quarta-feira, 31 de março de 2010

MÁXIMAS OU AFORISMOS IV

(Paul Klee)


77

A linguagem é o desvelamento do humano por excelência, e também o limite de suas possibilidades expressivas.

78

Ao encarnar a compreensão poética de seu tempo o poeta torna-se porta voz do universal.

79

No âmbito das apreensões imediatas a visão poética é sempre transfiguradora da realidade.

80

Sendo um artefato do espírito, toda poesia promove a interação do indivíduo com o universal; sua efetiva integração, na medida em que todo poeta em sua singularidade e subjetividade pode representar todas as características formativas do gênero ao qual pertence: a humanidade.

81

O óbvio é tão somente o resultado da cegueira ocasionada pelo desenraizamento poético do mundo.

82

A morte eminente de uma cultura pode ser constatada a partir do momento em que essa mesma cultura torna-se incapaz de produzir poesia.

83

A ausência de poetas é a certeza da desumanização de um povo.

93

Em muitos casos, a arte pode não justificar a vida, mas ocultar sua razão de ser.

173

Na arte somos cúmplices do eterno.

174

Não raro, na música gozamos a glória de sermos humanos.

176

Na arte poética a linguagem reivindica sua autonomia.

177

Poesia: vivência da linguagem.

186

Poesia: gozo dos eleitos.

Obs: aforismos de minha autoria protegidos por direitos autorais.

domingo, 28 de março de 2010

PADRE ANTÔNIO VIEIRA: SERMÃO DO MANDATO

(El Greco)


O teatro da última despedida ou apartamento de Cristo, foi o vale de Getsêmani, coberto das sombras da noite, onde tudo aspirava amor, tudo silêncio, tudo tristeza, tudo saudade. Aqui se apartou o amoroso Senhor de seus discípulos, não de todos juntamente, senão de uns primeiro, e depois dos outros. Como o golpe lhe chegava tanto à alma, não se atreveu a levá-lo todo de uma vez; foi dividindo por partes. Assim se apartou o Senhor; mas não digo bem! Avulsus est ab eis, diz S. Lucas (Lc. 22, 41): Não se apartou, arrancou-se. Tão violentamente se apartava Cristo dos homens, que o aparta-se deles era arrancar-se. Tão dentro deles estava, e tão dentro de si os tinha, que não se apartava dos seus olhos, nem se apartava de seus braços: arrancava-se de seus corações, e arrancava-se-lhe o coração: Avulsus est ab eis. Saia agora a morte com algum semelhante encarecimento, se o tem, do muito que fizesse Cristo em padecer, e diga o que dizem dela os evangelistas. Porventura chegou a dizer algum evangelista, que quando Cristo morreu, se lhe arrancou a alma? Não por certo. O evangelista que mais disse foi S. Mateus. E que disse? Emisit spiritum: despediu a alma (Mt. 27, 50). De sorte que quando Cristo morre despede a alma, e quando Cristo se despede, arranca-se dos homens. Tão fácil lhe foi morrer, tão dificultoso o apartar-se. O laço com que a alma de Cristo estava atada ao corpo desatou-se; os laços com que o mesmo Cristo estava atado aos homens não se puderam desatar: romperam-se. Romperam-se, rasgaram-se, arrancou-se: Avulsus est. Quantos eram os homens que havia no mundo, tantas eram as raízes que prendiam o coração de Cristo. Eram raízes de trinta e três anos, eram raízes de uma eternidade inteira, profundadas com tanto amor, regadas com tantas lágrimas, endurecidas com tantos trabalhos; e que todas essas raízes, tantas e tão fortes, se houvessem de arrancar juntas na mesma hora: Sciens quia venit hora ejus? Oh! que dor! Oh! que violência! Oh! que tormento! Cada palavra do evangelista é uma profunda ponderação desta força e desta repugnância. É possível que hão de ficar no mundo os homens, que hão de ficar no mundo os meus: Suos, qui erant in mundo? É possível que eu me hei de apartar para sempre deste mundo, onde os vim buscar: Ut transeat ex hoc mundo? Ex hoc mundo: Oh! que terrível apartamento! Hora ejus: Oh! que terrível hora! In finem: Oh! que terrível fim! Ut transeat: Oh! que terrível transe!

Toda morte é justamente morte e ausência: é morte, porque nos tira a vida; é ausência, porque nos aparta para sempre daqueles que neste mundo amamos.

Sermões. Ed. Edelbra

sábado, 27 de março de 2010

CRUZ E SOUSA: POEMA

(Magritte)


ÂNGELUS

Um sol em sangue alastra, mancha prodigiosamente o luxuoso e largo damasco do Firmamento.

Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras luminosas dão uma glória sideral à tarde.

E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora, os deslumbrantes efeitos escarlates do grande astro que desce, d’envolta com douramentos faustosos, fazem lembrar a magnificência romana, a ritual majestade dos Papas, um festivo desfilar católico de bispos e cardeais, através dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os báculos e as mitras altas, sob os pálios aurilavrados.

Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos, purificadores, como emanados da saúde, das virgindades eternas.

Um ar olímpico, talvez o sopro vital de mares verdes e gregos, eterifica harmoniosamente a curva das montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as, dá-lhes a nitidez, o esmalte do aço.

Como que a Natureza, nesse esmaecer do dia, tem mocidades imortais e como que as forças, as origens fecundas da terra, desabrocham em rosas.

O rubente esplendor solar gradativamente smorza num cor-de-rosa leve, de veludosa suavidade.

Serenamente, lentamente, uma pulverização neblinosa desce das amplidões infinitas...

Névoas crepusculares envolvem afinal a imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios.

Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos vales e das colinas adormecem além, repousam num fluido noctambulismo...

Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma voz de mulher, dispersa no silêncio, clara e sonora, canta amorosamente para as estrelas que afloram rútilas e mudas.

Canta para as estrelas! e parece que a sua voz, errante na vastidão infinita, vai inundada do mesmo perfume original que a alma viçosa e branda dos vegetais exala da Noite...

Missal. Ed. Martins Fontes

BLAISE PASCAL: PENSAMENTOS

(Munch)


41

Pouca coisa nos consola porque pouca coisa nos aflige.

152

Entre nós e o inferno ou o céu não há senão o entremeio da vida, que é a coisa mais frágil do mundo.

165

O último ato é sangrento, por mais bela que seja a comédia em todo o resto. Lança-se finalmente terra sobre a cabeça e aí está para sempre.

166

Corremos despreocupados para o precipício depois de ter colocado alguma coisa à nossa frente para impedir-nos de vê-lo.

22

O poder das moscas, elas ganham batalhas, impedem a nossa alma de agir, comem o nosso corpo.

70

Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos.

445

Que concluiremos de todas as nossas obscuridades senão a nossa indignidade?

709

Nós conhecemos tão pouco a nós mesmos que muitos pensam que vão morrer quando estão bem de saúde e muitos pensam que estão bem de saúde quando estão próximos de morrer, não sentindo a febre próxima ou o abscesso prestes a se formar.

434

Imagine-se certo número de homens em grilhões, todos condenados à morte, sendo que alguns são degolados a cada dia na presença dos outros; aqueles que ficam vêem a sua própria condição na de seus semelhantes e, olhando-se uns e outros na dor e sem esperança, esperam a sua vez. Essa é a imagem da condição dos homens.


Pensamentos. Ed. Martins Fontes

quarta-feira, 24 de março de 2010

GREGÓRIO DE MATOS: SONETO II


(Igreja barroca Ouro Preto MG)



BUSCANDO A CRISTO


A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

segunda-feira, 22 de março de 2010

GREGÓRIO DE MATOS: SONETO

(El Greco)


Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

domingo, 21 de março de 2010

ROBERTO GOTO: AFORISMOS

(Malevich)



É possível que a verdadeira função do escritor seja esta: cobrar sentido do vivido.

Começar um livro é temer o tempo.

A significância do escrito pressupõe que se esqueça e se desconsidere a insignificância do escritor.

Quando um livro cala fundo no leitor, este, depois de o ler, não é capaz de comentá-lo; cala-se sobre ele.

A literatura não é um jogo, mas o jogo por excelência: fazê-la é não só jogar por jogar, mas também – e ao mesmo tempo – jogar por viver.

Interiorizar e compreender. Ler é transformar um discurso externo em discurso interno.

O Escritor é um jogador. Seus dados são a Contingência e a Necessidade.

O escritor está ao mesmo tempo muito distante e muito próximo da vida.

A obra de arte só ecoa no homem na medida em que o homem ecoa a obra de arte.

Na arte, o gosto não é só critério; é fato.

O que sentimos sobre um fato – ou no seu próprio interior, ao vivê-lo – já é uma primeira interpretação, uma primeira versão que fazemos dele: o seu sentido é o nosso sentido, isto é, o que sentimos.

Cada um é o seu tempo; sua sensibilidade é sua época – seu coração é o que viveu.

Na arte, o niilismo é vivido como gozo.

Quando a sociedade reconhece a obra de um artista ou intelectual que morreu no anonimato, não faz mais que lisonjear a si mesma: ou purgando um sentimento de culpa, ou, o que é muito mais provável, mostrando a si mesma como é generosa em dar reconhecimento a quem ela ignorou a vida toda.


Sob o signo de Brás Cubas: aforismos e desaforismos. Ed. Unicamp

sexta-feira, 19 de março de 2010

UM POEMA DE MAJELA COLARES

(Paul Klee)



ARQUÉTIPO DE ANJO INVENTADO

a pele é de sol, a idéia granizo
o sexo de bronze, a íris de lentes

tórax de fel e lábios de riso

surpresa na face, um céu sob os dentes
passado sem voz, a boca sem viço

- agora incertezas e dias ausentes

hoje sua vida perplexa no espelho
guardando a fachada incerta do escuro

foge de regras, detesta conselho
seu tempo acabou, dormiu seu futuro


poema do livro As cores do tempo. Ed. Calibán

quarta-feira, 17 de março de 2010

JULIO RODRIGUES CORREIA: NOTURNO I

(Edward Hopper)


NOTURNO Nº 1

O vento se abate irascível
contra o velho alpendre
e macera as vértebras
da solidão.
Encolhido no lado direito
da casa o jardim
esconde flores suicidas
nas sombras dos canteiros
e a noite invade
( resoluta) os latifúndios
da madrugada,
lá fora uma chuva miúda
irrompe os degraus
do silêncio e irriga
a lavoura do tempo.

JULIO RODRIGUES CORREA: NOTURNO II

(Enrico Bianco)

NOTURNO Nº 2

A tua luzidia e distante efígie
habita a morna tessitura
dos meus olhos sonâmbulos
e povoa de cio meus instintos
eróticos.
Entre nós dois existe (fixo)
um alpendre de memória
( confissões de segredos e
pecados)
que nos conduz por marés
e auroras inconclusas.
A textura das palavras
descem os degraus do vento
e se transforma em espumas
cozidas pela forja do tempo,
enquanto a caligrafia do silêncio
esconde os remorsos da noite
e o sal das horas
flamba os grãos da espera.

UM POEMA DE BERNARDO LINHARES

(Renoir)


LUAU

Num mar tranqüilo de fim de tarde
o vento sopra a vela do dia,
a noite penetra pela fresta,
onírica, sim, ela suspira.
Adormecida sonha com anjos,
no silêncio do sem-fim desperta
nova e nua.Abraçando o oceano
no quarto crescente curva em arco
e toda inteira, recheada em chamas,
o vento lambe os seus fios dourados.

terça-feira, 16 de março de 2010

UM POEMA DE NYDIA BONETTI

(Enrico Bianco)


PREPARADOS CANTEIROS

flores do bem, flores do mal - brotarão - dos olhos (aquáticos)
e das mãos (de terra) dos meninos

preparados canteiros (à espera)

tempo de chuva agora (depois, tempo de sol) inevitavelmente
as flores virão

UM POEMA DE LARA BARROS

(Renoir)



INCÓLUMES PASSOS

Era uma manhã de domingo ensolarado, pela janela avistavam-se pombos e periquitos alçando vôos longínquos, com os pés ainda nus, correndo por entre passos alvoroçados, nada lineares, seus pés foram atingidos de forma súbita, por um furo de uma flerpa bendita que lhe trouxe a reflexão da necessidade de caminhar com mansidão.

domingo, 7 de março de 2010

MÁXIMAS OU AFORISMOS III

(Miró)



A vida pode tornar-se bela e grandiosa, desde que não acreditemos nela, pois a vida em si não possui sentido algum. Mas a partir do fato de existir, refiro-me ao fato concreto, o exemplar único e singular de cada ser humano, a vida pode tornar-se significativa.

Não compete aos deuses a dádiva do gozo.

No ofício do amor os corpos transgridem o espírito.

Na grandeza ou na miséria o homem é indigno.

Caminhamos para a escravidão tão logo nos sabemos livres.

Diante do paraíso o homem hesita.

O que deploramos nos outros não são seus defeitos e sim suas qualidades.

Exasperar-se de seus limites é sempre um sinal de vaidade.

No amor, raramente perdoamos o sentimento de vingança.

A esperança de todo homem não termina com a morte e sim com suas desilusões.

Também destruímos ao amar.

Não raro, no sacrifício encontramos a fúria das consolações.

Nem mesmo no amor prescindimos da solidão.

Nas grandes desgraças o homem reivindica a Deus o seu destino.

Há múltiplas formas de amor, mas só um desejo.

Amor: cobiça do corpo.

Amor: anelo do coito.

A alegria: em sua raridade, uma dádiva não compreendida.

Há traições que não carecem de perdão.

Amor: raro enleio em meio ao incerto jogo das representações.

Também na verdade encontra-se o vício.

Obs: aforismos de minha autoria protegidos por direitos autorais.

POEMA

(Bosch)


GOMORRA

Uma centelha de luz que se dissemina ao compasso das disparidades. Caminhamos sobre Gomorra e o desejo de todas as injúrias. Na gratuidade das omissões, de ofensas não ratificadas, proliferam-se ossos e cicatrizes da meretriz usurpada. Não se preside o inferno e o amor, não se preside a cobiça e a ternura. Somente o indulto de fatos estabelecidos ante a insídia das próprias ilusões. Os que esperam os lírios famintos apodrecem no inestimável furor da aurora.

quinta-feira, 4 de março de 2010

POEMA





SENDAS DO IMPONDERÁVEL

As sinuosidades do corpo, sendas do imponderável. Lícito é a conjunção dos desejos, a cumplicidade das expectativas. Lícito o dispêndio de sentimentos não compartilhados. Premissas do amor. Címbalo da sensibilidade, cilício da queda, com fúria e complacência estigmatizamos os ditames da aproximação. Haure o tempo seu ardor. Haure o sexo sua convalescença. Pode o espírito prescindir da carne? Abate-se um porco por não reproduzir. Ardem os homens o exílio do éden.