético (para usar a expressão consagrada por Edgar Poe para designar a súbita comoção do leitor perante a obra). Então a questão de fundo é achar esse justo-meio na abordagem e, sobretudo, na sintaxe. Tento, não sei se com sucesso, adotar uma expressão substantiva e um registro que, sendo “literário”, não seja rebuscado. Por exemplo, procuro me manter sempre na ordem direta, no que diz respeito à estrutura dos períodos, e apenas o faço se o resultado soar natural, sóbrio.


6) Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?


É sempre difícil e perigoso falar de autores contemporâneos. Considero-me um bom leitor, talvez melhor leitor que escritor, mas não consigo acompanhar o ritmo, cada vez mais intenso, das publicações. Assim, só posso falar sobre os autores que conheço e que serão, obviamente, uma parte ínfima do se escreve em poesia no Brasil hoje. Acho que a poesia brasileira hoje tenta recuperar o que mais perdeu nas últimas décadas – leitores. A Poesia Concreta, que terá claro alguma validade histórica, foi, e é, pouquíssimo lida. No Plano Piloto, os concretistas falam em fim do ciclo histórico do verso, e o verso, como expressão rítmica, continua sendo escrito. Os próprios concretistas o praticaram posteriormente. A chamada Poesia Marginal também pouco deixou de sólido. Outro problema foi o fato de a poesia dita pós-moderna desincumbir-se, por exemplo, de narrar, quando narrar sempre foi um atributo de poetas. Por essa época, mergulhamos num lirismo que se queria radical, o império do eu, mas um eu vazio, um lirismo da falta de assunto, para ser bem objetivo. Mergulhamos também numa metapoesia quase programática. “Vamos fazer da poesia o tema por excelência do poema”. Ora, os temas são históricos, o homem é histórico, e qualquer arte universal deve traduzir o que de mutável e o que de perene nesse ser histórico que somos. Li certa vez um autor que dizia que “a poesia se faz com as sobras do real”. Convenhamos, isso não serve nem como frase de efeito. A poesia, bem como qualquer outra forma de arte, ocupa-se do real. A arte, de resto, é centralidade. Pode ser entendida como depuração, se quisermos, do real – jamais sobras. Creio que, em geral, a poesia brasileira dos anos 1960 até o final do século XX esvaziou-se de objetos e de clareza. Mas vejo hoje alguns sinais de consciência desse processo de esvaziamento e tentativas de devolver à poesia, como arte, sua centralidade. Sobre os poetas mais recentes, gosto de muitos dos livros do Alexei Bueno, sobretudo A Via Estreita e a Juventude dos Deuses, que são da década de noventa. Leio com prazer alguns poemas do Carlito Azevedo. Mas citar é sempre esquecer alguém.


7) Você é crítico literário. Por que a crítica literária tem se mostrado tão alheia ao que se tem feito em termos de poesia contemporânea? Como formar novos leitores de poesia ante a persistência da academia em ignorar a poesia brasileira que é escrita em nosso tempo?


Acho que o espaço das resenhas e da crítica de poesia se reduziu devido aos fatores que já citei. De fato, não é alheamento, é uma conseqüência natural daquele esvaziamento do discurso poético que já mencionei. Além disso, a poesia sofre de problemas de tiragem (sempre mínima) e distribuição. Um autor do norte ou do nordeste publica um livro por editora local e, muitas vezes, a obra nem chega às mãos dos críticos do Rio ou de São Paulo. Então não repercute. Você só encontra resenhas de poetas que conheçam diretamente críticos e poetas de algum renome. Aí sim o livro lhes chega diretamente. Sobre a(s) academia(s), não há nenhuma surpresa nisso. A academia, seja a ABL ou qualquer academia regional, sempre será, por definição, um espaço restrito. Não creio que a ABL ignore o que ocorre. A Revista Brasileira, editada pela ABL, publica um painel bem abrangente das publicações do ano. A questão é que, como já disse, a maioria dos livros nem chega aos acadêmicos. O Antonio Carlos Secchin e o Ivan Junqueira, que são da ABL, são leitores atentos e grandes incentivadores de novos autores. Agora, claro, eles lêem o que lhes chega, e quando chega, inédito ou já publicado. E aí voltamos ao problema das edições particulares, das tiragens pequenas, da distribuição e da divulgação. Sobre a formação de novos leitores, creio que o problema esteja na escola. Sou professor de português e posso assegurar que muitos professores de português não são sequer leitores de poesia.


POEMAS DE CLÁUDIO NEVES

Díptico

I

Teu corpo é belo e ao mesmo tempo inútil,
eterno, ubíquo, e ao mesmo tempo nuvem.
Púbere, exausto, e na verdade oculto.
Dorme, suspira, e na verdade escuta.

Teu corpo é belo, são, tanto mais puro
quanto mais torpe meu desejo o torne.
É informe, grave, como um quarto escuro,
e exato, simples, como um deserto.

Teu corpo é belo, ancestral, telúrico:
um veio débil, subterrâneo, absurdo,
que, já raízes, minhas mãos procuram.

Teu corpo é um sonho (alheio e lúcido)
em que me finjo ou me descubro.
Teu corpo belo, simples, nuvem, inútil.

II

Teu corpo, quando penso concebê-lo,
eis que teu ser o muda por inteiro –
não que o habite, mas com apenas sê-lo
e com torná-lo triste e verdadeiro.

Se te abstraio do corpo que desejo,
se para tê-lo esqueço que estás nele,
mais me confundo entre o que toco e o que vejo,
pois que o procuro como a um espelho.

Mas o possuo, porquanto assim me seja
possível num momento destruí-lo
no erro em que me é dado conhecê-lo.

Teu corpo, quando penso possuí-lo,
já nem o posso ter, porque desapareço,
como uma sombra noutra sombra, dentro dele.

Notre Dame de Paris

Da luz, senão aquela
que as nuvens consentem,
que o vidro consente
ou não pôde conter.

Das cores, aquelas
que nascem com a pedra,
habitam-lhe a idéia,
o peso, o calor.

Das linhas, aquelas
que invejam a luz,
com ela nasceram
ou a ela perderam,
e buscam as nuvens
e erguem a terra
com sua vontade
ou com seu terror.

Do silêncio, aquele
de um órgão jacente
ou que neste pressente
o seu salvador.

De Deus senão
o que nele é seu centro
e luz peregrina
e rosas de luz
e linhas volantes
em ordem ascendente,

o que nele é potência,
suspeita, certeza,
silêncio,
torpor.

Paris, dezembro de 2007.


(do livro De sombras e vilas. Ed. 7 letras)

I

O amor já foi
antes de ter sido,
e, se incriado,
é entanto renascido.

É livre de objeto
(se o tem, logo o assassina)
e livre de si mesmo:
deus, nuvem, bailarina.

Dança num intervalo
de luz, palavra, sentido
ou noutro qualquer abismo:

como o de antes de um não,
como a pupila de um cão
numa manhã de domingo.

7

Que o amor não é. Será.
Nunca infinito,
mas infinitivo.

Não dura. É duração.
Depura o tempo
em força, direção, sentido.

Habita a areia à beira-mar
não como rastro,
mas como um passo erguido.

14

Que o amor é isso:
saudade sem objeto,
objetos sem ruído,
tempo sem corrosão,
vozes mortas sem aviso,
a morte sem terror:
tudo apenas admitido
sem prêmios nem ruínas.

O amor é isso:
o que escolhe ser,
à revelia de quem o habita.

26

Se mais se teme o amor do que a morte,
se mais se teme a espera do que a voz,
é porque fundo e além do que chamamos nós
habita alguma coisa que nos sabe.

Se pura ou maculada de quem somos,
se lâmina, se linfa, se tão pronta
a nos cindir ou condensar em outro,
é porque desde sempre em nós não cabe.

Sentimos que se agita em frente ao mar
e silencia em face de outro corpo,
às vezes de uma cor ou de um piano.

Sabemos que por fim reclamará
o que dizemos se à falta de outro nome,
aquilo que em nós é, mais que nós, humano.

(do livro Os acasos persistentes. Ed. 7 letras)

domingo, 8 de novembro de 2009

OS ACASOS PERSISTENTES


André Seffrin

Todo poeta é o que é e não aquilo que imagina ser. Ora, apesar do ânimo clássico, aristocrático e até, por vezes, solene, a poesia de Cláudio Neves é portadora de uma inquietante modernidade. Nela, o conteúdo trágico não raro édiluído em formas lúdicas, em que se alternam e se deslocam imagens e sugestões menos óbvias quanto mais aparentes. Como um jogo de claro e escuro, de linhas retas e arabescos que o poeta movimenta com extraordinário senso de medida. Em De sombras e vilas (2008), seu livro anterior, ele se defronta com o espelho da memória, em que os sinais centelham dentro – em luz, palavra, sentido ou abismo, sempre dentro, lá onde residem os arcanos da poesia. Os acasos persistentes reativa essa metafísica convertendo-a, por assim dizer, numa cronologia de sentimentos, em que “as palavras são o que são, e não são nada”. Porque, se a existência do amor é possível apenas fora do tempo, é em seu curso (do tempo) que ele (amor) existe. Sim, amor e morte, temas primordiais da poesia – com eles, Cláudio Neves retoma este ofício de palavras, valores e medidas, entre o sonho de Deus e o vazio, para alcançar, talvez, “após uma noite de sonhos concêntricos, a suprema manhã da inexistência”. Valores e medidas de grande poeta cósmico que vive e escreve a partir de suas moradas e conflitos.

DE SOMBRAS E VILAS


Marco Lucchesi

Este livro de Cláudio Neves é um conjunto de preciosa harmonia. Sonatina que se reconhece pelo depurado sentido da forma. Mas que não morre como aqueles que buscam uma perfeição desprovida de linfa e acaso brutal. Seus poemas respiram humanidade. E me pergunto: quantas vezes – e por sábia decisão – Cláudio não se decide a quebrar um verso, avançando-lhe outra medida, para criar ao fim e ao cabo uma leitura inesperada? Dá-se ao luxo de errar. E com uma ironia inconfundível – aquelas mesmas dissonâncias dos violinos de Penderecki. Violinos estranhos. Tão acertados no erro. Como se trabalhassem em diversas regiões da harmonia. Cláudio Neves domina as cordas de seu instrumento. Ressalte-se o uso do hendecassílabo como bem afirmou Paulo Henriques Britto. Ressalte-se a batida dos versos no lirismo no recorte da figura que se impõe no mistério das vilas. E dos ventos.

MONET II


As duas direções. – Se procuramos observar o espelho em si, nada descobrimos afinal, senão as coisas nele. Se queremos apreender as coisas, nada alcançamos novamente, exceto o espelho. – Eis a história universal do conhecimento.

Friedrich Nietzsche, Aurora. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

JOAQUIM BRASIL FONTES


Joaquim Brasil Fontes é tradutor e autor dos seguintes livros: Variações sobre lírica de Safo (São Paulo: Estação Liberdade), Fragmentos dos fragmentos da lírica de Safo (Florianópolis: Noa Noa), Poética do fragmento (Belém: I.A.P.), Hipólito e Fedra – Três tragédias (São Paulo: Iluminuras), Os anos de exílio do jovem Mallarmé (Ateliê Editorial), A musa adolescente (São Paulo: Iluminuras), As obrigatórias metáforas (São Paulo: Iluminuras), O livro dos simulacros (Florianópolis: Clavicórdio).

Acadêmico da Unicamp, homem culto, erudito, estudioso da cultura grega, latina e da poesia francesa. Tive a satisfação de ser seu aluno ao cursar uma disciplina ministrada pelo professor Joaquim no Instituto de Pós-graduação em Educação. Ainda tenho recordações profundas do grande aprendizado que tive a oportunidade de vivenciar ao entrar em contato com uma pessoa tão especial como o professor Joaquim. Assim, é uma grande honra apresentar ao leitor do Poesia Diversa essa entrevista.

ENTREVISTA COM O PROFESSOR JOAQUIM BRASIL FONTES

1) No universo acadêmico ainda predomina em sua ampla maioria o estilo monográfico como forma de escrita. Sendo um ensaísta, como você vê o desenvolvimento do ensaio como forma de escrita e sua relação com a Academia?

R. A publicação, em 1580, dos Essais de Montaigne inaugura um gênero e a modernidade; e seu autor tinha consciência disso: referindo-se à aparente desorganização daquele livro singular, ele o compara à decoração em estilo “grotesco”, então no auge da moda, e nele denuncia, ironicamente, a presença de “corpos monstruosos, feitos de diversos membros, sem figura certa, não tendo ordem, nem proporção, a não ser fortuita”. Montaigne sabia estar dando direito de cidade, na escritura, a algo até então excluído do campo da representação: monstros, sonhos e a loucura enquanto elementos constitutivos do “eu”. O gesto que inaugura o ensaio como gênero tenta captar essa matéria inédita, inventando, ao mesmo tempo, o modo de dizê-la: o “ensaio” é um espaço/tempo em que o sujeito da escrita se arrisca perpetuamente.
No universo acadêmico – pelo qual tenho profundo respeito – o saber se constitui e circula de modo diferente. Tomemos como exemplo a filologia e seus métodos, desenvolvidos laboriosamente nas academias oitocentistas: “a Idade Média”, escreve Nietzsche em Humano, demasiado humano (parágrafo 270), “era profundamente incapaz de uma explicação rigorosamente filológica, isto é, do simples “querer-entender” um autor – foi alguma coisa encontrar esses métodos, não os subestimemos! Toda ciência só ganhou continuidade e constância quando a arte da leitura correta, isto é, a filologia, chegou a seu auge”.
Quando penso nessa dicotomia – estilo monográfico/acadêmico – eu me pergunto, em primeiro lugar, se suas fronteiras ainda estão nitidamente demarcadas. Elas não se tornam, às vezes, porosas? Em segundo lugar, me ocorre um adágio dos velhos alquimistas: Lê, lê, lê, e descobrirás.

2) A literatura contemporânea se caracteriza pela presença marcante de ensaístas em suas diversas formas, o mesmo não ocorre com os romancistas. Podemos afirmar que vivemos uma crise do romance? O que caracterizaria essa crise? Quais suas origens?

R. O herói da narrativa épica, uma vez nomeado, estava pronto para agir, e um epíteto costumava explicitar a essência desse sujeito: o Enéias de Virgílio é, desde sempre, pius. Ele encontra diante de si um mundo a ser organizado e é, antes de tudo, aquele que, avançando em território caótico, vence os monstros e funda um espaço propriamente humano. Teseu, vencedor das aporias do Labirinto é o arquétipo dessa figura do heroísmo.
Ora, o herói do romance burguês, quando entra em cena, é ainda um vazio que vai semantizar-se na escrita, às vezes rapidamente: ele encontra um mundo já organizado, com regras e leis já constituídos; um mundo que ele enfrenta, afronta. Desse combate, o herói do romance romântico sai geralmente vencido. Pense no Julien Sorel de Vermelho e o Negro. Lembre-se do Rastignac de Balzac.
Fala-se, hoje, em “crise do romance” como contraponto de uma “ruptura do sujeito moderno”. O que percebo é, também, uma abolição das fronteiras entre gêneros e formas, isto é, a explosão da própria Lei: veja A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Muito antes dela, veja o inclassificável Chants de Maldoror, que é de 1869, a Nadja de Breton ou Voyage au Bout de la Nuit, de Céline. Veja Macunaíma.

3) Qual sua perspectiva em relação à escrita fragmentária? O fragmento como forma de escrita (penso em Walter Benjamim) pode ser um novo paradigma em relação à crise do sujeito?

R. Frederich Schlegel, mestre romântico da arte do fragmento escreve: “Um fragmento tem de ser, igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito em si mesmo como um porco-espinho”. E Novalis anota à margem desse mesmo fragmento: “O porco-espinho – um ideal”.
Encontrei certa vez, no livro da Antologia Palatina dedicado às oferendas votivas, um epigrama delicioso, no qual o ofertante (imaginário), um certo Kômaulos, coloca no altar de Dioniso um porco-espinho que, “girando sobre si mesmo”, costumava roubar as uvas que secavam nas grades de vime dos bons comerciantes locais. Tudo, nesses versos, me lembra o “modo de ser” do fragmento: o fechar-se em si mesmo, o poder de apoderar-se de outros textos e transformá-los, o movimento vertiginoso da linguagem, o gosto da escrita secreta. Eis o texto, numa tradução minha, livre:

Envolto em armadura eriçada de lanças,
o larápio das grades de vime onde secam
uvas doces; o porco-espinho que, girando
sobre ele mesmo, enrodilhado, costumava
colher os frutos maduros da vide,
a Brô-
mios, deus do vinho, Kômaulos entrega, ainda
vivo, em oferenda votiva.

É preciso insistir sempre no fato de que a escrita fragmentária não é “uma opção estilística”, mas o signo da ruptura do próprio sujeito na escrita: não escreve fragmentos quem quer. Roland Barthes anota, num dos seus belos livros, que “na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Angelus Silesius): ‘O olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde ele me vê’”.

4) Em seu livro Eros, tecelão de mitos, somos levados a uma verdadeira saga histórica, simbólica, cultural, lingüística e hermenêutica em busca da identidade literária da poeta Safo de Lesbos. Qual seria a verdadeira face de Safo de Lesbos?

R. Esse livro, escrito há mais de vinte anos, “ acontece” no momento de uma passagem, para mim ao mesmo tempo brusca e temerosa, do universo da literatura francesa oitocentista para para o da Grécia arcaica. Retomando meus estudos de língua grega, eu traduzia, então, uma série de epigramas helenísticos da chamada Antologia Palatina, uma recolha organizada em plena Idade Média bizantina e redescoberta, no início do século XVII, por uma jovem humanista francês, Claude de Saumaise. Interessei-me vivamente pelo Livro XII dessa coletânia, atribuída a um poeta que teria vivido na época do imperador Adriano e se chamaria Stráton de Sardes. Trata-se da Mousa Paidiké, Musa Puerilis ou simplesmente Musa Adolescente. Uma boa tradução seria, talvez: A Musa dos Rapazes. Interessava-me compreender a erótica desses versos de inspiração pederástica (no sentido grego do termo), em sua relação com a escrita do desejo na modernidade e, particularmente, em Gide, Wilde, Genet, Mishima, Foster... tantos outros. Veja o tom dessa epigramática ao mesmo tempo erudita, delicada, mundana e irônica:

De Zeus comecemos, segundo os ditames de Áratos
– a vós, Musas, eu hoje não vou enfadar,
pois, se amo os meninos, se com meninos me deito,
têm algo a ver com isso as Musas helicônias?

A obsessão com a arkhé, “origem ou começo de todos as coisas”, marca o pensamento ocidental em seus primórdios; e de tal forma que, alguns séculos depois de o primeiro filósofo grego ter encontrado esse princípio na água, quando o erudito Áratos, nascido em Soles, na Cilícia, versifica – segundo velhas convenções da poesia didascálica – a astronomia e a meteorologia de sua época, a questão das origens volta a se impor naturalmente, pois àquele que vai falar de estrelas e planetas, de temporais e bom tempo, convém começar com o princípio celeste por excelência, o urânio Zeus, Senhor dos Relâmpagos: “ek Diós arkhómestha”, “De Zeus comecemos”, anuncia o poeta talentoso, elegante e claro, na trama das aberturas codificadas; e se a Musa Puerilis, escrita e ou compilada por Stráton de Sardes, parece inscrever-se, assim, na cumplicidade citacional de uma ortodoxia poética, o desembaraçado licenciamento das Musas, no verso seguinte,

a vós, Musas, eu hoje não vou enfadar

surpreende: de Homero aos menos ingênuos contemporâneos de Stráton de Sardes, sabiam todos os antigos que dessas sublimes mulheres provinha o sopro da divina inspiração: “Vinde, ó Graças delicadas; e vós, Musas de lindas tranças”: não é assim que Safo de Lesbos canta num de seus fragmentos, fazendo, da invocação, palavra poética que advém no seu anúncio – suspiro, súplica ou grito? Não são as Musas obrigatória presença, pouco importa se já num tempo de convenções textuais, na abertura de todo texto épico ou lírico, como lembra Sócrates no Fedro, num movimento discursivo do qual não está ausente, é verdade, a ironia?
Neste umbral, porém, às Musas o epigramatista se recusa a enfadar ou constranger; e é curioso notar o quanto, no contorcionismo sem dúvida sob muitos aspectos mundano desse verso, um começo absoluto se instaura, inscrito embora na segurança dos regimes da tópica antiga: estamos aqui na fronteira de um discurso radicalmente impermeável ao Feminino, quer esteja ele incarnado na potência da Musa sublime, quer se manifeste na própria epiderme, provocando em Stráton de Sardes um desgosto não sei se ali retórico, se aqui visceral.
***

Ora, não sei quem me pôs nas mãos (naquele momento eu já traduzira todos os epigramas do Livro XII da Palatina), os fragmentos de Safo de Lesbos, nos quais mergulhei imediatamente. Teria sido o Deus Acaso? A Musa da Ironia? Hécate, a potência das encruzilhadas?
Ali estava o Feminino em sua plenitude, o inverso da Musa Puerilis.
A poética de Safo de Lesbos: fragmentos, restos (como os dos pré-socráticos) de cantos destruídos pelo tempo, quase ilegíveis na superfície precária – papiro, pergaminho – em que tinham sido traçados há mais de dois milênios. Farrapos. Partituras em farrapos. Em torno de Safo, as imagens, então, reverberavam: a lésbica, a poeta, a grande amorosa. Não sei lhe dizer porque, mas a indagação sobre a poética de Safo abriu-se, para mim, in media res: em pleno século XIX, no momento em que Baudelaire situa a si próprio no alto de um penedo (tradições duvidosas contam que Safo teria saltado, por amor, da rocha de Lêucade), a pique sobre o mar. E eu, como que conduzido por um fluxo de fulgurações poéticas, tentava ainda encontrar uma imagem autêntica, “verdadeira”, de Safo de Lesbos. Ora, sob esse aspecto, a escrita desse livro é, ao mesmo tempo, uma decepção e uma conquista: enquanto as imagens brilhavam, evaporavam-se e reapareciam, o autor (“eu”?), dissovolvia-se também ele e se refazia perpetuamente, numa espécie de angústia que me deixou marcas corporais. E o que tem nas mãos o escritor desse livro, quando chega à suas últimas páginas? Responda, leitor.


5) Qual a importância de uma poeta como Safo de Lesbos para a lírica contemporânea?

R. Safo é a primeira grande lírica do Ocidente. Pound escreveu (à sua maneira deliciosamente brusca) o seguinte, a respeito da prece que a poeta dirige a Afrodite e se abre com o verso poikilóthron athánata Aphródita: “Ninguém chega nunca a produzir muita poesia digna de nota: isto é, no cômputo geral, ninguém produz muita coisa que seja definitiva, e quando não está fazendo essa coisa suprema, quando não está dizendo algo com perfeição e de uma vez por todas; quando não está acomodando poikilóthron athánata Aphródita, ou ‘Hist – said Kate the Queen’, ser-lhe-á muito mais proveitoso fazer os tipos de experiência que lhe poderão ser úteis em sua obra posterior, ou aos seus sucessores”.
A Idade Média conheceu Safo por intermédio de um poema do latino Ovídio, e guardou da grande poeta uma imagem provavelmente lendária: a de uma mulher apaixonada pelo barqueiro Fáon e que, desprezada, teria se precipitado nas águas do mar. (Quase tive a tentação de dizer: “nas águas do vertiginoso mar”.) Safo está presente na poesia francesa do século XVII. E na Itália Renascentista: se você entrar nas loggie papais do Vaticano, encontrará, entre os “grotescos” com que Rafael enfeitou os planos de suas pilastras, um mural com um elenco de poetas. De poetas dos poetas. Entre eles, uma única mulher. Em suas mãos, um papel com o seu nome: Safo.
Lembre-se do famoso quadro de Ingres, “A Apoteose de Homero”: entre os gênios poéticos, antigos e modernos, que cercam o Pai da Poesia, você verá, à esquerda, uma mulherzinha vestida de preto olhando para o espectador da tela. É Safo de Lesbos.
Safo é, além da sua poesia maravilhosa, um maravilhoso mito.
Safo é uma reverberação de imagens.

6) Recentemente, você ganhou o prêmio Jabuti de melhor tradução para Hipólito e Fedra – três Tragédias. Qual sua perspectiva sobre tradução? Para traduzir poesia é preciso ser poeta?

R. O prêmio me surpreendeu, pois a fantasia de ser um tradutor jamais figurou nos meus projetos acadêmicos: meus “exercícios de tradução” finalmente publicados sob seu nome – versões e ou variações em torno de Safo, Mallarmé, Baudelaire; de Eurípides, Sêneca e Racine –, nasceram de uma pergunta, de inquietações, de um devaneio que começaram sempre a pulsar em torno de uma palavra ou verso, ou de um conceito, abrindo, assim, um horizonte de escrita – o da inventio, isto é, descoberta. (Deveria desenvolver e explicar, aqui, esse paradoxo. Infelizmente, não consegui fazê-lo de forma satisfatória).

Em relação à linguagem, o meu ethos é, pois, o do ensaísta e ou ficcionista. Ou o da mistura – no sentido dado ao termo pelos estóicos – desses dois personagens.

Ao aproximar-me do mito de Hipólito e Fedra em suas versões grega, latina e francesa interessavam-me sobretudo as linhas de fuga que desses textos conduziam a três momentos e espaços de capital importância na cultura ocidental: a Atenas do século V a.C., a Roma imperial, a França de Luís XIV. O trabalho concentrou-se inicialmente no texto da Phaedra senequiana, escrito por um dramaturgo que era, também, filósofo, e de linhagem estóica.

Mas, como interpretar os problemas colocados pelo texto em sua língua de origem, sem traduzi-lo, e como traduzi-lo sem proceder-lhe à exegese? E como entrar no território complicado do comentário, sem articular o texto senequiano com o de Eurípides, dramaturgo acusado, por seus inimigos (ontem e hoje), de “filosofar” no palco? E como estudar a um e outro sem traduzir e comentar o Hipólito grego? Montava-se, assim, uma pequena armadilha que conduziria o tradutor a três tragédias antigas presas na trama da intertextualidade, como numa grinalda de flores (permita-me usar aqui uma tópica de tonalidade “alexandrina”).

(Parênteses a partir de um comentário de Benjamin: “Sabe-se que um comentário é algo diverso de uma apreciação moderada, que distribui luzes e sombras. O comentário parte da classicidade de seu texto e, com isso, de um preconceito. O que o diferencia, além disso, de uma apreciação é o fato de que ele concerne unicamente à beleza e ao conteúdo do seu texto”.)


7) Fale um pouco sobre seu livro A musa adolescente e sobre a tradução dos epigramas da antologia palatina.

R. Esse livro, que não sei se é um romance, passou por cinco versões, nas quais tentei acertar algumas contas comigo mesmo, com a tentação do epigrama, com a poesia, e com “as coisas dos amor” ou aphrodísia. É uma espécie de exorcismo. Um livro do qual saí transformado: só muito mais tarde, relendo A Musa Adolescente, compreendi que nele a linguagem havia dado conta, malgré moi, de umas hantises minhas. .

8) Você pretende ainda publicar esses epigramas? Qual a importância da antologia palatina para a lírica contemporânea?

R. Talvez...
A Antologia Palatina marcou toda a lírica do Ocidente, a partir da redescoberta do seu manuscirto na biblioteca do Eleitor Palatino. Você deve se lembrar de que Pessoa traduziu, do inglês, alguns de seus epigramas.

domingo, 1 de novembro de 2009

UM ENSAIO DO POETA CLAUDIO DANIEL


Apontamentos de leitura: Helder e Celan

A composição poética do português Herberto Helder baseia-se numa lógica da metamorfose 1: as imagens poéticas são alinhadas não como simples metáforas, ou como descrições objetivas das coisas, mas como sucessão instável de figuras, que perturbam a normalidade da representação e da leitura. A realidade aparece aqui não como um fato a ser descrito ou narrado, mas como matéria plástica, construída por analogias, signos que se movimentam em constante mutação. Essa filosofia compositiva utiliza o discurso para perturbar o discurso, valendo-se inclusive de recursos como a elipse e o fragmento, seguindo a estratégia de criar uma realidade própria na escritura: o poema não representa uma coisa, ele é esta coisa. As linhas funcionam como notações musicais, definidas pela intenção melódica e rítmica que organiza as palavras na página-partitura. Assim, por exemplo, no poema Joelhos, salsa, lábios, mapa (que evidencia, já no título, o recurso de aproximação das palavras sem um nexo lógico ou sintático aparente): “Abrindo no escuro, durante toda a neve, / os copos, os vestidos, os mapas. / E dentro de mim, rompendo peixes, / uma noite sensível cor de martelos. / Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse / martelo louco / nas borboletas. Então o meu cabelo / respirava — cabelo quente, telha / molhada. / Neve, borboleta, vírgula, estátua”. Esta organização semântica, em aparente desordem, sem dúvida nos faz lembrar a escrita automática dos surrealistas, em seu fascínio pelo imprevisto e pelo inverossímil; remete também a Dadá, a Lautréamont e aos simbolistas franceses, inclusive o último Mallarmé, que no prefácio do Lance de Dados reivindica uma estrutura poética similar à da música ouvida em concerto. Helder pertence à confraria dos autores excêntricos; assim como seus irmãos espirituais, ele se insurgiu contra o verso clássico, a retórica, a hegemonia da clareza e da objetividade, optando por uma imprecisão (ou abstração) voluntária. A preferência pelo obscuro, hermético ou paradoxal aproxima o poeta português do romeno de língua alemã Paul Celan, autor de versos como estes: “Verde-bolor é a casa do esquecimento. / Diante de cada portão flutuante azuleia o teu músico decapitado. / Bate o tambor feito de musgo e amargo pêlo púbico; / Com o dedo do pé ulcerado desenha a tua sobrancelha na areia. / Desenha-a, maior do que era, e o vermelho dos teus lábios. / Tu enches aqui as urnas e alimentas o teu coração.” (Tradução: João Barrento.) A princípio, uma leitura comparada dos dois poetas pode causar espécie: enquanto o romeno é dramático, por vezes trágico, orientado por um demiurgo tanático, o português é epifânico, celebratório, animado pelo princípio de Eros (embora um Eros travesso, que não exclui a deformação e a crueldade). Celan está embebido de história, geografia e da saga do povo judeu; Helder movimenta-se fora de planos reconhecíveis de espaço e tempo, erguendo fronteiras imaginárias (fazendo lembrar o Rimbaud de Uma Estação no Inferno: “Jamais pertenci a este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício”, na tradução de Ledo Ivo). Se há uma religiosidade ou mitologia em Helder, ela está mais próxima do orfismo, da jornada simbólica ao Hades em busca de Eurídice (“Beberei sua boca, para depois cantar a morte / e a alegria da morte”). No campo semântico, porém, é possível traçarmos um paralelo entre os dois poetas, começando pela similaridade de temas ou palavras-chave, extraídas da tradição romântica: noite, cegueira, loucura, sangue, morte 2. O uso da analogia e das imagens poéticas (compreendidas aqui conforme o conceito de Réverdy 3) também é nítido, especialmente, na primeira fase de ambos (Papoula e Memória, de Celan, e O Amor em Visita, de Helder). Objetos retirados do cotidiano, elementos da natureza, instrumentos musicais, estados de espírito, partes do corpo humano ou substâncias orgânicas são combinados de maneira inusitada com outros materiais, concretos ou abstratos, em versos de deliberada alquimia: “crê no escaravelho dentro do feto”; “amamo-nos como papoila e memória” (Celan, em tradução de João Barrento); “a morte sobe pelos dedos, navega o sangue”; “a paisagem regressa ao ventre, o tempo / se desfibra” (Helder). Apesar dessa convergência, é preciso traçar uma distinção fundamental entre as duas poéticas: em Celan, a imagem é um dos elementos constitutivos do discurso, que tem uma respiração meditativa, um andamento quase litúrgico (ecoando, não raro, o hino bíblico); em Helder, ela é a base estrutural; todo o poema se desencasula a partir de entrecruzamentos de símbolos. A evolução posterior de ambos irá evidenciar outras diferenças essenciais: enquanto no português há um crescente desregramento, um fluxo incessante de figuras e percepções, no romeno revela-se maior equilíbrio, síntese e concentração; essa disciplina severa é responsável por linhas lacunares, de teor quase oracular, pela concisão e obscuridade 4.

A experiência imagética 5 é mais evidente na lírica erótico-amorosa destes poetas, onde a mulher assume dimensão sobrenatural, ela é a origem da Criação, o Universo e cada uma de suas manifestações: “As coisas nascem de ti / como as luas nascem dos campos fecundos, / os instantes começam da tua oferenda / como as guitarras tiram seu início da música nocturna” (Helder); “Projecta a sua luz ao longe sobre o mar, / desperta as luas no estreito e ergue-as sobre mesas de espuma” (Celan, traduzido por João Barrento). Sem dúvida, essa hipérbole permite diferentes interpretações, de cunho teológico, metafísico ou psicanalítico; ficando apenas no campo poético, podemos dizer que essa idealização do feminino motiva o romeno e o português a uma visualidade radical, a uma estética do excessivo, da saturação simbólica, de um Eros que fecunda e multiplica os vocábulos, até a abstração (assim como ocorre nas passagens mais densas do Paraíso de Dante). Na seara tanática, outra obsessão de ambos, há um corte radical: em Helder, a morte é um acontecimento simbólico; em Celan, um espectro que ronda sua carne, que ameaça seu povo de extinção (um registro exemplar é o conhecido poema Fuga da Morte: “... a morte é um mestre que veio da Alemanha / arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus”, na versão de Barrento). Para evocar o genocídio, promovido pela mãe de seu idioma, Celan assume um tom mais sombrio, incorporando à sua voz outras vozes, de poetas que também passaram pelo flagelo da guerra, como Georg Trakl. Não por acaso, há nesse poema um diálogo intertextual com o poeta austríaco, vítima de consumo excessivo de entorpecentes, após presenciar os horrores de Grodek: “Na casa vive um homem que brinca com serpentes” (Celan); “Na sua cova o mago branco brinca com suas cobras” (Trakl, no poema Salmo, aqui traduzido por Paulo Quintela). Nesta peça, Madame La Mort é uma visitante da história, que traz consigo a cultura que produziu Goethe e Auschwitz. Celan, embora estrangeiro (sendo romeno, judeu e exilado em Paris), é um herdeiro desse território simbólico e cultural, não apenas pelo idioma como pelo diálogo com a tradição da literatura alemã. Helder, que também é um estrangeiro em seu isolamento voluntário, cria para si uma tradição, escolhe a sua origem, incorporando à língua materna referências de outros âmbitos culturais. Sob essa mirada, Helder encontra-se mais próximo de Sá-Carneiro (outro étranger espiritual) do que de Fernando Pessoa, que em Mensagem intentou uma fabulação mítico-poética de Portugal, com a utopia visionária de um Quinto Império, que sucederia os anteriores (“Grécia, Roma, Europa, Cristandade...”). Em Celan, há o desespero da história; em Helder, a refundação da história, por meio da escritura 6.

BIBLIOGRAFIA

CELAN, Paul. Sete Rosas Mais Tarde (trad. João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia, 1993. CELAN, Paul. A Morte é uma Flor (trad. João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia, 1997. HELDER, Herberto. O Corpo O Luxo A Obra. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000. LAUTRÉAMONT. Obras Completas (trad. Claudio Willer). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2ª. ed., 2005. RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno e Iluminações (trad. Ledo Ivo). Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1982. TRAKL, Georg. Poemas (trad. Paulo Quintela). Porto: Ed. O Oiro do Dia, 1981.

DANTE ALIGHIERI: A PORTA DO INFERNO


Inferno, Canto III

Vai-se por mim à cidade dolente,
vai-se por mim à sempiterna dor,
vai-se por mim entre a perdida gente.

Moveu justiça o meu alto feitor,
fez-me a divina Potestade, mais
o supremo Saber e o Primo Amor.

Antes de mim não foi criado mais
nada senão eterno, e eterna eu duro.
Deixai toda esperança, ó vós que entrais.

________________________________

Per me si va ne la cittá dolente,
per me si va ne l’Etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse Il mio alto fattore;
Fecemi la divina Podestate,
La somma Sapienza E’L Primo Amore.

Dinanzi a me non fuor cose create
se non Etterne, e io etterna duro.
Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.

Tradução: Italo Eugenio Mauro