(William Blake)
O que significa talento?
Em literatura (e nas demais
artes) há os imitadores. Não sabem (não conseguem) ir além dos modelos. Há
também os que nem isso conseguem, mas insistem nessa labuta de sísifo. Alguns
deles estão em jornais e revistas, academias, catálogos de editoras, nos festins,
nas congratulações. Arremedam os descobridores, os inventores e os próprios
copiadores. Não vão além dos modelos, dos moldes. São conformados. Aceitam tudo
como destino. Reverenciam, sorridentes, a seleção natural, a evolução das
espécies, a reprodução. Se são cachorros, nunca se veem gatos. Ou não se sentem
aves. Apenas latem.
Capazes de tudo, aprendem, com
louvor, as normas gramaticais; leem todos os clássicos; conhecem idiomas (pelo
menos dois: o de sua pátria e o das multidões); sabem tudo de cinema, teatro,
arqueologia, mitologia, filosofia. Dão lições de quase tudo: o uso da vírgula,
o desuso de palavras, a morte de Sócrates, a vida de Platão. Não admitem, nem
em sonho, a pecha de medíocres, copistas, conformados. Irritam-se, com
facilidade, se criticados. Odeiam os críticos. Sentem-se pares dos
descobridores e dos inventores. Nunca dizem “eles”, mas “nós”. Formam
grupinhos, reúnem-se todas as noites. São gregários. Elogiam-se, riem muito,
contam piadas, armam estratégias. Frequentam, juntos, bares e restaurantes,
assim como salões de academias de letras, de retórica, de língua. São amigos
uns de outros. Visitam-se amiudamente. Levam mimos para as esposas dos amigos,
bonequinhas e bolinhas para os filhinhos dos compadres. Os de fora são os “bestas”,
os “metidos”, os “doidos”. Os de fora são os talentosos, descobridores e
inventores da nova literatura.
Irmão gêmeo do típico escritor
comum é o “gênio incompreendido”, que escreve como se desenhasse labirintos.
Para ele, é mais do que preciso enredar o leitor, confundi-lo, atá-lo com nós,
sufocá-lo e matá-lo. O leitor é seu principal inimigo. E bate no peito: duvido
da existência de alguém capaz de entender o que escrevo. Para ele, Fernando
Pessoa é muito simples e, portanto, imitável: “Meu coração é um almirante louco
/ que abandonou a profissão do mar”. Bom, é verdade, mas deveria ter sido mais
complexo. Mais plexo, mais exo, mais lexo, mais oxel, mais xelo, mais loxe.
Para deixar o leitor, o crítico, o estudioso completamente enredados nas teias
da grande aranha do verbo.
À mesa desses privilegiados
seres, sempre farta e barulhenta, sentam-se os seus seguidores, os seus
bajuladores. São os incapazes de ler cem páginas de um clássico. Muito
cansativo! Os que não conseguem aprender nada e gritam: Abaixo a ditadura da
gramática! Os que envelhecem e não passam do versinho adocicado. Os que veem em
letras de samba ou de rock a poesia mais soberba. Os que acham que romance é
uma história comprida. São os pobrezinhos da literatura, os miseráveis, os indigentes,
os mendigos das letras. Destes, no entanto, nem é preciso dizer muito.
Os escritores comuns somos quase
todos nós que convivemos com os pobres sonhadores e também com os talentosos.
Com muita dedicação (e porque conduzem no cérebro algum gene diferenciado),
alguns conseguem até engendrar uma ou outra obra valiosa. Assim como os
talentosos geram muita mediocridade. Quase todos nós, porém, não passamos do
soneto bem medido e rimado, do conto arrumadinho que constará de antologia
estadual ou nacional, do romance estudado (por algum tempo) na Universidade.
Ao nosso lado, vivem os
descobridores da boa literatura. “Viver ao lado” é modo de dizer. Sim, vivem na
mesma cidade, são nossos vizinhos, mas não se misturam muito conosco. Em vez da
vida social, preferem os livros. Nada inventam, porém sabem descobrir modelos
(que a maioria nem percebe), artifícios de linguagem, entradas e saídas (de
labirintos), técnicas de narrar e compor poemas, etc. São os chamados
“escritores talentosos”, os capazes de fugir da pura imitação, do plágio e das
lições da escola a que pertencem. São românticos que encontram o realismo
(Machado de Assis), parnasianos que conseguem alcançar o simbolismo ou o
modernismo (Augusto dos Anjos, Jorge de Lima), regionalistas que chegam ao
universalismo (Graciliano Ramos, Guimarães Rosa). Não são muitos, razão pela
qual são pouco vistos. E, quando percebidos, ninguém sabe sequer seus nomes.
Mais raros ainda são os
inventores ou reinventores de literaturas. Também são chamados de gênios.
Escrevem nova poesia, como Fernando Pessoa. Novo romance (ou nova prosa de
ficção), como Kafka. Estes não vemos por aí, a não ser como estátuas ou em
livros. Seria o caso também de James Joyce? Muito escritor torce o nariz: “Eu
faço melhor do que ele. Invento coisas tão indecifráveis que até os hieróglifos
do Egito se farão (faraós) fáceis (fósseis) diante delas. Nem Jean-François
Champollion seria capaz de decifrar os meus finnegans wakes”. E completa: “Na
verdade, somos muito parecidos, eu e Joyce. Ele, por seus estudos; eu, por
meus...”
Deixemos, porém, esses devaneios
para trás. E concluamos este verborrágico passeio com algumas perguntas:
Inventar e reinventar são verbos da mesma classe? Joyce reinventou Homero? Quem
inventou a Grécia? É possível imitar o gênio? O que significa talento?
Fortaleza, 1º de maio de 2012.
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