sexta-feira, 29 de junho de 2012

FLORISVALDO MATTOS: POEMA


(Edgar Degas)


PASSOS E ACENOS


Nada tens de ave. Fera lúcida, olho
felino (pantera de Rilke entre grades),
nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos,
bebo teu corpo, teu cabelo (franja
dos dias) – o mais dardeja. Também és
elástica e macia: braço, pernas
de roliça cogitação. Vais, vens.
De pé, agitas os vaporosos membros,
ao calor da voz que atordoa o vento.
Sentada, as formas se acomodam, urdem
rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do sexo ávido. Bem
que mereço essa onda, ronda de garras
que me acenam, me buscam pela tarde.


Do livro Poesia reunida e inéditos. Ed. Escrituras.





quarta-feira, 27 de junho de 2012

terça-feira, 26 de junho de 2012

FLORISVALDO MATTOS: POEMA


(William Turner)


O SÓLIDO EM ÁGUA SE DESFAZ

Cores demais severas hoje me atam
a este crepúsculo infindo. Guarnecem-no
os fatais sortilégios, pesadelos.
Tudo aqui arde, é tudo áspero sonho.

Árdua e cálida noite se aproxima.
Saudarei nesse instante os que chegaram,
brandindo evangelhos e sentenças;
também os que sumiram neste chão.

Nuvens não faltarão de longa espreita.
Retalhos de memória estilhaçaram
o que em mim foi profético e que, flor,
se fez escória, pó tangido pelo vento.

Porque só existe de valor no mundo
o que em cristais de ausência se dissolve.
Lembrarei esta máxima provada
em meu vagar de porto para porto.

Enquanto agita um voo de gaivota
o céu claro, o Atlântico me doa
um cardume de luto imensurável,
que jamais sumirá no sal dos mares.

Mar que me segue para sempre, rastro
de quereres febris, deixa que sonhe
a alma intrépida, em senda de soluços,
rota de fel em perdidos paraísos.

Deixa a alma perder-se; deixa que a inunda
o reflexo perene das estrelas;
deixa-a sumir em ti, haste de espuma,
imersa em alquimia de pretéritos.

Deixa que, água, ela em água se desfaça.
Líquido mito, o brilho transpareça
estranho olho que aguarda em labirintos
ansiado tropel de outros minotauros.


Do livro Poesia reunida e inéditos. Ed. Escrituras.





IVAN JUNQUEIRA: POEMA





ELOGIO DE PLÍNIO



Nem um dia sem uma linha,

como se impunha o jovem Plínio

naquela Roma em que morria

o último estilo latino,

o da eloqüência bem nutrida

de que os escribas se serviam

em seus pedestres panegíricos.

Mas nem tanto. A lição de Plínio,

que se segue às de Horácio e Ovídio,

cujo estro se embebe em Virgílio,

já não é mais a do elogio,

e sim a do áspero exercício

da língua, do ritmo, da rima,

de tudo a que não renunciam

a fúria e o som da poesia.

Nem um dia sem uma linha,

sem uma dor, uma alegria,

sem um pensamento erradio

daquela vã filosofia

que se move em nós, escondida,

e faz da existência esse enigma

que é não termos princípio ou fim

e até mesmo nenhum sentido.





Do livro O outro lado. Ed. Record.




IVAN JUNQUEIRA: POEMA




VÉSPERAS

A tarde descortina
uma paisagem híspida:
no galho seco, o ninho
é uma inútil relíquia
que a luz do sol calcina
até a estrita cinza.
Gota a gota, o alambique
das horas se esvazia,
e dilui-se a vertigem
do álcool que lhe mordia
as veias retorcidas.
Êxtase da agonia
no crepúsculo a pino.
Sob o céu que definha,
alguém lê, num papiro,
o que afligiu o espírito
de Plotino e Agostinho,
e relembra a lascívia
do fogo que engoliu
Cartago e Alexandria.


Do livro O outro lado. Ed. Record.


domingo, 24 de junho de 2012

WILLIAM BLAKE: POEMA




O TYGRE


Tygre Tygre, Brilhante brasido
Nas florestas do anoitecido,
Que imortal olho ou mão conseguiria
Conceber tua cruel simetria?

Em quais distantes descidas ou céus
Brilhou o fogo nos olhos teus?
Em que asas desafiou seu vogo?
Que mão desafiou segurar o fogo?

Que ânimo, & que arte, tem poder
Pra do teu cor os tendões torcer?
E ao começar a soar teu coração,
Que drásticos pés, & drásticas mãos?

Qual o martelo? qual a corrente?
Em que fornaça se fez tua mente?

Qual a bigorna? que drástica presa
Desafiou seu danoso terror tesa?

Quando os astros setas soltaram,
E o céu com suas lágrimas molharam,
Ele sorriu ao ver o que obrou?
Quem moldou o Carneiro, te moldou?

Tygre! Tygre! Brilhante brasido
Nas florestas do anoitecido,
Que imortal olho ou mão desafiaria
Conceber tua cruel simetria?

 (Tradução: Joedson Adriano)

THE TYGER:
 
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare sieze the fire?
 
 
And what shoulder, & what art.
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand? & what dread feet?

 
 
What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?

 
 
When the stars threw down their spears,
And watered heaven with their tears,
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?

 
 
Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?


SHELLEY: POEMA




OZYMÂNDIAS

Eu encontrei um viajante de uma terra antiga
Que disse: duas destroncadas e vastas pernas de pedra
Permanecem no deserto. Na areia a elas contígua,
Um tanto soterrada, fendida face queda,

De carranca e hirto lábio e escárnio de quem castiga
Que dizem que seu escultor tais paixões bem traduziu
Que ainda sobrevivem, impressa em coisas inúteis,
A mão que as macaqueou e o coração que as nutriu.

No pedestal em palavras aparece declarado:
“Meu nome é Ozymândias, eu sou o rei dos reis;
Olhai minhas obras, grandes, e ficai desesperados!”

Nada ali remanesce: ao redor da decadência
Daquela colossal ruína, desmedido e despido,
O páramo plano areoso se estende em longa distância.

(Tradução: Joedson Adriano)


I met a traveller from an antique land
Who said:—Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown

And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,
The hand that mock'd them and the heart that fed.

And on the pedestal these words appear:
"My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!"

Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.



LORD BYRON: POEMA





LINHAS INSCRITAS NUMA COPA FORMADA DUM CRÂNIO


Não fujas– nem pense meu espírito fugido:
Observas em mim o único crânio,
Do qual, diferente dos que têm vivido,
Tudo quanto flui nunca é insano.

Eu amei, vivi, bebi, e como tu: eu morri:
Pra se resignarem soterra os ossos meus;
Completa – me injuriar não vais conseguir;
O verme tem lábios mais podres que os teus.

É melhor manter as uvas espumantes,
Que do verme nutrir a ninhada-porcaria;
E circular o cálice que é transbordante
Da bebida dos deuses, que o que os répteis sacia.

Talvez onde outrora cintilou minha mente,
Pra ajudar os outros agora brilhe o odre;
E quando, ai! os cérebros já não mais sentem,
Qual o substituto que o vinho mais nobre?

Beba enquanto podes: uma outra raça,
Quando tu e os teus, como eu, houverdes ido,
Poderá te resgatar da terra que te abraça,
E rimar e foliar com os falecidos.

Por que não? se através dos poucos dias de vida
Das nossas cabeças tristezas são formadas;
Redimidas dos vermes e da argila temida,
Esta é a chance de serem usadas.



(Tradução: Joedson Adriano)



Lines Inscribed Upon A Cup Formed From A Skull



Start not—nor deem my spirit fled:
In me behold the only skull
From which, unlike a living head,
Whatever flows is never dull.

I lived, I loved, I quaffed like thee;
I died: let earth my bones resign:
Fill up—thou canst not injure me;
The worm hath fouler lips than thine.

Better to hold the sparkling grape
Than nurse the earthworm's slimy brood,
And circle in the goblet's shape
The drink of gods than reptile's food.

Where once my wit, perchance, hath shone,
In aid of others' let me shine;
And when, alas! our brains are gone,
What nobler substitute than wine?

Quaff while thou canst; another race,
When thou and thine like me are sped,
May rescue thee from earth's embrace,
And rhyme and revel with the dead.

Why not—since through life's little day
Our heads such sad effects produce?
Redeemed from worms and wasting clay,
This chance is theirs to be of use.


TENNYSON: POEMA





ULYSSES



É pouco o proveito de um inútil rei,
Da calma da lareira, entre inférteis fragas,
Unido à velha esposa, que menta e distribui
Leis de desigualdade a uma selvagem raça
Que acumula e dorme e come e não me conhece.

Eu não posso repousar da viagem: beberei
A vida até a borra; todo tempo eu gozei
Grandemente, sofri muito, juntamente com aqueles
Que me amaram e sozinho; no litoral e quando

Por arrastadas correntes as pluviosas Híades
Vexavam o sombrio mar: eu estou a tornar-me um nome;
Para sempre rumando com cúpido coração
Conheci e vi muito; cidades de homens
E maneiras e climas, conselhos e governos,
Eu mesmo não o último, mas honrado por todos;
E delibei o deleite da batalha com meus pares,
Longe nos soantes planos da tempestuosa Tróia,
Eu sou parte de tudo o que eu encontrei;
Embora toda experiência seja um arco por onde
Brilha o ignorado mundo, cuja margem fenece
Pra sempre e pra sempre assim que eu me movo.
Quão tediosa a pausa, fabricar um final,
Oxidar sem ser lustrado, não chamejar no uso!
Respirar não é vida. Vida empilhada em vida
Seriam todas tão pouco, e de uma pra mim
Já pouco remanesce: mas cada hora é salva
Daquele eterno silêncio, alguma coisa a mais,
Um guia de novas coisas; e vileza seria,
Por uns, três sóis estocar e guardar em mim mesmo,
E este gris espírito ansiando em desejo
Pra buscar conhecimento como estrela cadente,
Além do último linde do pensamento humano.

Este é o meu filho, o meu próprio Telêmaco,
Para ele eu lego o cetro e a ilha—
É o meu bem amado, discernindo pra cumprir
Esse labor, de calma prudência pra fazer fiel
Esse rústico povo, e por suaves degraus
Subordiná-los todos ao útil e ao bom.
É o mais inocente, centrado na esfera
Dos deveres comuns, decente pra não falhar
Em ofícios de ternura, e também pra pagar
A adequada adoração aos meus domésticos deuses
Quando eu estiver ido. Sua lide lida, eu a minha.

Aqui está o porto; o navio tufa suas velas:
Aqui paira o vasto escuro dos mares. Meus marujos,
Almas que pensavam e suavam e urdiam comigo –
Que sempre com um festivo boas-vindas recebiam
O trovão e os raios de sol, e opunham livres
Corações e livres frontes — vós e eu estamos velhos;
A velhice tem entanto sua honra e seu trabalho;
A morte encerra tudo: mas algo antes do fim,
Um lavor de nobre nota pode ainda ser feito,
Apropriado pra homens que lutaram com deuses.
As luzes começam a cintilar nas rochas:
O longo dia desvanece: a lenta lua sobe: o abismo
Geme ao redor com muitas vozes. Vamos amigos,
Não é assim tão tarde pra buscar um novo mundo.
Desatracai, e sentados bem em ordem batei
As sonantes esteiras; pois meu propósito quer
Navegar além do pôr do sol e do mergulho
De todas as estrelas ocíduas, até que eu morra
Pode ser que os golfos nos banhem e afundemos:
Pode ser que toquemos as Ilhas Afortunadas,
E o grande Aquiles vejamos, a quem nós conhecemos.
Se muito está perdido, muito temos; embora
Não tenhamos agora a força que em velhos dias
Movia terra e céu; o que nós somos, somos;
Um igual temperamento de heróicos corações,
Fracos por tempo e fado, mas fortes em seguir
A lutar, a buscar, a achar e não ceder.



 (Tradução: Joedson Adriano)



It little profits that an idle king,
By this still hearth, among these barren crags,
Match'd with an aged wife, I mete and dole
Unequal laws unto a savage race,
That hoard, and sleep, and feed, and know not me.

I cannot rest from travel: I will drink
Life to the lees; all times I have enjoy'd
Greatly, have suffer'd greatly, both with those
That loved me, and alone; on shore, and when
Thro' scudding drifts the rainy Hyades
Vext the dim sea: I am become a name;
For always roaming with a hungry heart
Much have I seen and known; cities of men
And manners, climates, councils, governments,
Myself not least, but honour'd of them all;
And drunk delight of battle with my peers,
Far on the ringing plains of windy Troy,
I am a part of all that I have met;
Yet all experience is an arch wherethro'
Gleams that untravell'd world, whose margin fades
For ever and for ever when I move.
How dull it is to pause, to make an end,
To rust unburnish'd, not to shine in use!
As tho' to breathe were life. Life piled on life
Were all too little, and of one to me
Little remains: but every hour is saved
From that eternal silence, something more,
A bringer of new things; and vile it were
For some three suns to store and hoard myself,
And this gray spirit yearning in desire
To follow knowledge like a sinking star,
Beyond the utmost bound of human thought.

This is my son, mine own Telemachus,
To whom I leave the scepter and the isle—
Well-loved of me, discerning to fulfil
This labour, by slow prudence to make mild
A rugged people, and thro' soft degrees
Subdue them to the useful and the good.
Most blameless is he, centred in the sphere
Of common duties, decent not to fail
In offices of tenderness, and pay
Meet adoration to my household gods,
When I am gone. He works his work, I mine.

There lies the port; the vessel puffs her sail:
There gloom the dark broad seas. My mariners,
Souls that have toil'd, and wrought, and thought with me—
That ever with a frolic welcome took
The thunder and the sunshine, and opposed
Free hearts, free foreheads—you and I are old;
Old age hath yet his honour and his toil;
Death closes all: but something ere the end,
Some work of noble note, may yet be done,
Not unbecoming men that strove with Gods.
The lights begin to twinkle from the rocks:
The long day wanes: the slow moon climbs: the deep
Moans round with many voices. Come, my friends,
'Tis not too late to seek a newer world.
Push off, and sitting well in order smite
The sounding furrows; for my purpose holds
To sail beyond the sunset, and the baths
Of all the western stars, until I die.
It may be that the gulfs will wash us down:
It may be we shall touch the Happy Isles,
And see the great Achilles, whom we knew.
Tho' much is taken, much abides; and tho'
We are not now that strength which in old days
Moved earth and heaven; that which we are, we are;
One equal temper of heroic hearts,
Made weak by time and fate, but strong in will
To strive, to seek, to find, and not to yield.


JORGE ELIAS NETO: POEMA


(Piero Dorazio)


Rês


Para José Augusto Carvalho


Eis

o meteoro

da impaciência

que destrincha a carne,

que fratura

o tempo e

me descobre

tenro,

palatável,

em meio

aos estilhaços

da urgência.



Nutrido

em úbere

divino,

resfriado nas

evidências da razão

       – que não basta.


sábado, 23 de junho de 2012

ALEXEI BUENO: POEMA


(Cézanne)


ENIGMA

Certo mistério existe, indesvendado,
Escrito há eras sem conta, sobre os céus,
Por uma mão, talvez a mão de Deus,
Ressoando no criado e no incriado.

Para entendê-lo, deste e do outro lado
De tudo, angustiados como réus,
Demônios e anjos chocam-se nos seus
Vórtices, sem nenhum outro cuidado.

À volta dele os seres e as esferas
Inutilmente orbitam pelas eras
Na ânsia de desvelar a eles imposta.

Revolvem-se em legiões desamparadas,
Enquanto aqui, na noite, entre as calçadas,
És, e somente tu, sua resposta.


ALEXEI BUENO: POEMA


(Monet)



CONSTATAÇÃO

Corrente de amanhãs, vício de auroras.
Outro dia, outro dia, outro, por quê?
Agoras a exigir outros agoras,
Barco sem mapa, cais que não se vê.

No alto, a bandeira rota, e o lema: até.
Tudo incompleto. As horas, mães das horas,
Partindo inúteis. Novas, as escoras
Certas que a torre lhes cairá ao pé.

Ser fragmento, ser caco, ser a corda
Que não se amarra em nada, o elo partido,
O escorrer puro, o rio sem sentido,

A mão que segue adiante e nada aborda,
O que não é daqui, o que é a loucura
E o orgulho de seguir na selva escura.



ALEXEI BUENO: POEMA


(Berthe Morisot)

VIDÊNCIA

Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa

Maciça de aqui estar. Flor, nuvem, muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que pára o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.


JORGE ELIAS NETO: POEMA


(Monet)



Fração do indizível




O branco desse gelo

é todo poema ―

verdade possível.


Entre o amor,

e outras alucinações,

o inefável me acena

caridoso.


(A grande face

e sua biografia

de renuncias

e equívocos.)


Minha distância

não é exercício de retórica,

apontamento

de um ególatra,

tons pastéis despejados

na boca de lobo.


Não há indiferença

quando parto

e retribuo

o aceno.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

ENTREVISTA COM IVO BARROSO




IVO BARROSO nasceu em Ervália-MG e reside no Rio desde 1945. Formado em Direito e em Línguas e Literaturas Neolatinas. Foi assistente do Editor das enciclopédias Delta-Larousse, Mirador e Século XX. Editor-adjunto do Suplemento Literário do JB, da revista Senhor e de Poesia Sempre (da Biblioteca Nacional). Publicou mais de 30 traduções de grandes autores entre romancistas como Hermann Hesse, Georges Perec e Jane Austen, e poetas como William Shakespeare, T.S. Eliot, William Blake e Arthur Rimbaud. Seus livros de versos, Nau dos Náufragos (1982) e Visitações de Alcipe (1991), foram ambos editados em Portugal, onde foi editor da revista Seleções do Reader´s Digest. No Brasil publicou A Caça Virtual e outros poemas (2001, finalista do prêmio Jabuti de poesia daquele ano), editado pela Record. Organizou os livros Poesia e Prosa, de Charles Baudelaire (Nova Aguilar, 1995) e À Margem das Traduções, de Agenor Soares de Moura (Arx Editora, 2003). Escreveu O Corvo e suas traduções (Nova Aguilar, 2000 – agora em 3ª edição, 2012, pela LeYa-SP) e Poesia Ensinada aos Jovens (Tessitura-BH, 2010).




1) – Como ocorreu seu contato inicial com a literatura?

O Tesouro da Juventude.               

2) – Como você vê a cena literária – prosa e poesia - contemporânea no Brasil?   

Muita publicação, pouca qualidade.


3) – Como você vê a relação entre Tradição e movimentos de vanguarda, sejam eles no âmbito da literatura – prosa e poesia, música ou artes plásticas? É possível diálogo entre a Tradição e as vanguardas, ou uma obra de invenção deve ser necessariamente uma obra de ruptura?

A vanguarda de hoje será a tradição de amanhã.

4) – Como você vê a importância dos movimentos Modernista de 22 e do Concretismo para o desenvolvimento da literatura brasileira e seu suposto endeusamento quanto aos aspectos positivos? Não estaríamos em tempo de crítica avaliativa sobre a verdadeira contribuição desses movimentos e seus prejuízos em relação às estéticas do romantismo, simbolismo e parnasianismo para a literatura brasileira?

O movimento modernista marcou de certa forma a literatura brasileira, passamos a escrever à moderna ou à antiga. O concretismo não chegou a ser um movimento. Foguete coreano que cai apagado no quintal. Não há hoje rigorosamente ninguém no mundo inteiro escrevendo poesia concreta.

5) – O crítico literário Antônio Cândido, afirmou que todo país possuiria um representante máximo de sua literatura, um escritor que encarnasse a identidade cultural de seu país, sobretudo no âmbito da linguagem, e citou como exemplos nomes como Cervantes na Espanha, Goethe na Alemanha, Dante na Itália, Borges na Argentina, Camões em Portugal. O mesmo afirmou que o Brasil não possuiria essa figura máxima em sua literatura, talvez dois nomes, Guimarães Rosa e Machado de Assis. Qual sua opinião sobre essa questão? O que pensar de um nome como o padre Antonio Vieira?

Sou mais o Machado. Rosa está deixando de ser lido e Vieira na verdade nunca foi.

6) – Quais são os desafios, especificações e diferenças quanto a tradução de obras em prosa e poesia?

Quanto ao condicionamento ético a observar (fidelidade ao texto, correção vocabular, configuração estilística, etc), não há rigorosamente diferenças entre traduzir prosa ou poesia. Para esta última, no entanto, são requeridas algumas condições especiais do tradutor: em primeiro lugar, que seja poeta, que conheça os mais diversos estilos poéticos, a técnica do verso – mesmo quando se tratar da tradução de versos livres). Não consigo imaginar a tradução de um poema feita por alguém que nunca tenha escrito poesia. O resultado será necessariamente prosaico.

7) – Como você vê a relação entre obras traduzidas de outro idioma, sobretudo grandes clássicos da prosa e poesia, e sua importância para o crescimento cultural de um país ao tornar acessível essas obras ao leitor que não domina o idioma original?

Há pelo menos uma dúzia de frases consagradas sobre a importância da tradução no relacionamento cultural dos povos. A tradução como ponte... como passaporte... etc. Sem essas transposições a literatura de um país ficaria restrita à sua produção nacional, que necessariamente não contém a variedade nem a abrangência do conjunto das demais literaturas. Nunca me espanto com o número esmagador de obras estrangeiras traduzidas em relação às publicadas, no mesmo período, por nossos autores. O excesso é sempre benéfico: no meio do lixão importado vem sempre alguma coisa que serve de estímulo ao conhecimento e à produção locais.

8) – Como tradutor, quais são os escritores mais complexos em termos lingüísticos e temáticos que você traduziu?

A vida, modo de usar, de Georges Perec, pela sua variedade estilística, abrangência de assuntos, vocabulário concreto foi uma tradução –digamos – trabalhosa. Já traduzir Rimbaud, exigiu a permanência num estado de expectativa poética, principalmente quanto As iluminações, onde qualquer vacilo elimina ou amortece o impacto fraseológico e a vibração sensorial do texto.

9) – Dois grandes poetas franceses estão traduzidos em nosso idioma, Rimbaud, em tradução de sua autoria, e Baudelaire, em tradução de Ivan Junqueira. Qual a importância da presença desses escritores para nossa literatura?

Não só a de Baudelaire e Rimbaud, mas a presença de qualquer grande criador é imprescindível para a literatura como um todo. A obra deles se torna patrimônio comum através da tradução. Daí a universalidade de um Shakespeare, de um Dante, de um Victor Hugo.

10) – Também dispomos da obra completa do poeta T.S. Eliot em nosso idioma, cuja poesia foi traduzida por Ivan Junqueira, e o teatro traduzido por você. Qual a importância da presença desse escritor para nossa literatura?

Eliot pode ser considerado um desses expoentes de nosso tempo. O mesmo se dá com Joyce. Cada vez mais são traduzidos em todos as línguas, deixando de ser escritores de língua inglesa para se tornarem ícones universais.

11) – Comente sobre seu último livro intitulado O Corvo e suas traduções, de Edgar Allan Poe.

Trata-se de um livrinho sem maiores pretensões, não chega a ser um ensaio. Mas uma tentativa de provar criticamente e divulgar a tradução de O Corvo, de Edgar Allan Poe, feita por Milton Amado, um quase desconhecido, como sendo a interpretação mais adequada do poema, já tratado por vários outros tradutores.Mais que um problema de fidelidade é um caso de adequabilidade, de afinação instrumental.

12) – Em termos de tradução, parece existir em nosso país duas vertentes, a “transcriação”elaborada pelos concretistas Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari e alguns de seus discípulos como José Paulo Paes ou mesmo Nelson Ascher, e uma tradução em muitos aspectos entendida como“Tradicional”, supostamente representada por Ivo Barroso, Ivan Junqueira e o falecido poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos. Como você vê essa questão?

Para evitar qualquer mal-entendido, declaro desde logo que considero os irmãos Campos os maiores e melhores tradutores de poesia entre nós, pelos desafios que enfrentaram. Já disse que a Universidade de São Paulo devia recolher a obra deles num volume e distribuir a todos os tradutores de poesia.

Por outro lado, não vejo a existência de tais vertentes, ou qualquer conflito no que fazem os tradutores de poesia. O que alguns chamam de “transcriação” para mim é simplesmente “tradução”, ou seja, a tradução integral com observância da forma, do estilo, dos recursos, da qualidade poética. Sou contra a intromissão do tradutor na obra traduzida, seja para “melhorá-la”,atualizá-la, ou facilitá-la. O tradutor deve transladar o que está escrito e da forma como foi escrito – mantendo, evidentemente, o teor poético, mas não fazer um outro poema em cima do original. Queremos o autor (ou a sombra do) autor e não a pessoa que o traduz. Daí não fazer sentido falar em tradução de vanguarda e tradução tradicional: o que há é boa ou má tradução – e ponto.

13) – Comente sobre sua poesia e a possibilidade de um livro novo de poemas de sua autoria.

Em 2001 reuni tudo que me pareceu válido (digno de ser publicado) de minha produção autônoma, sem preocupações com épocas ou estilos, e fiz uma espécie de antologia (A Caça Virtual e outros poemas) que era, ao mesmo tempo, meu livro de estréia. Minha produção atual é muito escassa, mas recolho os versos para um (pouco) provável segundo livro, este certamente conservando uma certa unidade, já que os poemas serão da mesma época (atual). Mas não me importo de passar como autor de um único livro de versos. Tenho boas companhias.



quinta-feira, 21 de junho de 2012

IVAN JUNQUEIRA: POEMA


(Caravaggio)

TRÊS MEDITAÇÕES NA CORDA LÍRICA - I


Only through time time is conquered.
T. S. Eliot, Four Quartets, Burnt Norton, 92

Deixa tombar teu corpo sobre a terra
e escuta a voz escura das raízes,
do limo primitivo, da limalha
fina do que é findo e ainda respira.

O que passou (não tanto a treva e a cinza
que os mortos vestem para rir dos vivos)
mais vivo está que toda essa harmonia
de claves e colcheias retorcidas,
mais vivo está porque o escutas limpo,
fora do tempo, mas no tempo audível
de teu olvido, partitura antiga,
para alaúde e lira escrita, timbre
que vibra sem alívio no vazio,
coral de sinos, música de si
mesma esquecida, aquém e além ouvida.

O que passou (à tona, cicatriz)
é dor que nunca dói na superfície,
ao nível do martírio, mas na fibra
da dor que só destila sua resina
quando escondida sob o pó das frinchas
e que, doída assim tão funda e esquiva,
é mais que dor ou cicatriz: estigma
aberto pela morte de outras vidas
nas pálpebras cerradas do existido,
espessa floração de espinhos ígneos,
solstício do suplício, dor a pino
de te saberes resto de um menino
que anoiteceu contigo num jardim
entre brinquedos e vogais partidas.

E tudo é apenas isso, esse fluir
de vozes quebradiças, ida e vinda
de ti por tuas veias e teus rios,
onde o tempo não cessa, onde o princípio
de tudo está no fim, e o fim na origem,
onde mudança e movimento filtram
sua alquimia de vigília e ritmo,
onde és apenas linfa e labirinto,
caminho que retorna ao limo, à fina
limalha do que é findo e ainda respira
para depois, o mesmo, erguer-se a ti,
ao que serás, porque estás vivo aqui,
agora e sempre, antes e após de tudo.

Deixa tombar teu corpo e te acostuma,
húmus, à terra — útero e sepulcro.




IVAN JUNQUEIRA: POEMA


(Pieter Brueghel)



Sagração dos Ossos
A Bruno Tolentino


Considerai estes ossos
— tíbios, inúteis, apócrifos —
que sob a lápide dormem
sem prédica que os conforte.

Considerai: é o que sobra
de quem lhes serviu de invólucro
e agora já não se move
entre as tábuas do sarcófago.

Dormem sem túnica ou toga
e, quando muito, um lençol
lhes cobre as partes mais nobres
(as outras quedam-se à mostra,

não dos que estão aqui fora,
mas dos ácidos que os roem
ou do lodo que lhes molha
até a polpa esponjosa).

De quem foram tais despojos
tão nulos e sem memória,
tão sinistros quanto inglórios
em seu mutismo hiperbólico?

Onde andaram? Em que solo
deitaram sêmen e prole?
Foram químicos, astrólogos,
remendões, físicos, biólogos?

Ou nada foram? Que importa
não haja um só microscópio
lhes cevado a magra forma
ou a mais ínfima nódoa?

Existiram. Esse é o tópico
que aqui, afinal, se aborda.
E eis o faço porque, ao toque
de meus dedos em seus bordos,

tais ossos como que imploram
a mim que os chore e os recorde,
que jamais os deixe à corda
da solidão que os enforca,

nem à sanha do antropólogo
que os vê, não como o espólio
do que foi amor ou ódio,
lascívia, miséria e glória,

mas como a lívida prova
de que o sonho foi-se embora
e dele só resta a escória
numa urna museológica.

E então me pergunto, a sós:
por que desdenhar o outrora
se nele é que ecoa a voz
do que, no futuro, aflora?

Não bastaria uma rótula
para atestar esse cogito,
ergo sum, aqui e agora,
alheio a qualquer prosódia

ou língua em que se desdobre
essa falácia que aposta
no fundo abismo sem orlas
entre o que vive e o que morre?

Baixa uma névoa viscosa
sobre as pálpebras da aurora.
E ali, de pé, sob a estola
de um macabro sacerdote,

sagro estes ossos que, póstumos,
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte.


quarta-feira, 20 de junho de 2012

GUILHERME DE ALMEIDA: POEMA


(W.J.Solha)

Cinema


Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.
Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.
E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.
Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.
E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
— são bandidos e heróis;
são lágrimas e risos;
são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...
É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...


domingo, 17 de junho de 2012

POESIA E REVELAÇÃO





Em fins de 1911, instalado pelos príncipes de Tour e Taxis, Rilke vai passar sozinho o inverno no Castelo de Duino. Um belo dia de janeiro, passeando às bordas de um penhasco sobre o Adriático, diz ter ouvido no vento o mistério de uma voz que lhe dizia: “Quem, se eu gritasse, me ouviria em meio à hierarquia dos anjos?” Eriçado, e ao mesmo tempo atônito com o milagre dessas palavras que lhe surgiam com a própria poesia desejada, o poeta as anotou e, e nesse mesmo dia, escrevia o primeiro movimento desse bloco sinfônico a que chamou Elegias de Duino. Tão temperados se achavam nele os motivos da obra em perspectiva que, em poucos dias, escrevia a segunda da série e o começo de quase todas as outras.



Mas o impulso cessou. Por dez anos Rilke calou-se, à espera de que nele as palavras encontrassem seu lugar exato no grande puzzle poético que se desencadeara. Em Paris, na Espanha e em Munique acrescentou fragmentos a algumas das elegias, sofrendo terrivelmente da descontinuidade com que a poesia se revelava. E não seria senão depois da Primeira Grande Guerra, no seu refúgio da Suíça, em Muzot, que num sopro de criação poucas vezes igualado, só comparável talvez a certos instantes de música e de pintura em Miguelangelo e Beethoven, escreveria em três semanas as oito elegias restantes, os 55 Sonetos a Orfeu e vários outros poemas a que chamou Fragmentarishes. Fora o último espasmo de vida nesse eterno, sereno moribundo. A Morte, sua amiga, desobjetivava-o poucos anos depois, como “um rio que leva”. Rilke recusou o médico: queria morrer a sua morte.





Vinicius de Moraes. Do livro Para viver um grande amor.