terça-feira, 30 de novembro de 2010

CRUZ E SOUSA: POEMA

(Velázquez)



DEUSA SERENA

Espiritualizante Formosura
Gerada nas Estrelas impassíveis,
Deusa de formas bíblicas, flexíveis,
Dos eflúvios da graça e da ternura.

Açucena dos vales da Escritura,
Da alvura das magnólias marcessíveis,
Branca Via-Láctea das indefiníveis
Brancuras, fonte da imortal brancura.

Não veio, é certo, dos pauis da terra
Tanta beleza que o teu corpo encerra,
Tanta luz de luar e paz saudosa...

Vem das constelações, do Azul do Oriente,
Para triunfar maravilhosamente
Da beleza mortal e dolorosa!

domingo, 28 de novembro de 2010

ROMMEL WERNECK: POEMA

(Rafael Sanzio)



COMO TE CONTEMPLO!

Ah! Como eu te admiro! Como te contemplo!
Tu disseste sim ao nosso Deus Senhor.
Foste tu o belíssimo e sublime templo,
Em que foi gerado o Filho Salvador!

Quero seguir tuas frases e teu exemplo!
Eis aqui o menor servo do Redentor...
Ah! Como eu te admiro! Como te contemplo!
Minha alma engrandece ao Deus do grande amor...

Eu, que nem o amor de meus próximos tive,
Descobri um amável pai chamado Deus
E que minha Mãe Santíssima em mim vive...

Jesus, seguirei pra sempre os passos teus,
Pela obediência, pobreza e pureza,
Pra viver na mais triunfante nobreza!

MARCILIO MEDEIROS: POEMAS

(Jackson Pollock)



A MORTA


seca
a porta
despida
fibra ante fibra
ocultando-se

cadáver
posto até quando
destroçar os veios
enxame de abelhas
descompactando-se

CAVALGADURA


sim,
olhos de marfim
órbitas de sodalita
perfuram, insólitos

o mole centro
do abdômen
dentro do homem
saturam

sala vazia de órgãos
vãos órfãos azia
amálgama
escura

cavalo
que cavalga
a alma
dura

MORTE TERMO TEMOR

Aguarda: tom de neve.
Água parda proscreve
a rapidez. Agora tarda

Afeito: bom para sumir,
de terra desfeito, vai surtir
único e último efeito.

Fira: dom da faísca.
Fogo de pira confisca
quem só se reproduziu na lira.

Alarde: som de alaúde,
ar de notas arde sobre o ataúde,
antes que chegue a tarde.

PÉS

Escassez de nuvens
sobre o piso.
Tez inchada de pés sem
o alarido
dos passos.
Descalços
todavia presos
Crassos
mas não tesos

Em vão
será suficiente
supor
que movimentos
de dedos
sustarão
termo, memória, medo
do rumor.


sábado, 27 de novembro de 2010

MÁXIMAS OU AFORISMOS SOBRE O AMOR

(Klimt)



2

É possível que ao findar o dia possamos olhar para nós mesmos e percebermos que realizamos o ato primordial pelo qual nos tornamos humanos: Amar. Mas se somos humanos quando amamos, o que somos quando odiamos?

3

Amamos pouco quando satisfazemos nossos desejos, pois o amor não reside na posse e sim no desprendimento.

4

Amamos quando outorgamos ao outro o direito de ser si mesmo; portanto, de não ser apropriado.

5

Todo objeto de desejo é uma reclusão ao amor.

21

Para todas as formas de amor há sempre uma maneira de se compartilhar a solidão.

49

Nunca amamos o suficiente quando amamos o que desejamos.

54

No amor elevamos e rebaixamos o que desejamos.

61

Não saberemos do amor sua verdade. Somente sua condição.

63

Porque amamos também odiamos.

64

Amor e ódio: sentimentos recíprocos?

66

Nunca amamos o suficiente para não precisarmos odiar.


101

A fronteira entre o amor e o ódio é sempre dúbia.

120

As ocasiões para o amor são sempre repentinas. O que explica a inconstância dos relacionamentos.


140

No amor raramente perdoamos o sentimento de vingança.

142

Também destruímos ao amar.

144

Nem mesmo no amor prescindimos da solidão.

146

Há múltiplas formas de amor, mas só um desejo.

151

Amor: raro enleio em meio ao incerto jogo das representações.

155

Não somos culpados por amar e sim por sermos amados.

165

A fidelidade de um homem não se vincula ao seu amor e sim ao seu caráter.

182

No amor pagamos tributo de nossos defeitos assim como de nossos melhores intentos.

202

No amor ou no ódio cedemos aos erros mais primários.

Hilton Valeriano


Obs. Aforismos de minha autoria protegidos por direitos autorais.

RÉGIS BONVICINO: POEMA

(Tàpies)



CANÇÃO ( 4 )

Quantas vezes esfregou
os dedos nas unhas
o sol caindo atrás das paredes
quantas vezes revezou-se

consigo mesmo em silêncio
quantas vezes esteve
no justo oriente de qualquer limo
quantas vezes quis

ser Rimbaud e traficou
aspirina
os dias passaram, severos,
como o vazio

hoje?, ontem?, quantas vezes
as grimpas não giraram
o amor era das palavras, entre elas
fria estrela que irrompe

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

GABRIEL RÜBINGER: POEMA




Lux Aeterna


A Luz Eterna andante invade os lares,
Quasares brilham no céu flutuante.
Um lampião aceso, e os negros mares,
Trissares de estrelas no quadrante.

Espetáculos ébrios de pulsares,
Aos pares, em silêncio causticante.
Um furacão represo invade os ares,
Vulgares beijos, lume irradiante.

Paro-me em meio a três pilares:
Oculares Três Marias, vagante,
O céu gira em turnos regulares,
Hectares tão longes, tão distante!

Tão vívido de paz busco lugares
Que permeiam o infinito semblante
Das estrelas, mães espetaculares!
Tão vívido, e mais, e mais luares!
O céu é incrustado de brilhante,
E as estrelas são gigantes altares!

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A ARTE DOS VITRAIS




A cada entardecer, figuras e luzes sagradas pouco a pouco diluem-se na noite e ressuscitam de manhã, para oferecer a imagem radiante do eterno retorno da Palavra divina. A rosácea, flor que gira como o universo na sua perfeição concêntrica, torna-se um imenso cristal multifacetado que, qual síntese fulgurante da criação, espalha à sua volta a radiância e o sopro da emanação divina.

No mesmo momento (entre 1260 e 1270) em que os mestres vidreiros de Notre-Dame de Paris ajustavam os vitrais da grande rosácea, a alguns passos dali, no Convento dos Dominicanos, na Rua Saint-Jacques, Tomás de Aquino escrevia: “Na emanação das criaturas há como que uma circulação ou uma respiração, devido ao fato de que todos os seres voltam no fim para o lugar de onde procedem, como de seu princípio”.


(Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus)

A ARTE DOS VITRAIS II




O esplendor dos vitrais da catedral gótica também realiza, por meio do que há de mais brilhante na natureza, a captura da beleza divina, para aí fazê-la presente. Em especial no espaço resplandecente da rosácea, os engastes de chumbo parecem aprisionar uma abundância de figuras emprestadas da natureza e dos relatos das Escrituras. Atravessando-as como um sopro, para iluminá-las e acabar por dissolvê-las num deslumbramento, a luz do sol decompõe-se e se recompõe, para se tornar, transfigurada, a do Deus criador, cuja flamejante difusão no interior do templo capta o fiel, a fim de convidá-lo para a festa próxima de sua própria transfiguração.

(Michel Ribon, A arte e a natureza. Ed. Papirus)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

PAULA CAJATY: POEMA

(Paul Delvaux)



Quiasmas tardios

ainda suspiram razões
desprovidas de sentido
e respiram fuligem
na ausência de qualquer
poeira fixa e imutável
que lhes aplaque a fome

.

são esses quiasmas do nada
bravio
que se entrecruzam
selvagens
num acaso incolor
ao tardio do tempo
que paira fugaz,
verte morto
e esvai gélido
descosendo tramas
miragens e almas.
ainda preferem o tormento
talvez, a lembrança atroz
ao descanso na paz insípida
cama inodora, angustiosa
da inexistência.

domingo, 21 de novembro de 2010

POEMA

(Tàpies)




CENAS

I

sacos de lixo
ao chão
o pó
de passos
perdidos
homens caminham
em nenhuma
direção

II

restos
pútridos
alimentos
expostos
ao tempo
aos homens
vielas
e a água
da chuva

III

o semáforo
fechado
automóveis
atravessando
o canto inócuo
de pardais
a solicitude
daqueles
que esperam

IV

edifícios
enfileirados
calçadas
devolutas
presença inóspita
da lua
cães ladram
ante os ruídos
dos ratos

IACYR ANDERSON FREITAS: POEMA

(Klimt)



ORÁCULO DE EROS

Para que não seja o teu corpo
a parte proibida do horto.

Mas a volúpia que marcasse,
entre volutas, tua face.

Somente a tua: mais nenhuma
com tamanho langor de espuma.

Com tamanha extensão de chama,
que até a memória se inflama

a cada letra do teu nome
(pois todas as outras consome).

Que seja o teu corpo o instrumento
tocado em pelo contra o vento

e por ele, vento, encarnado,
a salvo de teu próprio achado,

por fim tão senhor quanto escravo
: corpo de onde eu mesmo me escavo.


Do livro viavária. Ed. Nankin.

sábado, 20 de novembro de 2010

NOVO LIVRO DO GRANDE POETA MINEIRO IACYR ANDERSON FREITAS




TUDO EM BREU SE RESUME

Paira ainda, no ar, a certeza
de que tardaste a ser eterna,
de que o tempo, ao qual foste presa,
cessou de vez tua lanterna.

Mas como pôde tardar tanto
toda a grandeza do teu lume?
A cegueira deu-te esse manto
em que tudo em breu se resume.

Andas com ele a noite inteira
e é inútil. Chove. Faz frio.
Tua dor tem, por companheira,
a escuríssima foz de um rio

que erra em ti, sabendo-te à beira
de um cais sem pouso e sem navio.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

(Goya)




“Não somos mais do que os anunciadores, as trombetas de um Juízo sem Juiz.”

Emil Cioran

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

POEMA

(Tàpies)



CHUVA

ouvir a chuva
silenciar palavras
recolher sobras
diárias
da convulsão
humana

sentir a chuva
aproximar pessoas
acolher o tempo
desigual
endêmico

lavar as mãos
de quem só soube tê-las

fechadas

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

CONVITE: DESCANSO DAS LETRAS

Prezados leitores do Poesia Diversa, todos estão convidados a visitar o espaço literário Descanso das Letras. Poesia e arte de qualidade.

www.descansodasletras.blogspot.com

MÁXIMAS OU AFORISMOS VI

(Paul Delvaux)



193

Há no amor algo de divino e demoníaco. Nunca apreendemos o outro, somente nossas considerações afetivas.


194

No sexo, o silêncio do espírito ressoa as contrações da carne.


201

No corpo feminino todo caminho é revés.


203

O essencial: dos sonhos a vida reivindica somente os despojos.


209

No sexo, o pudor é o estigma pelo qual o espírito ainda faz-se pulsar.

168

No coito não se preside o espírito, apenas a natureza.


164

No sexo a carne transfigura o espírito submetendo-o. Assim, os mais íntimos desejos prevalecem sobre a moralidade e o animal vence a civilidade.


156

Coito: cilício da queda.


157

As sinuosidades do corpo: premissas do amor.


147

Amor: cobiça do corpo.

148

Amor: anelo do coito.


133

Não compete aos deuses a dádiva do gozo.


134

No ofício do amor os corpos transgridem o espírito.


22

A essência das coisas reside no âmbito do desejo. Envolta no manto de nossas vaidades, as coisas quando despidas, pouco ou nada significam.


Obs. Aforismos de minha autoria protegidos por direitos autorais.

EDIR PINA DE BARROS: SONETO

(Paul Delvaux)



Sem disfarce!


Diante desse espelho estou agora...
Como fugir não há de meu olhar,
E meus detalhes passo a debulhar,
E marcas vejo em mim da fria aurora.

Em minha tez um mapa bem traçado,
Com becos, com veredas e mil atalhes,
Que levam-me, sem erro, aos meus detalhes,
De volta me conduzem ao passado!

Exploro cada vinco em minha face,
A recordar amores meus, amantes...
Os tempos mais felizes, tão pujantes!

E a mim me busco, em todos os quadrantes,
Embora a minha vista já se embace,
A mim me encontro, nua e sem disfarce!

terça-feira, 16 de novembro de 2010

GALERIA JAZZ

(Lester Young)

CLOVES MARQUES: TANKAS II

(Alexandre Cabanel)



Quantas vezes fiz
baço o frescor do seu dia,
oh minha perdiz.

Quando a ave é de rapina,
roubar o amor não é sina.

__________

Minha doce Amada
sabe o quanto faz o amor
ser brasa avivada.

Inflamável, a pele aceita
ser rastilho à colheita.

__________

Foi assim, Amor,
o silêncio entrecortado,
gotas de suor.

Uma, deu sabor ao beijo,
Outra, fez despido o tempo.

__________

Tão somente seja
– nem lua, nem sol –
das dobras do amor.

Uma onda, Esposa, cobre,
a outra, seja o que for.

__________

Plantei em seu sexo
lâminas de brilho, Amor,
e com o sol nascente

vi explodir em seu ventre
a justificada luz.


Do livro Tankas de Amor Amado. Ed. Casa de Taipa.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

sábado, 13 de novembro de 2010

ILONA BASTOS: UMA GRANDE POETA DE LISBOA


NEVOEIRO
Ilona Bastos


Lembrando uma paisagem escandinava
Desenham-se, além dos vidros da janela,
Os traços suaves dos ramos de pinheiro,
Esbatidas manchas de quadro em aguarela,
Por entre o esbranquiçado frio do nevoeiro.

Também, mais próxima, desmaiada, a relva
Se distancia, neutra, na densa neblina,
E o fundo baço, que esconde o arvoredo,
Envolve o céu e a vida em leve musselina.

Só um vulto, esbelto, vem descendo, ledo,
A longa escadaria, que o nevoeiro adoça,
E uma gaivota livre, de asas prateadas,
Planando baixo, os seus cabelos roça.

Agora, vejo as nuvens, rasas e molhadas,
Correrem, junto à erva, em desfilada,
Afugentando o véu, os seres, a quieta paz
Desta atmosfera idílica, encantada.

Soprando velozmente, vem o vento e faz,
Agreste, forte, intenso, espantar a magia
Do nevoeiro imenso, prenhe de mistério,
Que a manhã cobriu, neste invernoso dia.

Então, no céu, o azul retoma o seu império,
O sol inunda a relva, a rua, todo o parque,
Regressam vozes, passos, gente radiosa,
Da vida, a cor, o brilho, a infinita arte...

E, na transparência pura, gloriosa,
Desta pintura bela, perfeita em limpidez,
Na Natureza rica, na vívida Criação,
Esboça-se, com espantosa nitidez,
A imagem de Deus - sublime revelação!



NA ESPLANADA
Ilona Bastos


Nestes dias frios e ensolarados,
Ruas e rossios de Inverno pintados,
Enchem-se esplanadas de quentes roupagens,
Sempre renovadas antigas imagens.

Como em tempos idos, há cabeças brancas,
Senhoras idosas de gestos pausados,
Há conversas longas e faces atentas,
Até mantas grossas de lã aos quadrados,
Que lembram convés, cadeiras de lona,
Balanço do mar que em sonho retorna.

Como antigamente, há lindos meninos,
Belos caracóis, passos pequeninos.
Há bolas e carros, e o cão a ladrar.
Torradas no prato, leite a fumegar,
E água a luzir, fresca, transparente,
No centro da mesa, estrela refulgente.

Há os cavalheiros, tal como era dantes,
Lendo os seus jornais com toda a atenção.
De lápis na mão, jovens estudantes
Livros sublinham com sofreguidão.
Sábias teorias têm de estudar,
Para um dia o Mundo poderem salvar.


Neste dia frio, mas ensolarado,
Rua e rossio olho com agrado.
Vejo, de repente, parando a sorrir,
Passado e Presente, Futuro a florir.



O TEMPO
Ilona Bastos


Quando voltará o tempo
a estender-se a nossos pés
como uma planície verdejante?

Que saudades das tardes imensas,
infinitas, em que brincávamos,
corríamos, descansávamos
e líamos, horas a fio,
esses romances que nos enchiam a alma
e que em nós se tornaram!

Durmo demais ou de menos?
Sou lenta ou, antes,
apressada em demasia?
Manhãs e tardes esfumam-se
na voragem do dia-a-dia…

Nervosamente antecipo o pôr-do-sol,
enquanto percorro este labirinto
feito de momentos compartimentados,
intercalados por corredores
apinhados de ânsias e temores,
que são o meu tempo de hoje.

Sonho com o regresso do tempo infindo,
em que o corpo voltará a correr livre,
como criança, e o espírito, ousado,
voará mais alto do que nunca!

Tanto desejo esse tempo!
Tanto planeio criar
nessa planície verdejante!

Caiam paredes!
Dilate-se o espaço!
Germinem sementes!
Estenda-se a nossos pés
a imensidão do tempo!


NAS MALHAS DO TEMPO
Ilona Bastos


Atrapalho-me nas malhas do tempo.
Quanto mais tento detê-lo,
Mais me prende o tempo a mim,
Na lentidão que aos meus gestos dá,
Na confusão que ao pensamento doa.

E, assim, tropeço nas horas e nos minutos,
Enquanto o tempo, trocista, sorri,
Célere avança e se afasta, jocoso,
Acenando de longe, provocador,
Sempre seguindo o seu caminho.

Caio em desespero, olho o relógio,
E os ponteiros que lestos se aproveitam
Da distracção do meu escrever,
Para saltar, ágeis, no mostrador
Da vida levando, de assentada,
Luminosas porções de tempo perdido.

Hesitante, paro, num repente,
Sem saber se dar ouvidos à voz troante
Que no interior de mim ecoa, persistente
Em deslizar-me pelo braço, até à mão
Que segura a caneta e a faz correr
E patinar, dançando, sobre o papel.

Não! Tenho de sair e seguir o meu percurso,
Mesmo se o tempo se entretém
A trocar-me as voltas e a rir, escarninho,
Perante o torpor dos meus gestos indecisos,
E a inconstância do meu pensar,
Perdida que estou nas malhas do tempo.

ÁLVARES DE AZEVEDO: POEMA



PÁLIDA INOCÊNCIA

Por que, pálida inocência,
Os olhos teus em dormência
O medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?

E tuas falas divinas
Em que amor lânguida afinas
Em lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?

Inocência! Quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! Quem teus lábios sentira
E que trêmulo de abrira
Dos sonhos a tua flor!

Quem te dera a esperança
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse,
Que num beijo t’embalasse
Desmaiada no sentir!

Quem te amasse! E um momento
Respirando o teu alento
Recendesse os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheio de amor e de Deus!

CLOVES MARQUES: TANKAS

(Alexandre Cabanel)



Fazer é ato de
dor que só fere a quietude:
ré necessidade.

Sísifo proclama basta!
Se encalha na vaidade.

__________


As cartas deságuam
revoadas de punhais
– os ditos conselhos –

a quem às vezes enxerga
e nem precisa de espelhos.

__________


Há desconfiança
na pele antiga da dor.
Inventa verdade,

vara muitas paciências
essa dor que é piedade.

__________


Descansa o sagrado
entre a chama do dever
e o atroz direito.

Toma o fogo, oh, Prometeus,
e deita brasas no peito.

__________


Enfrento o processo.
Qual a forma desejada?
A do sofrimento.

Na diferença dos homens,
paradoxo é seguimento.

__________


Viver abandono
tem desinência de dor
em todo animal.

Mastiga o nada do mundo,
pois tudo mais é fatal.


Do livro Noturno - tankas da madrugada. Ed. escrituras

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

terça-feira, 9 de novembro de 2010

POEMA

(Max Ernst)


NAS MÍNIMAS COISAS


I

Para tanto:
um pouco
quase
nada

– resquícios –

profícua ocasião
para recomeçar


II

nenhum receio
ante o provável
fracasso

a evidência
dos fatos
não (des)legitima
o sonho

RÉGIS BONVICINO: POEMA

(Max Ernst)



Abstract (2)

Gaivotas caindo na água
em Niágara, verde.
Esgotam-se os dólares.
Um homem dormia num vão

numa esquina da Lexington
na calçada
da Collaborative High School –
School of the Future –

entre a porta de vidro
e as telas de arame,
caixas de papelão,
uma espécie de abrigo

(cigarros pisoteados),
“Visitors: no trespassing”
Ele não obedeceu ao aviso

.

Em Manhattan, só o rato é democrático


13/9/2002

sábado, 6 de novembro de 2010

ORIDES FONTELA: POEMA

(Luiza Maciel Nogueira)



POUSO

Ó pássaro, em minha mão
encontram-se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência.

Ó pássaro, em minha mão
teu canto
de vitalidade pura
encontra a minha humanidade.

Ó pássaro, em minha mão
pousado
será possível cantarmos
em uníssono

se és o raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?

GALERIA JAZZ

(Dave Brubeck)

CECÍLIA MEIRELES: POEMA



CANÇÃO

Eras um rosto
na noite larga
de altas insônias
iluminada.

Serás um dia
vago retrato
de quem se diga:
“o antepassado”.

Eras um poema
cujas palavras
cresciam dentre
mistério e lágrimas.

Serás silêncio,
tempo sem rastro,
de esquecimentos
atravessado.

Disso é que sofre
a amargurada
flor da memória
que ao vento fala.

W. B. YEATS: A TORRE (FRAGMENTO)





A TORRE

I

Que fazer com este absurdo —
Oh coração, Oh inquieto coração — esta caricatura,
Esta decrépita idade que me ataram
Como à cauda de um cão?
Nunca tive
Mais exaltada, apaixonada, fantástica
Imaginação, nem olhos e ouvidos
Que mais esperassem o impossível —
Não, nem na infância quando com cana e mosca,
Ou o mais humilde dos vermes, subia a encosta de Ben Bulben
E tinha onde passar o interminável dia de Verão.
Parece que tenho de despedir a Musa,
Eleger como amigos Platão e Plotino
Até que a imaginação, olhos e ouvidos,
Se satisfaçam com a argumentação e lidem
Com o abstracto; ou permitir a troça
Como se levasse um tacho velho nos calcanhares.

II

Caminho entre as ameias e contemplo
Os alicerces de uma casa, ou ali onde
Uma árvore, como dedo tisnado, se ergue da terra;
E para diante lanço a imaginação
Sob o luminoso dia que declina, e invoco
Imagens e memórias
De ruínas ou de árvores antigas,
Pois a todos interrogarei.
Atrás da colina vivia a senhora French, e uma vez
Quando velas e candelabros de prata
Iluminavam o escuro mogno e o vinho,
Um criado que adivinhava sempre
Todos os desejos de tão respeitável dama,
Correu e com as tesouras do jardim
Podou as orelhas de um labrego insolente
E trouxe-as num pratinho coberto.
Alguns ainda se lembravam de quando sendo eu jovem
Uma jovem camponesa por canção louvada,
Que vivia algures nessas paragens rochosas,
Louvada pelas cores do seu rosto,
E com grande júbilo ainda mais louvada,
Lembrando que, ao passar pela feira,
Os labregos se acotovelavam
Tal a glória que conferia essa canção.
E outros, enlouquecidos pêlos versos,
Ou por ela brindarem tantas vezes,
Levantavam-se da mesa e declaravam justo
Provar com a vista tal fantasia;
Mas confundiram o brilho da lua
Com a prosaica luz do dia —
A música toldou-lhes a razão —
E um deles afogou-se no grande pântano de Cloone.
Estranho; quem fizera a canção era cego;
Mas, pensando bem, não acho
Nada estranho; a tragédia começou
Com Homero que também era cego,
E Helena atraiçoou tanto coração palpitante.
Oh, podem lua e sol parecer
Um raio inextricável
Pois se triunfar tornarei os homens loucos.
E eu próprio criei Hanrahan
E ébrio ou sóbrio levei-o pela aurora
De algures junto às cabanas.
Apanhado nas armadilhas de um velho,
Tropeçou, caiu, tacteou aqui e ali
E como paga só teve os joelhos partidos
E o horrível esplendor do desejo;
Em tudo isto pensei há vinte anos:
Os amigos jogavam às cartas num velho estábulo;
E quando chegou a vez do antigo rufia
De tal modo com os dedos enfeitiçou as cartas
Que todas menos uma se transformaram
Em matilha de cães e não baralho de cartas,
E àquela em lebre transformou.
Frenético, Hanrahan levantou-se então
E as criaturas que ladravam seguiu até —
Oh, até onde já me esqueci — mas basta!
Devo evocar um homem a quem nem o amor
Nem a música nem a orelha cortada do inimigo
Podiam, em tal tormento, alegrar;
Figura já tão fabulosa
Que não resta vizinho capaz de dizer
Quando terminou o seu dia de canícula:
Um antigo dono falido desta casa.
Antes de chegar essa ruína, durante séculos,
Rudes guerreiros, com jarreteiras nos joelhos
Ou de ferro calçados, subiam as escadas estreitas,
E havia guerreiros cujas imagens
Na Grande Memória guardadas,
Chegavam aos gritos e ofegantes
Perturbando o sono daquele que dormia
Enquanto os seus grandes dados de madeira batiam no tabuleiro.
Como a todos interrogaria, pois venham todos os que puderem;
Venha o velho, indigente e aleijado;
Venha e traga o cego errante que celebrou a beleza;
O homem vermelho que o prestidigitador enviara
Para esse prados abandonados por Deus; a senhora French,
De tão apurado ouvido;
O homem afogado no lodo do pântano,
Quando Musas trocistas elegeram a jovem camponesa.
Será que velhos homens e mulheres, ricos e pobres,
Que estas rochas pisaram, que por esta porta passaram,
Em público ou em segredo se indignaram
Como agora o faço eu contra a velhice?
Mas encontrei resposta nesse olhos
Impacientes por partir;
Sim, ide, mas deixai Hanrahan,
Porque preciso das suas poderosas memórias.
Velho libertino com um amor em cada vento,
Retira dessa mente profunda e pensativa
Tudo o que no túmulo descobriste.
Pois é certo que te dás conta
De cada aventura imprevista, cega,
Que suaves olhos tentadores,
Ou carícias ou suspiros atraíram
Ao labirinto de outro ser;
Mais se demora a imaginação
Na mulher ganha ou na mulher perdida?
Se na perdida, admite que te afastaste
De um grande labirinto por orgulho,
Cobardia, alguma parva e excessiva subtileza
Ou qualquer coisa que já se chamou consciência;
E que se à memória se recorre, o sol
Entra em eclipse e o dia em extinção.


III

É tempo de fazer o meu testamento;
Escolho os homens que se erguem
Esses que sobem as correntes até
Às próprias fontes, e pela aurora
Lançam o anzol à berra
Da pedra que brota; declaro
Que herdem o meu orgulho,
O orgulho de quem
Nunca foi prisioneiro de Causa nem Estado,
Mas não aos escravos humilhados
Nem aos tiranos que humilham;
Sim às gentes de Burke e de Grattan
Que deram, podendo recusar —
Orgulho idêntico ao do amanhecer,
Quando se solta a temerária luz,
Ou o orgulho do corno fabuloso,
Ou do súbito aguaceiro
Quando secas estão todas as correntes,
Ou o orgulho dessa hora
Em que o cisne fixa o olhar
Num esplendor que se apaga,
Flutua num longo e derradeiro
Esforço pelas águas cintilantes
E canta a sua última canção.
E declaro a minha fé:
Rio-me do pensamento de Plotino
E grito na cara de Platão,
A morte e a vida não existiam
Até o homem tudo inventar,
Tudo conceber,
Tudo fazer com a sua alma amargurada,
Sim, e o sol e a lua e as estrelas; tudo,
E também a convicção de que,
Mortos, nos levantamos,
Sonhamos e assim criamos
Translunar Paraíso.
Fiz as pazes
Com sábias coisas italianas
E altivas pedras gregas,
Imaginação de poeta
E lembranças de amor,
Lembranças de palavras femininas,
Todas essas coisas de que
Um homem faz um sobre-humano
Sonho semelhante a um espelho.
Como naquela seteira
As gralhas gralham e gritam,
E amontoam raminhos.
E depois de amontoados,
A mãe repousará
Sobre o buraco ao cimo,
Aquecendo o rude ninho.
Fé e orgulho deixo
Aos jovens que se erguem
E sobem a montanha,
Para ao romper do dia
Lançar o seu anzol;
Desse metal fui feito
Antes de o quebrar
Este ofício sedentário.
Agora edificarei a minha alma,
Exigindo-lhe estudo
Numa escola sábia
Até a ruína do corpo,
A lenta decadência do sangue,
Colérico delírio
Ou torpe decrepitude,
Ou os piores males que venham —
A morte dos amigos, ou a morte
Do brilho dos olhos
Que cortava a respiração —
Parecerem nuvens no céu
Quando o horizonte se desvanece;
Ou o sonolento grito de uma ave
Entre as sombras que se afundam.

Trad. José Agostinho Baptista

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

GALERIA JAZZ

(Cannonball Adderley)

FRANCISCO PERNA FILHO: POEMA

(Luiza Maciel Nogueira)



TRÂNSITO

Noite,
os carros disputam a volta,
os homens refletem o trânsito:
caos, crítica, crime.
Náufrago,
choro, o tempo atropela o desejo,
alma depositada.
Não há reação...
nos esguichos de vida
o corpo guarda o guarda.
Não há apito,
não há guincho.
De que adianta a direção?
no espaço de todos
a ausência de muitos.


terça-feira, 2 de novembro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: FRANÇOIS MAURIAC

(Bosch)




Os seres mais puros ignoram aquilo a que se misturam a cada dia e a cada noite, e o que brota de envenenado sob os seus passos infantis.

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Que lhe contaria? Por que confissão começar? As palavras bastarão para conter esse confuso encadeamento de desejos, de resoluções, de atos imprevisíveis? Como fazem eles, os que conhecem seus crimes?... “Eu por mim não conheço os meus crimes. Não quis cometer o de que me acusam. Não sei o que eu quis. Nunca soube para onde tendia, em mim e fora de mim, esse poder enfurecido: diante do que ele destruía pelo caminho, eu própria ficava horrorizada...”

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Onde fica o começo de nossos atos? Nosso destino, quando o queremos isolar, é semelhante a essas plantas que é impossível arrancar com todas as raízes. Teresa remontará até à infância? Mas a própria infância é um fim, é uma conseqüência.

A infância de Teresa: um pouco de neve na origem do rio mais impuro. No colégio, parecia viver indiferente e mesmo ausente das muitas tragédias que dilaceravam suas companheiras. Muitas vezes, as professoras lhes propunham o exemplo de Teresa Larroque: “Teresa não pede outra recompensa além dessa alegria de realizar em si um tipo de humanidade superior. A consciência é a sua luz única e suficiente. O orgulho de pertencer à elite humana sustenta-a melhor do que o temor do castigo...”. Assim se exprimia uma das professoras. Teresa interroga-se: “Seria eu tão feliz assim? Seria tão cândida? Tudo o que precede meu casamento adquire em minha lembrança esse aspecto de pureza; contraste, sem dúvida, com a nódoa inapagável do casamento. O colégio, para lá do meu tempo de esposa e mãe, surge como um paraíso. Então eu não tinha consciência disso. Como poderia saber que nesses anos preliminares da vida estava eu vivendo a minha verdadeira vida? Era pura; sim, um anjo! Mas um anjo cheio de paixões. Por mais que dissessem as professoras, eu sofria e fazia sofrer. Gozava com o mal que causava e com o que me vinha das amigas. Era um sofrimento puro, que nenhum remorso torturava: alegrias e dores nasciam dos prazeres mais inocentes”.


Thérèse Desqueyrux. Ed. Cosac & Naify
Tradução: Carlos Drummond de Andrade