domingo, 30 de outubro de 2011

CARLOS TRIGUEIRO (LEITURAS)








Devemos acreditar na ficção brasileira?

Ser evolvido por uma narrativa tanto em uma perspectiva temática como lingüística, requer de uma obra literária o auspício de seu autor como um autêntico mestre do gênero. É o que sentimos ao entrarmos em contato com a obra, seja os contos, ou o romance, do escritor Carlos Trigueiro. O leitor é tomado pela narrativa. Envolvido por uma linguagem clara, sensível porque poética, de grande poder de síntese em muitos momentos, mas, sobretudo repleta de profunda elegância. Ler Carlos Trigueiro é atravessar temáticas sérias, densas, recorrentes ao cotidiano, mas que se tornam leves devido ao domínio da ironia, do sarcasmo e do humor e da fantasia. Traços de sua escrita, e que revelam um escritor analítico, porque observador da realidade. A ficção brasileira mostra todo seu vigor no livro de contos Confissões de um Anjo de guarda, e no romance Libido aos pedaços. Assim, Carlos Trigueiro se revela como a resposta positiva a nossa indagação.



Hilton Valeriano

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

YVES BONNEFOY: POEMA

(Nicoletta Tomas)




A ESPUMA, O ARRECIFE



Solidão a não escalar, quantos caminhos!
Vestes vermelhas, horas tantas sob as árvores!
Adeus, nesta alva fria, minha água pura,
Adeus, mesmo apesar do grito, o ombro, o sono.
Escuta, nunca mais as mãos que se retomam
Como perpetuamente a espuma e o rochedo,
Nem mesmo aqueles olhos que buscam a sombra,
Amando antes o sono ainda partilhado.
Nunca mais se tentar unir voz e oração,
Noite e esperança, anseios do abismo e do porto.
Vê, não é Mozart que luta em tua alma,
Mas o gongo, contra a arma disforme da morte.
Adeus, semblante em maio.
O azul do céu é tíbio neste dia, aqui.
Do astro da indiferença o gládio fere ainda
Uma vez mais a terra do que está dormindo.

CÉSAR LEAL: POEMA

(Ruaz)





Carta aos rinocerontes


Não sei se estou mais presente na Terra
do que estariam uma rosa e uma dália.
Nem um milésimo das coisas que vejo diariamente
está contido em meus poemas...


Sei que o leitor poderá dizer isso agora:
"— Você não é um bom poeta! Castro Alves
é mais participante, mais exato,
transporta o mundo — ou pelo menos sua metade
no Navio Negreiro.


Mas você — que leio agora —
não me acende nenhuma luz,
agarra-se demasiadamente aos anjos,
a uma forma estéril
que não fala ao tempo,
aos pássaros,
e menos ainda ao meu coração".


Ouço-te e repito
que sou apenas pequena parte das coisas
que estão no mundo
com certeza não sou a menor parte
e, por isso, tens que me aceitar
se és um leitor e não apenas um crítico.


Se minha poesia te cansa,
peço-te: come as saladas de Souzândrade; bebe
lentamente as gotas de orvalho que fluem dos Caligramas
de Apollinaire...


Elas satisfarão tua fome e tua sede,
ou terás uma sede e uma fome tão estranhas
que suportarias ainda Maiakovski,


Evtuchenko, Voznessenki, Pound
e toda a galeria dos participantes
que ficam à tua direita e à tua esquerda?


Quanto a mim, pouco te posso oferecer:
não escrevo para los muchos
arranco de mi corazón el capitán del inferno,
establezco cláusulas indefinidamente tristes


Esgotados os estábulos aonde os teus donos
guardaram para ti alimentos tão nobres,
ainda restariam os membros do Clube dos Ultraistas,
Tzara e todos os que, à semelhança dos empregados domésticos
sopram trombetas das 6 às 6,
repetindo eternamente a contínua canção:
"somos os que andam na vanguarda do Tempo".


Quanto a mim continuarei sozinho,
solitário como um estranho rio
de um território ainda não visitado pelos geógrafos,
abrindo sem descanso a minha estrada
certo de que alguém um dia
— anjo ou demônio —
caminhará por ela até a porta do meu nome.

ILDÁSIO TAVARES: POEMA

(Gabriel Ferreira)




Balada da Babilônia



Eu não quero esta mulher

que me fascina na tela,

cheia de luzes e cores,

encaixotada no vídeo

como ração refulgente

pra se comer com os olhos

que faz de mim mariposa

querendo que eu queime as asas

na luz da televisão.



Eu não quero essa mulher

que se entrega nua em pêlo

nas páginas das revistas

na distância do papel

e quer o meu onanismo;

e quer dinheiro por nada

com seu corpo de escultura

de mármore feito carne,

seu sexo milionário.



Eu quero aquela menina

lá no alto do sobrado

com as pernas grossas ocultas

pela grade da sacada

que me sorri quando eu passo,

sorrindo as vagas promessas

dos sorrisos das mulheres,

todo encanto que entreteço

na minha imaginação.



Eu quero aquela menina

que trabalha no escritório

e que, quando cruza as pernas,

todo mundo fica louco –

com o decote generoso,

mostrando as marcas das alças

do biquíni no seu colo,

apontando para os seios

palpitantes, quase à mostra.



Eu quero aquela menina,

caixa do supermercado

que troca olhares furtivos

enquanto registra as compras,

com sua farda que cuida,

lava e passa todo dia

para estar no seu trabalho

com a elegância do pobre.



Eu quero aquela

menina

que é balconista no shopping

e que apesar das varizes

fica em pé o dia

todo,

atendendo com um sorriso

os clientes oportunos:

que sai só, tarde da noite,

sem perder a sua pose

no sacolejo do ônibus.



Eu quero aquela menina

colega de faculdade

que me dá cola no exame

e nem sequer é bonita

(mas empresta o apontamento),

com quem estudo pra prova,

colando coxa com coxa

imaginando loucuras,

sem coragem para falar.



Não. Não quero essa mulher

que está em oferta na praça.

Eu quero mulher de graça.

Eu quero poder sonhar.

Tanta beleza me oprime,

tanta sensualidade

tanta perícia na cama.

Sou amador. Quero amor.

E não profissionalismo.



Os meus olhos são meus olhos.

Minha cama é minha cama.

Não sou rei pra ter rainha –

a mulher que fosse minha

nem minha tinha de ser.

Tinha que ser dela mesma

e ser o seu sentimento;

e ter em seu pensamento

querer ser minha mulher.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

EPIGRAMA

(Gabriel Ferreira)






EPIGRAMA (8)



Sob sol ou chuva,


vive seu caminho


todo aquele que se sabe sozinho.

FLORISVALDO MATTOS: POEMA

(Jean François Millet)



Campesino


Como folhas caindo num deserto,
humanas resistências vão caindo
sobre campo sem sol. Peito coberto
de um só grito esperança vai cobrindo.

Rude labor de enxadas consumindo
sangue que dá de sangue um sonho certo,
esperanças do amanho já sumindo
na sede de esperança que está perto.

Amargas deslembranças param, vendo
no íntimo do espetáculo chuvoso
a aparecido desaparecendo.

Antes que o amor se ausente ao chão sem húmus,
já baixam sobre o campo generoso,
as águas da manhã movendo rumos.

AFORISMO




232


As primeiras palavras de um homem deveriam levá-lo a um ato de confissão.

domingo, 23 de outubro de 2011

AFORISMO

(Felipe Stefani)







233


Se tivesse que definir o homem, o definiria como um animal dúbio, cuja principal característica consiste na oscilação permanente entre a mentira manifesta de seus atos, e a verdade latente de seus desejos.

sábado, 22 de outubro de 2011

FLORISVALDO MATTOS: POEMA

(Bouguereau)





Passos e acenos


Nada tens de ave. Fera lúcida, olho
felino (pantera de Rilke entre grades)
nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos,
bebo teu corpo, teu cabelo (franja
dos dias) — o mais dardeja. Também és
elástica e macia: braços, pernas
de roliça cogitação. Vais, vens.
De pé, agitas os vaporosos membros,
ao calor da voz que atordoa o vento.
Sentada, as formas se acomodam, urdem
rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do sexo, ávido. Bem
que mereço essa onda, ronda de garras
que me acenam, me buscam pela tarde.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO: POEMA

(Ismael Nery)





SENTIDO


Os homens vinham e havia um caminho.
Continuavam, e o prumo os esperava,
e eles seguiam acreditando nisso:
sempre rumar — sempre sempre sempre.

Os homens nunca chegavam a algum lugar,
mas iam eternamente em busca de,
pois não queriam nem suportariam
entender a verdade do lugar nenhum.

MOACIR EDUÃO: POEMA




RETRATOS

Por que tanto se esgueira o amor
ao falar de seus próprios segredos?
é difícil a ele contar de si mesmo,
que dirá a nós, simples amantes.

não, não há mistério algum.
o amor é uma estrada transparente
que reluz do sumo das ideias
do homem e da mulher completos

sim, há um pouco de incerteza,
como há clareiras e margens
na estrada que vidra o transeunte

mesmo assim, que obstáculo afável
forra de necessidade todo gênero
tornando inteiros homens e mulheres.

AFORISMO



(Ismael Nery)



231

O homem não será vítima de suas ilusões se não for vítima do amor.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

POETA LEILA KRÜGER






LEILA KRÜGER nasceu em Ijuí, a noroeste do Rio Grande do Sul. Atualmente reside em Porto Alegre. É poeta, contista e romancista. Tem poemas e contos publicados em jornais e revistas. Lançará “Reencontro”, seu primeiro romance, em novembro – 2011, pela Ed. Novo Século – SP. Tem, em fase de conclusão, um livro de poemas. Cursou Desenho Industrial – Habilitação em Programação Visual na Universidade Federal de Santa Maria – RS e, em 2011, tornou-se mestre em Comunicação Social, pela PUC – RS. Classificou-se em quarto lugar no XXXIII Concurso Internacional Literário, nas categorias Poesia e Conto, que serão publicados na coletânea “Amanhã, Outro Dia”, pelas Edições AG, em 2011. E-mail: leilagiselekruger@gmail.com; Twitter: @Leilagikruger.

LEILA KRÜGER: POEMA

(Lucio Fontana)




RETORNO DE MIM


Aprendi a me deixar podar pela vida.

Deixar que me arranquem os galhos, tal braços, sem dó,
ou com dó, tanto faz...
mas que me arranquem inevitavelmente
e façam de mim o que eu nem sei.

E se eu não souber tudo bem, porque aprendi também a voltar...
mais alta e mais graúda,
do tamanho de um coqueiro na praia deserta.

Também aprendi a me balançar na praia e até a tocar as ondas.
Tudo me deixa forte. Tudo um dia me deixará forte.

E nada me deixará, nunca mais, seca... agora eu posso amar.


LEILA KRÜGER: POEMA

(Lucio Fontana)







A QUEDA DA BASTILHA


Enfim perdi a batalha surda contra a própria mudez.
Enfim a inoperância de meus punhos
para esmurrar estes labirintos de ferro,
para desnudar o universo.

Enfim, voltei... enfim não sei mais!

Enfim me recolho com meus únicos próprios braços,
esperando, no entanto, que haja ainda alguma bondade
nestes pequenos fardos.

Enfim acato a tristeza como uma rosa frágil que é minha...

Enfim não espero nada,
mas acredito em tudo aquilo que não é passível de ser verdade.
Como sei agora,
posso embalar a verdade em meu colo
até que ela acorde, e me olhe.
Caso ela não fuja eu um dia a verei crescer...

Como os carvalhos antigos que arrebentavam o céu,
assim cresce a verdade em meu pequeno bosque.
Copas silenciosas, em nuvens vagarosas, em tardes apenas grenás.

Enfim, perdi...
mas chorei como quem vence. Então venci!

sábado, 15 de outubro de 2011

W.J.SOLHA: TRIGAL COM CORVOS (FRAGMENTO II)

(W.J.SOLHA)










Pra que?
Um poema não arrasta 150 vagões de minérios pela estrada-de-ferro
um poema não ergue 400 passageiros e os leva pr’ outro lado do mundo
- e aqui vou fundo:
não produz – mesmo se prolixo - alimentos suficientes pr’os que fuçam meu lixo.
Serve apenas.... pra dizer que passado e futuro são provisórios como icebergs e dunas
um
quase sempre entre lendas
outro
descrito com runas.
Serve pra dizer que ao ver Terra e Lua fotografadas de Marte
minúsculas na treva intensa
veio-me a idéia de que tudo é nada
e orgulho... imenso
da foto realizada.
Serve pra dizer que as melhores cachoeiras de Foz do Iguaçu ficam no lado argentino
mas que o espetáculo só do lado brasileiro se goza
confirmando – ao que parece - que é mais divertido ser amante do que marido
- seja em verso
ou prosa.
Serve pra dizer que me fascinam as mudanças de canal que me ocorrem na mente quando penso em lua
rua
nua
e
crua.

Pronto:
talvez eu faça versos porque haja algo a dizer... vago... e belo... como as paisagens na névoa
na China.
O que pode ser
não sei.
A erosão
que cavou o Grand Canyon
produzindo aquela Manhattan de pedra no Arizona
ergueu catedrais góticas no Monument Valley com tanta inocência quanto Bosch - o genial debilóide – foi surrealista... séculos antes de Freud.
Meu neto
ao me perguntar
depois de ver vários filmes em branco e preto comigo
se no meu tempo não havia cor
foi um criador inocente
sem tirar nem pôr.
Claro que para construir uma acrópole... precisa-se de fé... e pedra
mas pedra – aqui - é o que não falta
além de outras palavras lindas
como rocha
cristal
cedro
flores
...libélulas
... e mágoa
... além de “água”
mil vezes superior a “water”
sem falar de “nuvens”
muito mais “nuvens” do que “clouds”.
O fato de isso não ter sido problema para Shakespeare
apenas prova que em terra onde todo mundo dirige na contramão
ninguém bate.
Admito
no entanto
que o castelhano dá um tom encantatório a la noche
a la luna
a las mujeres
al corazón
y al sol
e que atmósfera é tão mais leve que atmosfera quanto nosso ferro é menos pesado que hierro
o que me faz pensar em certa perda de magia nos versos em português
( mas isso é frescura e logo passa ).
O importante é a percepção da mecânica da coisa:
O importante é fazer como os rios
sempre vindo de presépio humilde e de lento crescimento
mas com passagens por campos e boqueirões
sofrendo cheias
secas
corredeiras
monções
baques em cachoeiras
grandes esperas em lagos e barragens
pasmaceiras
até que chegam ao mar em que tudo em tudo se funde
inclusive o princípio
que com o fim se confunde.
O importante é a percepção da mecânica da coisa:
Eugenio Arias - barbeiro de Picasso - enquanto conversava com seu fre-
guês e o escanhoava
viu-o
aqui acolá
ilustrar o que dizia com desenhos em papéis de embrulho calendários
livros de várias áreas
pintar cenas de tauromaquia nas caixas de seus instrumentos
viu-o criar figuras soltas nas tigelas de espuma
uma aquarela surgir na contracapa de um catálogo de Arte ( em que o artista
se representou servindo ao conterrâneo uma porção de tourinhos fritos regados a vinho espanhol)
viu a nova companheira do pintor - Jacqueline Roque – ser-lhe apresentada em traços ligeiros
enfim:
sessenta peças ao todo
hoje no Museo Picasso
de Buitrago de Lozoya
75 km de Madri.
Esperto – já que sem gênio - o Eugenio
no toque de Midas do outro
teve seu prêmio.
Foi o que fez o Camões querendo o toque de Virgílio que quis o toque de Homero
e é o que também quero
pois é isso
ou zero.
Claro:
não há
mais
interesse em anjos e deuses
não há
mais
impacto na maçã com parafuso no furico
como na foto de Man Ray
eu sei
e ninguém mais se impressiona com o buñuelesco burro morto em cima do piano
se não me engano
nem com relógios moles ou cheios de formigas
de Dali.
Mas o que me tem faltado – talvez - seja algo mais poderoso e sutil do que meus cinco ou seis sentidos
que sabem disso.
Algo como aqueles mil olhos do partido
que – dizia Brecht – lhe davam a visão completa das coisas.
Mas não existe mais o partido
e é estranho como agora vamos vivendo – todos – com provisórios valores:
publicitários padres médiuns astrólogos
traficantes políticos terroristas
rabinos pais-de-santo artistas vigaristas
psicólogos.

Por isso
talvez o máximo que eu consiga – em versos – seja um resultado final ao nível dos imaculados carros ainda sem donos
nas concessionárias
que não param de ser produzidos
de forma extraordinária
mas sem a perfeição... de um Mercedes Benz Special Roadster 500k
de 1936
ou de um Porsche 911
ou Ferrari 456 GT
dos anos 90
nem de um Hispano Suiza Nieuport
1924.
Conto
no entanto
com o Tempo
essa poderosa
inflexível
lenta
enigmática e
colossal conseqüência do avanço da máquina do mundo
travada em marcha única ( apesar das urgências e emergências ou ausência de expectativas de todo tipo que nos têm dado a ilusão de que ele às vezes urge
ou muge )
pelo que Van Gogh se matou em 1890 logo depois de pintar o atormentado “Trigal com Corvos”
sem saber que
se tivesse resistido mais três anos
assinaria “O Grito”
de Munch.

W.J.SOLHA: TRIGAL COM CORVOS (FRAGMENTO I)

(W.J.Solha)











como o solo do sol sobre o solo
chego-me feito vira-lata que vê você passando na rua
muito na sua.

Se não me quer
tudo bem.

Afinal
também sou louco por arte mas o Guernica não me tem entre seus fãs
nem Machado de Assis e Brahms.

Você
por certo
por conta do título do livro
percebeu que não tenho a graça de um Miró
que desenhoanimava o mundo com estrellas y libélulas
nem a de um Frá angélico
que constelava o chão de flores e floria o céu de estrelinhas
com angelos nas entrelinhas.
Que minha arte é bruta.
Coisa
às vezes
pra filho da puta.
Aqui você vê minha morte chegando com aquele quê de Ku-Klux-Klan
a idade me devastando a vaidade
me deformando
eu já antevendo a funerária me encaixotando e me despachando pr’ outro mundo
como já encaixotou e despachou o Século XX
em que nasci.
Acredito que meus poemas sofram ( literalmente ) a influência daquela épo-
ca que começou com as esqueléticas vítimas do Holocausto e os seres magérrimos de Giacometti
cheia de monstros à maneira de Bacon
Iberê Camargo
e De Kooning
e a que eu – nunca neguei – assinei em baixo
como Oskar Kokoshka:
OK.

Mal piso na balança e o ponteiro me dedo-dura preguiça e gula
minha preocupação com os Principais Problemas do Universo se anula
e a questão que mais importância me ganha – ao menos por um momento –
é a de perder banha.
Agora
no terceiro milênio
com o mundo cada vez mais me parecendo uma ficção científica
sinto-me maria-fumaça apoplética
vindo-que-vindo com tudo
com minha velha poética.
E aí?
Volto à pintura?
Tiro um cochilo?
Sei que meu raciocínio às vezes tem os encaixes aparentemente desconchavados das mandíbulas de um crocodilo
mas é que as quatro estações pelas quais passei
nesse trem
foram
mais ou menos
A Primavera para Hitler
o Summertime de Gershwin
o Outono do Patriarca
e o inverno de nossa desesperança
daí ... versos
como fez para falar de seu tempo aquele sujeito tranqüilo
cujo sobrenome ( traduzido ) era
Agitalança.
Às vezes acho que escrevo apenas porque minhas semanas são cestas imensas – quase sempre vazias – tecidas com sábados domingos segundas terças quartas quintas e
sextas
e que o meu anseio é enchê-las
de pães ou cores
florilégios ou... dores.
Mas
não:
poemas são constelações em busca de sentido
como libra tauro e leo
no céu.
Ou
- não sei:
Na verdade
o homem
quando não tem problema
inventa-o:
mete-se num rali ou escala o Himalaia
fuma ( pra tornar mais denso o próximo minuto )
arranja um rabo-de-saia.
Em vez de viver
escrevo.
Pensando
como uma anta
que poeta é como pescador
que colhe o que não planta.
No entanto
como diz Hamlet
parece que há – de fato - uma divindade cuidando de levar os projetos humanos em frente
por mais precários que sejam.
O segredo está em ser como o jóquei
tão leve quanto uma mente
... que o cavalo leve.
Ou como plantas aquáticas que espalham seus arquipélagos pelos lagos
... até que venha um Monet.
Não sou grande poeta
né?
mas embora moinhos sejam símbolos da Holanda
eles aparecem no “Quixote” de Cervantes
n”A Bela Moleira”
com Sophia Loren
e há o Moulin Rouge.
Por isso o ratinho ruge.
E lá vai o peso-pena enfrentar o peso-pesado
como se deu
no passado
com o minúsculo Miguelângelo ante o gigantesco Davi.
Caramba
não quero uma revolução!
Afinal
nosso Emiliano não foi Zapata
mas Di Cavalcanti
que só pintava mulata!
Não sou do tipo Jeová
que urra I am!!!

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

IACYR ANDERSON FREITAS: POEMAS

(De Chirico)






SEMENTE

É preciso deixar
que fujam, e que contem
com as roupas doadas
pelas mortes de ontem.

Eles podem levar
ao destino a semente
- um amor que maltrata
quem mais o experimente.

Mas não deixe que fujam
à fuga verdadeira:
da vida que tiveram
tão pobre e tão rasteira.


A LUTA MAIOR

Mesmo o minuto que me vence
em si já estava vencido:
contra suas próprias vitórias
vibram velhas contas de vidro.

E é de vidro também o incêndio
da mesma falta de sentido
que me torna um lutador
até por seus mortos vencido.

Um lutador que desconhece
glória que lhe sirva de abrigo,
que sabe que a luta maior
se dá em seu corpo, consigo.



Livro viavária. Ed. Nankin.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

KARLENO BOCARRO (LEITURAS)





Um grande romancista não comporta apenas juízos sobre os fatos que compõem sua obra, mas a vivência de sua temática como fenômeno de linguagem. Seus personagens não encarnam somente um plano fictício, mas expressam por meio da ficção a semântica da vida, ou seja, sua significação como fato humano. O filósofo Karl Kraus, afirma em um de seus aforismos, “que o escritor seria aquele que diz ao público uma obra de arte”. Karleno Bocarro, em seu romance, “As almas que se quebram no chão”, representa essa máxima com a competência digna dos grandes escritores. Sua escrita clara, fruto de uma prosa realista, onde os acontecimentos são o foco da narrativa, sobretudo os que se relacionam às ações dos personagens, revela um mundo histórico em ruínas, o que faz dessas mesmas ações uma constante busca de sentido; busca malograda pela falência do contexto histórico em sua dimensão ideológica, em sua justificação dos atos e propensões dos homens. Karleno Bocarro expõe em narrativa existencial a grande questão da liberdade. Personagens como Bocas, Barad e Marco, são vítimas da vida em seu estágio estético (segundo a ótica da filosofia de Kierkegaard), onde as convicções encerram-se em expectativas volúveis ou mesmo circunstâncias fatais, como o caso de Barad. Penso nos versos do poema A Escolha, de Jorge de Lima:


Começarás escolhendo e te proibindo/entre os frutos misteriosos,/e escolhendo o que deves dar como Abel ou Caim.”


Karleno Bocarro se revela um grande escritor na medida em que narra com maestria uma das grandes temáticas da existência humana: o sentido do livre-arbítrio.


Hilton Valeriano

ROMMEL WERNECK: POEMAS

(Jean Delville)




TERZA RIMA II


A M.P.


Se podes me trazer o horrendo luto
No eterno sofrimento desta vida
Como deve ser bom morder o fruto!


Se deixas uma vítima ferida
Por teu rancor e sede de vingança
Quanta glória em sentir alma perdida!


Se iludes os teus homens de esperança
Fazendo sempre vis promessas vagas
Melhor o inferno me enfiar a lança


Se a beleza do mundo tu apagas
Por ofuscares tudo em teu aroma
É porque tu és uma das dez pragas


Se a tua ira a todos nós assoma
Em maldições de guerras tão supremas
Como te quero, lúbrica Sodoma!


Se rejeitas meus versos. Se blasfemas,
Se descrês no destino, em nossa sorte,
Se duvidas das flamas mais extremas,


Quisera então poder beijar-te forte!
Como queria estar nos braços teus!
Como queria deste amor a morte!
Como queria neste céu ser Deus!



PROSADOR


A M.P.


Ando lendo este mau prosador
E por isto virei seu trovador


O romance sublime que fez
Me mostrou que desejo o escritor


O seu rosto me trouxe palavras
E que tento nos versos compor


As palavras perfeitas que escreve
Me tornaram seu novo cantor


Nos poemas preciso exultá-lo
Revesti-lo de grande louvor


La vem ele na grã procissão
Eu que levo nos ombros o andor


O deus grego caminha elegante
Algum Sol pode ter mais fulgor?


O barão de café, nos meus sonhos,
Surge lânguido em leve palor


Como príncipe, herói de seus contos
E antes mesmo de um beijo d’amor


Ele volta aos romances que escreve
Na fumaça, no fim, no vapor.


JORGE TUFIC: POEMAS

(Mark Rothko)







Voragem


Rostos que nunca vi, jacintos murchos
cujas sonatas frias me tocaram,
estes rostos não quero: eles são breves
no desfile das pálpebras cerradas.
Penso naqueles outros, familiares
rostos de toda a vida. Cataventos
da rua ainda sem nome, alagadiço
porão da infância, arpejos e trigais,
dai-me a ver novamente ou mesmo em sonho,
estes semblantes nunca repetidos,
graves alguns, mas todos inseridos
na memória dos dias voluntários.
Cemitério, talvez, dessas lembranças,
todas, em mim, são rosas e crianças.


Calendário


Calendário
vida,
ainda se fosse possível
compreender esses códigos
gravados na cripta
dos teus avessos.


Então
as palavras já nasceriam
feitas,
a lã
não teria seus pastores,
nem os pastores
seus montes,
nem as montanhas
suas grutas de rapina,
nem o chão da terra
os rastros da serpente.


Nem os maus seriam chamados
para mudar o caminho
da história;
nem os bons haveria
porque a bondade
e o martírio
jamais se banham nem se repetem
nas águas do mesmo rio.


PROSPECÇÃO

Ninguém te vê.
Só os ventos te penetram.

Ninguém que esteja saciado
ou faminto
necessita de ti.

Neste exato sem nome
reintegra-te à nuvem que passa
e ao canto das aves.

o poeta, já o disse,
é um ser transparente.

Invicto. Desnecessário
entre porcos, hienas
e outros viventes

solidariamente incompletos.

MAJELA COLARES: ENSAIO

(Felipe Stefani)











POESIA DE REPENTE



Ao poeta-repentista Lourinaldo Vitorino


É chegada a hora de rumar o pé na estrada e rastrear, mundo adentro, o universo telúrico, original e encantador da poesia popular, focando com maior atenção o território da cantoria. Não é fácil! Precisarei de um guia, um rastreador de fôlego largo e olhos de gavião rapina... ao mesmo tempo poeta e bom parceiro de viagem. É coisa rara! Muito rara. Épa! Lembrei de um; melhor impossível... Orlando Tejo.
... estamos à caminho. O sol é fogo de coivara em chamas. Vez por outra saltam versos faiscantes, vindos de todas as direções. A prosa é boa. Dizer de poesia popular é bom que se comece a falar em cantoria, improviso, repente. Cantar uns versos. Fica melhor... um desafio. Bem melhor! – Mas tem que ser bom! Ressalta Orlando Tejo. – Claro amigo Tejo, muito bom; assim... Pinto do Monteiro começa:
(...)

No lugar que Pinto canta
não vejo quem o confunda
o rio da poesia
o meu pensamento inunda
terça, quarta, quinta e sexta
sábado, domingo e segunda...

e Louro do Pajeú rebate:

Sábado, domingo e segunda
terça-feira, quarta e quinta
na sexta não me faltando
a tela, pincel e tinta
pinto, pintando o que eu pinto
eu pinto o que Pinto pinta!

– assim, companheiro, é demais! Diz Tejo sorrindo após uma longa baforada em seu cachimbo. Cantoria das grandes! Improviso puro! Éeee... Pinto do Monteiro e Louro do Pajeú em combate. A maior dupla de repentistas que o mundo já viu; conclui, com a fumaça feito redemoinho em torno de seu bigode.
* * *
A cantoria, ao ritmo da viola, segundo o escritor, ensaísta, poeta, jornalista e, ora, guia literário, Orlando Tejo, nasceu em Teixeira, cidade paraibana encravada no ponto culminante da Cordilheira da Borborema, há precisamente (contando de hoje, 06.09.2002) 144 anos, 2 meses e 17 dias. Confia na exatidão desses dados, o mestre Tejo, baseado no único documento verdadeiro existente, ao qual teve acesso – passou em suas mãos – na década de 1950, o folheto escrito por Josué Romano, filho de Romano do Teixeira, também conhecido por Romano Caluête. Conforme tão precioso documento, a primeira cantoria do mundo ao som de violas veio à luz exatamente na noite de 23 de junho de 1858, véspera de São João, tendo como maternidade a “Bodega de Cima”, localizada nas imediações da igreja primeira da cidade de Teixeira, com os repentistas Romano Caluête e Silvino Pirauá. “Essa conversa proclamada por alguns eruditos – que se arvoram doutores no assunto – de que a cantoria surgiu na Peníssula Ibérica, na Espanha Medieval ou na região de Provença, Sul da França, é pura prodologicalidade”, arremata o autor de Zé Limeira – Poeta do Absurdo. “O que houve? Ela foi deportada para o Nordeste brasileiro e nada restou por lá? Aqui, o que não faltou, durante esse século e meio, foi repente, verso e viola. A cantoria em sua forma original, apresentada em duplas ao som da viola, com estilos e rítimos próprios, cadência e rigor métrico, modalidades diversas de toadas, melodias adequadas a cada estilo, é pura criação da imaginosa verve do nordestino, não me resta nenhuma duvida. A bem da verdade, este milagre é nosso, eu vi a certidão de nascimento”, afirma, categoricamente, Tejo. “E é eterno! Enquanto existir Nordeste, suceder-se-ão gerações e gerações de repentistas, com o mesmo DNA do improviso, imortalizando essa entidade mágica denominada cantoria”.
* * *
Após essa longa caminhada ouvindo atentamente meu guia e mestre, Orlando Tejo apontou-me a trajetória a ser seguida e repassou-me as coordenadas. Sumiu. Foi ao encontro de Zé Limeira. Agora seguirei sozinho no rumo dos ventos e dos versos. Penso...!!! O mundo da cantoria que tem como representantes maiores Pinto do Monteiro, os irmãos Batistas: Lourival, Dimas e Otacílio, Inácio da Catingueira, Romano do Teixeira, Cego Aderaldo, Zé Pretinho (criador do galope a beira mar), Canhotinho, Antônio Marinho, Manoel Galdino Bandeira, José Alves Sobrinho, Rogaciano Leite, Manoel Xudú, Joaquim Vitorino, Domingos Fonseca, José Faustino Vilanova, Jó Patriota, Hercílio Pinheiro, Lourival Bandeira, João Furiba, Antônio Nunes de França, José Amâncio de Moura, Severino Ferreira, Diniz Vitorino e hoje, em plena atividade, nomes como Oliveira de Panelas, Geraldo Amâncio, Ivanildo Vilanova, Lourinaldo Vitorino, Raimundo Caetano, Pedro Bandeira, Fenelon Dantas, Antônio Lisboa, Sebastião Dias, Moacir Laurentino, Daudete Bandeira, Edvaldo Zuzu, João Paraibano, Zé Cardoso, Sebastião da Silva, Louro Branco, Valdir Teles, Zé Viola, Rogério Meneses, Edmilson Ferreira, Hipólito Moura, Raimundo Nonato, Nonato Costa, Severino Feitosa, Raulino Silva, dentre muitos outros, que cantaram e cantam essencialmente o Nordeste, essa terra em que o repente está no rosto e na expressão lingüística do povo, esse mundo do improviso, repito, não usufrui, ainda, infelizmente, da grandeza e do valor que possui. Cantoria em terras de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí, é, para muitos que a admiram, coisa viva e ao mesmo tempo coisa mal-assombrada, até. Poucas artes têm tanta representatividade na formação de uma cultura como o verso improvisado tem para as raízes culturais do povo nordestino. Influência que não se restringe apenas às criações de obras populares, mas também em obras de grandes nomes da literatura brasileira, a exemplo de João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna e de destacados compositores e interpretes da MPB, como Zé Ramalho e Alceu Valença. O cantador-repentista verseja com dignidade em grau máximo e expressão maior de beleza a autenticidade da sua arte, quer ao expor às impressões do espaço/tempo exterior, geográfico ou histórico, quer rimando e metrificando os mais intensos e puros sentimentos que afloram das profundezas do homem.


A sapiência do improviso em versos – afirmo sem medo de cair em erro – é uma das mais difíceis formas de expressão artística. Mas, forçoso ressaltar, nem todo repentista é poeta, no entanto, há repentistas – um número reduzido – que fazem poesia no improviso do verso. Grandes cantadores, reconhecidos nacionalmente, são consagrados tão só pelo fato de improvisar com rapidez e desenvoltura – algo, a meu ver, já fora da normalidade – seguindo o rigor da rima e da métrica. A essência da cantoria, principalmente do desafio, é a rapidez criativa do repente. Esse é o seu grande mérito... um tentando superar o outro na qualidade e velocidade dos versos, feito dois espadachins em duelo de morte. Nessa arte, ninguém superou Pinto do Monteiro. Era contumaz, impiedoso e muitas vezes sarcástico com seu opositor. Certa vez em desafio com João Furiba – bom cantador e velho companheiro de batalhas – foi atacado em estrofe que ironizou seus dotes de comerciante. Pinto, furioso, sem pestanejar, rápido como bote de cascavel, pegando a deixa, foi aniquilador na resposta. Eis o embate. Furiba:


(...)



Se você quiser ter sorte
na sua mercearia
coloque uma etiqueta
em cada mercadoria
se nela tiver meu nome
vai conquistar freguesia...


Pinto fulminou:


Triste da mercadoria
que nela tiver teu nome
pode vir um guabiru
com quinze dias de fome
mija o pão, caga no queijo
passa por cima e não come!


Sequer o desafiante havia concluído sua estrofe. Isto é o que se chama de golpe mortal, contra-ataque ferino imprevisível, quando o adversário sente não ter mais forças, nem fôlego para continuar em combate. Na cantoria pode ser a rendição antecipada do oponente, o nocaute inesperado. Dificilmente, qualquer outro cantador, teria condições de manter a peleja num ritmo e num nível desses. Quem sabe, apenas, Lourival Batista, o Louro do Pajeú, o mais sagaz e criativo repentista que Severino Pinto, o Pinto do Monteiro, enfrentou.
Como prova, transcrevo um momento sublime de uma cantoria em que a dupla se batia em improviso, tendo como temática os vegetais e suas características. Lourival termina uma estrofe com a palavra “carola” em vez de “corola”. Pinto percebendo o pequeno deslize ortográfico, repentinamente golpeia o adversário:



(...)


Um rapaz que teve escola
e ainda canta errado
fala em flor e diz “carola’
muito tem-se confessado
parte de flor é “corola”
precisa tomar “coidado”.



Lourival com a mesma perspicácia de detetive infalível observa que Pinto, no último verso, ao invés de falar “cuidado”, pronuncia “coidado”. Sem vacilar, com rapidez desmedida, devolve o golpe:



Pra não ter um só errado
errei eu, erraste tu,
errou Pinto do Monteiro
e Louro do Pajeú
nesta palavra “coidado”
tire o “o” e bote o “u”.

Cantador, poeta e repentista... isto é um fenômeno extraordinário restrito a poucos e possível, no meu pensar, apenas em algumas das várias modalidades e estilos da cantoria; num Galope à beira-mar, num Martelo alagoano, em Décimas soltas, em Sextilhas, num Quadrão mineiro, etc.; modalidades nas quais se harmonizam, além do ritmo, a cadência do verso e a melodia. Dentre essa minoria de poetas-repentistas faço referencia a dois nomes: Dimas Batista e Diniz Vitorino. Dimas marcou época na cantoria. Muitos dos seus improvisos são de um encantamento poético arrebatador. Faleceu na década de 1980, quando já havia encerrado a profissão de cantador, dedicando-se apenas ao magistério, professor de História, na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos na cidade de Limoeiro do Norte, Ceará. Diniz – falecido neste ano de 2010 – não mais cantava, somente escrevia. Cantador completo, dos maiores que surgiu em toda a História da cantoria, respeitado e reconhecido por todos, amigos e rivais, e pelo público. É dele essa estrofe de improviso:

Qualquer dia do ano se eu puder
para o céu eu farei uma jornada
como a lua já está desvirginada
até posso tomá-la por mulher;
e se acaso São Jorge não quiser
eu tomo-lhe o cavalo que ele tem
e se a lua quiser me amar também
dou-lhe um beijo nas tranças do cabelo
deixo o santo com dor de cotovelo
sem cavalo, sem lua e sem ninguém

Bom, diante de tal obra improvisada, nada mais tenho a dizer. Deixo para os leitores o prazer de analisá-la. Fica também com vocês, caros leitores, os que conhecem e os que não conhecem a cantoria, a responsabilidade de pensar e repensar esta arte brasileira – originalmente nordestina – criativa, bela e rara, no entanto, ainda carente do reconhecimento que lhe é devido e solícita da patente que lhe foi sempre negada.

A estrada chega ao fim. Segui o rumo certo. O sol era quase poente. Ficaram as anotações de viagem por essa trilha e vereda palpitante da poesia popular, a cantoria. No local, metrificadamente marcado, estavam cantarolando, à minha espera, Zé Limeira e Orlando Tejo. Daí pra frente Limeira marcou o passo, apontou o rumo a ser traçado e – de viola em punho e verso aceso – cantou... iluminou e encantou a noite.

6 de setembro de 2002.
Majela Colares
escritor, poeta e contista, autor, dentre outros, dos livros O soldador de palavras e As cores do tempo.



Ps. esse texto, escrito em setembro de 2002, foi revisto e ampliado em novembro de 2010.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

ALBERTO DA CUNHA MELO: POEMAS



(Jean Delville)





O CERCO


Estamos todos cercados;
e o silêncio do sonho
é nossa arma sagrada:
as pistolas e as línguas de aço
dos inimigos brilham ao sol,
e eles gritam tanto
sobre as velhas colinas,
atrás das cegas estantes,
que sabemos de tudo;
e colados ficamos,
amamos e permanecemos.



FRASES DE EFEITO


Dizer que, no fundamental,
estamos sós,
é frase de efeito,
mas sinal para todos
se omitirem
do sofrimento de todos,
no fim, é frase
que causa, mesmo,
um monstruoso efeito.



FORMAS DE ABENÇOAR


Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.

Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.

Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.

Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.

No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

FRANCISCO CARVALHO: POEMAS

(Jean Delville)





ESTUDO


Subitamente descobrimos o acaso
na nuvem que passa pelo pássaro
ou no pássaro que soturnamente percorre a nuvem.

De repente aprendemos a flor das coisas
e os seus movimentos na paisagem.
De repente trocamos a imagem pela paisagem
a palmatória pela parábola.

De repente descobrimos que os espelhos nos evitam
que o amanhã pertence aos outros
que da janela somos observados
por super-homens de celulóide.
De repente é o metal do amor que silencia
no coração onde tudo é paisagem.

Subitamente compreendemos
que as palavras envelhecem com os homens
que o amor também envelhece
quando as palavras envelhecem.


BARRO


O barro é a palavra
que te devolve a inocência perdida
o teu passaporte para a criatura.
O teu modo de dizer o que as pessoas
não te disseram nunca.

O barro é a matéria do teu canto
o ouro de tua botija
o amálgama de tua cárie
o salário do teu anonimato
teu sortilégio e tua perdição.

O barro é teu sangue coagulado que teima em
[ protestar
o teu mistério se consumindo
o teu sapato estraçalhado na diáspora
o teu chapéu de luto
a tua solidão de olhos fitos na vida.



POEMA PARA ESCREVER NO ASFALTO


Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração
e o quanto sobra do naufrágio
das nossas utopias.

Agora eu sei o que significa a fala dos mortos
e esta parábola soterrada
que jorra das veias da pedra.

Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras
e este pacto de sangue
com as metáforas do tempo.

Agora eu sei o que se passa no coração de treva
e do homem que morre mendigando
a própria liberdade.

Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido
com a nossa pobreza
e com a solidão de ninguém.

Agora eu sei que é preciso agarrar a vida
como se fosse a última dádiva
colocada em nossas mãos.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

CÉSAR LEAL: POEMAS



(Paul Klee)



Elogio do sonho


Quando caminha nas águas
banha as agulhas noturnas
e bebe chamas de espumas
nos claros copos da lua
esconde no corpo um fogo
claro, vermelho, constante:
rubro ondular de bandeiras
por entre nuvens dançantes
ei-la subindo nas chuvas
galopando em seu cavalo
a cabeleira de trigo
solta ao furacão voante
ordena para que um dia
os sons se mudem nas cordas
destes violinos cegos
que por entre urtigas tocam
— vejo-a inteira, emparedada
entre as brasas que caíam
naqueles vales secretos
onde as árvores fugiam.



Análise da sombra


Analisa-se da sombra
seu caráter permanente:
pela manhã retraindo
a imagem, à tarde crescente.


E aquele instante em que a sombra
adelgaça o corpo fino
como se no chão entrasse
quando o sol se encontra a pino.


Quem a esse instante mira
em oposição ao lado
onde o sol era luz antes
logo vê o passo vago


da sombra que agora cresce
o corpo de onde se filtra
até fundir-se no limbo
que em torno dela gravita.


Forma esse limbo a coroa
que as sombras traz federadas:
soma de todas as sombras
num só nó à noite atadas.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

GEORG TRAKL: POEMAS







DE PROFUNDIS



Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom;ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer
Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.
Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.
Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.
Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.
À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.



CALMA E SILÊNCIO



Pastores enterraram o sol na floresta nua.
Um pescador puxou a lua
Do lago gelado em áspera rede.
No cristal azul
Mora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;
Ou curva a cabeça em sono purpúreo.
Mas sempre comove o vôo negro dos pássaros
Ao observador, santidade de flores azuis.
O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.
De novo a fronte anoitece em pedra lunar;
Um rapaz irradiante
Surge a irmã em outono e negra decomposição.





(tradução: Cláudia Cavalcante)

PAUL CELAN: POEMAS








DISTÂNCIAS



Olho no olho, no frio,
deixa-nos também começar assim:
juntos
deixa-nos respirar o véu
que nos esconde um do outro,
quando a noite se dispõe a medir
o que ainda falta chegar
de cada forma que ela toma
para cada forma
que ela a nós dois emprestou.



DO AZUL




que ainda busca seu rosto, sou o primeiro a beber.
Vejo e bebo de teu rastro:
Deslizas pelos meus dedos, pérolas, e cresces!
Cresces como todos os esquecidos
Deslizas: o granizo negro da melancolia
Cai num lenço, todo branco pelo aceno de despedida.





( tradução: Claudia Cavalcanti )