sábado, 29 de maio de 2010

PE JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA: POEMA


Os Girassóis

Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens

Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos

GEIR CAMPOS: POEMA


(Jean François Millet)


SAFRA


Como um viticultor ocioso come
em pleno outono, uma por uma, as uvas
do cacho que ele viu nascer, pesar,
sob os olhos do sol e o próprio olhar;
e em que, mais demorando o paladar
na espera aberta entre o prazer e a fome,
já reconhece o gosto bom das chuvas
lavando os fornos do verão distante;
e, como uma saudade só, o sabor
da terra presa às mãos grossas de suor
— assim viver a vida, instante a instante.

PEDRO MEXIA: POEMA

(Xilogravura Severino Borges)
Não é Preciso

Não é preciso que a realidade exista
para acreditarmos nela. Na verdade,
se não existir tudo é mais luminoso.
Mundo, evidência submissa e soberana.

MOSAICOS BIZANTINOS II


Durante séculos, arte bizantina dos mosaicos desenvolve-se num espaço antiperspectivista. A perspectiva, que nos estabelece no interior das aparências apenas para aí nos encerrar, não é também a figura espacial simbólica do escoamento temporal, da hemorragia do ser, da morte? No espaço bizantino, em que todas as figuras dispõem-se e conformam-se absolutamente, essa recusa da perspectiva tem um sentido: as coisas não são escamoteadas umas em relação às outras, e as figuras, sobre as quais deixa de pesar a ameaça de desvanecimento ao longo das linhas de fuga, tornam-se presentes num ato de autodoação, sem ameaça de precariedade ou repetição. A forma ou Ideia, dizia Plotino, antes mesmo do nascimento da arte bizantina, deve transparecer na matéria informe, que assim atualiza o que ela representa. O espaço antiperspectivista funda, portanto, a possibilidade do aparecer do Ser e de seu surgimento, para se tornar o espaço de acolhimento da Presença.

(Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus)

MOSAICOS BIZANTINOS


Os mosaicos bizantinos, com suas figuras retiradas dos elementos de uma paisagem pastoril e seus personagens emprestados da história santa e política (o imperador: símbolo político da transcendência divina), animam-se subitamente com uma vida radiosa sob o efeito da luz ou daquela, exterior, de um céu que se agita; e, por menos que o espectador que os contempla desloque-se diante deles, é como se (tal como em Ravena), pouco a pouco, todo o afresco se incendiasse. Captando a luz que neles incide, para em seguida espalhar-se num fluxo de vibrações moduladas ao infinito, as tésseras – esses pequenos cubos esmaltados de vermelho, verde, azul e dourado que, com os cubos de mármore, formam a textura e o conjunto dos mosaicos – , sempre com ligeiro declive umas em relação às outras, desempenham magnificamente sua função teológica. Como que agitadas por uma via oriunda de outro lugar, as formas das figuras e suas significações particulares apagam-se em cintilante esplendor. Não há mais aparências sensíveis. Solitária, flameja, para anulá-las, a irrupção de um aparecer, a da presença infinita no seu ato autofânico. Elevar o homem à luz divina através da qual tudo é beleza; solicitar, ao contrário, que a luz divina desça para nele se manifestar: essas são, na arte bizantina dos mosaicos, as duas virtudes conjuntas, cujo encontro é uma metáfora estética da saudação.

(Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

JORGE MEDAUAR: POEMA



Viagem

Era na sombra
Que eu te queria
No grão noturno
Onde é gerada
A solidão
(Esta dos vivos
Que já provei
Na tua boca).

Era no sono
Que eu te queria
Para cobrir-te
Com a algidez
Da estrela morta
Que me alumia.

Era na morte
Que eu te queria
Além da cal
Além do húmus
Tão infiltrados
E diluídos
Para a substância
Da jovem folha
Do amargo fruto.

Os teus cabelos
Teus olhos vivos
As tuas mãos
E a tua boca
Em mim (tão mortos)
Nesta viagem
Para o silêncio
Subterrâneo
Donde esta vida
Vive e renasce
Como uma flor.

Era na morte
Já sem mistério.
Era na morte
Já sem segredo.

domingo, 23 de maio de 2010

JORGE ELIAS NETO: POEMA

(Murais de Pompéia)

BALADA DA CARNE

Já que o dia é par: falemos de amor.
Já que à frente sempre restará o horizonte:
não me enterrarei além dos olhos.
Já que é no vazio insalubre da cura
que se percebe a alma evanescendo:
tragam-me uma taça.
Já que eu disse sim:
limitem os convidados
presentes à minha embriaguez.
Já que a palavra é uma puta:
rasguem o poema.
Já que a rima é farta e o poeta um estorvo:
que se recompense o primeiro idiota
a me cortar a carne.

sábado, 22 de maio de 2010

BERNARDO LINHARES: POEMA

(Bruno Steinbach)
ROSA ABERTA

Rosa aberta
de quatorze pétalas,
à vontade
em redoma de estrelas,

até o infinito,
sua essência
é sempre
a mesma.

Se acaso murchasse,
nessa noite
escura e fria,

nasceria depois
como se fosse o sol,
o sol da poesia.

JEFFERSON BESSA: POEMA


Pernas Cruzadas


logo que chegou ao bar

seu corpo pediu todos os olhares

mas num instante o vi falecer

embaçar.

o corpo que não transpira

derrete

para se molhar em poses.

e assim foi.


sentou-se à cadeira

de pernas cruzadas

e de tão embaraçadas

as pernas se fizeram

grandes bengalas

que assim carregam

a beleza que pesa

e que arrasta no rosto.


ah... mas se este corpo

chegasse

sem dar ares ao cheiro...

se este corpo

escorresse

a água da pele

pelo salão

e borrifasse às minhas narinas...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

HELENA FIGUEIREDO: POEMA




Tem nome de águas soltas, o prisioneiro.

Saúdo-lhe o pêlo, roda infinita,
exímio horizonte,
que chega a parar o próprio sangue.

Vida de animal,
penso alto, na ida e no regresso,
nos dias riscados num calendário ilusório.

E oiço um alambique de cobre,refinando o espaço,
filtrando o tempo das magnólias por abrir,

e arranho os pensamentos, numa coleira invisível,
no alívio revoltante de não ser cão,

mas de parecê-lo.

sábado, 15 de maio de 2010

INAÊ SODRÉ: POEMA

(Bruno Steinbach)

CORPO CHUVOSO

Se Tu me tocas.
Eu Chovo.

Liquidifico-me
Para me esconder
Em teus poros.

Tez em vez de Colo.
Me molho em beijos furiosos.

Gotejando Me Desfolho.

PEDRO MEXIA: POEMA





Nas estantes os livros ficam (até se dispersarem ou desfazerem) enquanto tudo passa. O pó acumula-se e depois de limpo torna a acumular-se no cimo das lombadas. Quando a cidade está suja (obras, carros, poeiras) o pó é mais negro e por vezes espesso. Os livros ficam, valem mais que tudo, mas apesar do amor (amor das coisas mudas que sussurram) e do cuidado doméstico fica sempre, em baixo, do lado oposto à lombada, uma pequena marca negra do pó nas páginas. A marca faz parte dos livros. Estão marcados. Nós também.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

UM POEMA DE INAÊ SODRÉ

(Ismael Nery)


RITO DE PEDRAS

Sodalita soube que Citrino,
o seu prometido, estava por chegar.
Ela foi ao seu baú vermelho, contornado de fita dourada,
e tirou seu melhor Sari.

Em ritmo de rito,
se toda depila para que lisa, na tela em óleo canforado,
ele,
com o seu pincel,
pinte seu corpo de henna.
 
No rito do mito do espelho,
ela,
de olhos contornados de preto,
se olha e desprende os negros cabelos...
 

domingo, 9 de maio de 2010

JORGE MEDAUAR: POEMA

(Caspar David Friedrich)


As ÁGUAS

Veja-se: são águas verdades e profundas
de um mar imenso e indevassável. Vejo-as
depois escurecendo sob a noite
e ouço-lhes o gemido nos rochedos.
Sobre o impassível líquido soturno
dorso do mar que ao longe se retorce
outras águas em vão, de chuva doce
como inútil consolo se despejam.
Dentro da noite inteiramente escura
as, águas se misturam, confabulam
para a revolta em líquida linguagem.
Ai de vós, ai de vós margens e diques,
arrecifes, limites e rochedos,
se as águas de manhã vos atacarem.

sábado, 8 de maio de 2010

GREGÓRIO DE MATOS: SONETO

(El Greco)
A Conceição Imaculada de Maria Santíssima

Como na cova tenebrosa, e escura,
A quem abriu o Original pecado,
Se o próprio Deus a mão vos tinha dado;
Podeis vós cair, ó virgem pura?

Nem Deus, que o bem das almas só procura,
De todo vendo o mundo arruinado,
Permitiria a desgraça haver entrado,
Donde havia sair nossa ventura.

Nasce a rosa de espinhos coroada
Mas se é pelos espinhos assistida,
Não é pelos espinhos magoada.

Bela Rosa, ó virgem esclarecida!
Se entre a culpa se vê, fostes criada,
Pela culpa não fostes ofendida.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

RILTON PRIMO: POEMA

(Enrico Bianco)
PULSAR

A supernova é u’a paixão, estrela
a explodir lançando, ao cosmo, extremo
fulgor contendo tod’os elementos.

Que as das constelações mais claras luzes,
a supernova é, ao menos por uns dias,
tão resplendente quanto uma galáxia.

Depois declina a tua luz até
tornar-se, empós semanas, invisível,
lhe sobrevindo, elétrico, um colapso.

Cada partícula polar se choca,
gerando nêutrons que se adensam núcleo
de um astro outro e mesmo, estabilíssimo.

Dá-se-lhe o nome de Pulsar: estrela
já desbastada da matéria nove
décimos, mas seu décimo recresce.

Ultrapassando, todavia, três
vezes de um Sol a massa, fica instável
e, novamente, se vai colapsar.

Nasce daí u’a singularidade
no espaço-tempo em forma de Buraco
Negro, do qual não ’scapa a própria luz.

A luz, porém, daquelas explosões
originais da supernova deixa
seus rastros-ondas através dos séc’los...

Três supernovas por milênio nascem.
Treze bilhões tem, d’anos, a Via Láctea,
são trinta e nove milhões de Pulsares.

Assim te amo, é nosso amor, tão raro
e tão freqüente desde que inventado
o próprio cosmo que se chama amar.

Assim te quero, supernova nova,
em explosões de luzes, de desejos
mais fortes do que os dos demais unidos.

Assim, completo em elementos, amo,
amando o amor a amar a amada amando
até exaurir-me lasso de paixão.

Depois, sim: degenero, apago, morro.
E eis que, invisível, no meu eu-profundo,
opostas forças se me neutralizam.

Sou-te Pulsar e nova estrela-amor
que cresce sempre, até que, inexorável,
cai dentro em si, definitivamente.

E então sou teu de todo, mas escuro,
nada escapando-me de luz, espaço
ou tempo, e amar é oculto, é então mistério.

E então, de supernova em supernova,
o amor renasce e dorme em mim por ti,
porquanto é estrela, eterna finitude.

Assim te amo, estrela supernova,
se me apagando tão depressa quanto
faz teu clarão lançar-se além aos séc’los.


Rilton Primo
Salvador, 12 de março de 2010.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

QUATRO POEMAS DE HENRIQUE WAGNER

(Paul Klee)

VOZ COMPRIDA

Muito antes de ouvir,
o mar freqüenta o rochedo,
e a noite pinta, na sombra,
o rosto branco e macio da namorada.
Antes mesmo desta cidade,
quando os cavalos corriam negros,
batia aqui, perto de mim,
a espuma nova de um mar aberto.
Antes, muito antes de toda e qualquer palavra,
o mar pedia, bem baixinho,
em voz cantante e comprida:
- Silêncio!...


OS POMBOS

O vate paraibano teve o busto
ausente em toda a sua curta vida,
e ausente de si mesmo viu crescida
a angústia de não ser, vivendo Augusto.

Fantasma de si mesmo ergueu-se o susto
de versos em eterna despedida,
e o pouco que viveu, viveu a custo
de toda a poesia preterida.

Viveu a alma, apenas, desnutrida,
a carne pusilânime, maldita,
agora endurecida pelo busto.

Viveu a sombra, ainda empedernida,
e o corvo, que era a ave preferida,
não reconhece mais o pobre Augusto.


MEU FANTASMA

Eu fui uma criança sem porão,
criei fantasmas burros em meu quarto,
e o quarto eu dividia com um irmão
- de toda essa mobília estava farto.

Em cada canto havia um alçapão
e eu já não morreria mais de infarto
pois tudo eu já sabia de antemão
e andava mais cismado que lagarto.

Mamãe passava o dia dando ordem
(os cães que ladram um dia ainda mordem)
e havia certa ausência que não sai

ainda hoje de meu quarto: clara,
solar, tão verdadeira que não pára
de ser o meu fantasma, aquele pai.

A CASA DA INFÂNCIA

A casa onde morei
na infância
era imensa e cheia
de mistérios.
Os tios visitavam
minha sala
com freqüência
e com alarde.
Morava conosco
um tio-avô por parte
de pai, que fumava muito,
tossia muito e lia
todos os meus gibis de heróis.
As primas eram bonitas
e muito grandes, e só olhavam
para meu irmão mais velho,
que era baixinho e esturricado.
Meu quarto era nos fundos
e tinha uma janela
que dava para o quintal
da casa.
Um dia
todos foram à praia
e eu fiquei sozinho:
imenso e cheio de mistérios.

sábado, 1 de maio de 2010

UM POEMA DE BERNARDO LINHARES



Pérolas

O céu também é madrepérola.
No seio cálido da aurora,
as minhas mãos são duas conchas,
onde deslizam tuas pérolas.

São duas pérolas douradas,
brilhando assim, tranqüilas, claras.

Em meio às luzes desse bálsamo,
e o céu da boca à flor da pele,
levo nas mãos teu coração.

Ao florir das primeiras horas,
teu seio é cálido na aurora.