Quando li pela primeira vez os poemas de
“Temporário”, do poeta Stefanni Marion, fiquei surpreso com o fato de que ele
tinha de certa forma ‘engavetado’ seus poemas, e assim, a possibilidade de um
livro de estreia. Uma poesia lírica, sensível e de alta qualidade, porque
simplesmente tem o que dizer em sua dicção. Hoje me sinto honrado por ter sido
o primeiro a publicar seus poemas e apresentar essa entrevista aos leitores do
Poesia Diversa. Entrevista que deve anteceder seu primeiro livro: Temporário! Livro a sair pela Editora Patuá.
Foi durante a infância, porém lembro-me de ter tido
contato com pouquíssimos livros nessa fase. Descobri o que era poesia mesmo na
adolescência, vasculhando estantes e descobrindo Arthur Rimbaud, foi num livro
dele que tive o impacto maior com a escrita poética. Eu era ingênuo demais para
entender sua grandiosidade, mas ficava inexplicavelmente fascinado a cada vez
que me perdia em seus versos.
2) –
Quais são suas influências literárias?
Minhas primeiras influências literárias são as mais importantes até hoje e vieram assim que cheguei a São Paulo, na biblioteca do bairro onde morei. Eu tinha uns doze anos, era mágico andar por aqueles corredores, os livros me escolhiam. Foi entre estantes que Sylvia Plath, Rainer Maria Rilke, Machado de Assis, Hilda Hilst, Luigi Pirandello, Ernest Hemingway, Tennessee Williams, Fiodor Dostoievski, entre outros acenaram para mim pela primeira vez. Para fugir dos alinhavados doloridos de minha casa, me refugiava na biblioteca praticamente o dia inteiro.
3) – Como é seu procedimento ao escrever
um poema?
Não tem procedimento determinado.
Não é algo sistemático feito regras biblioteconômicas. Se eu tivesse seguido um
único caminho, os estados temporários dos sentidos nunca teriam se
desembaraçado e gestado um livro. Criar um procedimento me aprisionaria
completamente. Agrada-me tanto a balburdia quanto a profundidade sonora do silêncio.
Tanto faz, em que suporte inicialmente ele seja escrito. Assim que o poema
nasce, é momento de dar-lhe um banho de boas vindas feito a um recém-nascido,
depois é tempo de ir enxugando carinhosamente as gotas desnecessárias. Mas
existem poemas que já nascem prontos e qualquer tipo de banho tiraria e
afogaria toda sua artimanha poética.
Arrebatamento. Qualquer outra
definição que tentasse fazer fugiria da pergunta e seria poesia.
5) – Duas dimensões presentes em sua
poesia como marca constitutiva de sua escrita: o lirismo e o memorialismo, ou
seja, uma poética manifesta em versos de grande teor sentimental ao mesmo tempo
que revela um tom confessional de experiências vividas. Comente esse aspecto de
sua poesia.
Ambos me levam ao clímax da beleza,
mas ao mesmo tempo me perturbam corrosivamente. Por eu ter uma escrita que
versa para o lírico, fora da literatura acham que sou sempre assim, que saio
por aí o tempo todo transformando barulho de água jorrando no bueiro, em
poesia. O memorialismo me faz escavar fendas que por vezes eu poderia deixar
lacradas, no entanto fico revolvendo-as continuamente para encontrar o tom
exato do poema. Já fui criticado algumas vezes por essas marcas. Depois de anos
convivendo com esse jeito de sentir, tenho a sensação que na poesia seria
difícil perder o tom da confissão, ser confessional é inevitável durante a
trajetória. Sempre senti necessidade de dizer pela escrita o que por vezes não
disse coloquialmente entre os quatro lados das paredes da sobrevivência. Mas
toda essa vertente confessional acaba por se universalizar, definitivamente não
escrevi esse livro pra alguém especifico, e sim para todos os leitores que já
tiveram seus corações partidos ou simplesmente apreciem esses delírios e
rompantes literários. Sylvia Plath foi minha maior inspiração nesse aspecto da
escrita, minha musa. Quando li essa moça pela primeira vez, senti-me
completamente tocado por sua força poética, entorpecido feito “o beijo de um
devasso”.
6) – O título de seu primeiro livro
chama-se “temporário”; um indicativo semântico da transitoriedade de nossas
vivências; mas sua poesia parece contrariar esse aspecto existencial que marca
todo ser humano mediante a presença de lembranças decorrentes de suas
significações transfiguradas para o universo poético. Comente essa questão.
Na verdade, isso foi proposital. A
palavra “temporário” sempre me atraiu muito, mas em vários momentos do livro,
eu fui contra o real sentido dela. Era mais ou menos como desafiar o tempo, ir
contra os ponteiros e paradigmas do destino. Eu dava meia volta no que estava “encerrado”
até que para mim estivesse de fato finalizado. Era minha tentativa de conseguir
um pouco mais de tempo para os acontecimentos dos quais não conseguia me
desligar com facilidade. Nos dois últimos poemas, deixo isso um pouco mais
claro, talvez ali eu tenha versado minha satisfação com o finito. Transitei
muito entre idas e vindas até encontrar o que para mim seria o tom exato para
essa seleção de poemas.
7) – A poesia – como nos versos de
‘plúmbeo’ – deve ser uma afirmação da vida mesmo diante de sua fugacidade?
Quando se fala de morte, afirma-se a vida. Quando se fala de vida, afirma-se
a morte. A morte encontra deleites e significados ao transitar pela vida. A
fugacidade anda em paralelo com tudo isso, como as pequenas transitoriedades do
cotidiano, uns emaranhados dos quais, por vezes, nasce a poesia. Uma parte
representativa dos poemas, da primeira parte do livro, foram escritos em minha adolescência,
são meus acinzentados céus de cimento. A transição entre os poemas de “plúmbeo”
para os outros é uma espécie de corte do cordão umbilical, um afirmar a vida
diante de suas fugazes labaredas e revezes dos sonhos juvenis.
8) – Alguns dos poemas de “Temporário”
exploram de forma dramática experiências familiares. Comente essa dimensão de
sua poesia.
Eu comecei a escrever poesia para
“falar” ao meu pai coisas que eu não conseguia dizer verbalmente. Durante anos,
ele foi o meu grande tema. Creio que dos 16 aos 20, eu sempre voltava a escrever
sobre ele, mesmo que estivesse tentando colocar outras vozes ao poema. Sentia
muita falta da tal relação entre pai e filho, permeando essas ausências, que
esses poemas nasceram. A eloquência do meu pai sempre me manteve um tanto
revolto e à margem de nossa relação, quase que completamente. Esses poemas ficaram
guardados por serem pessoais demais, mas depois percebi que outras pessoas se
identificavam com eles, ou seja, as poucas que tiveram acesso aos pedaços de
papéis rabiscados e guardados em meus bolsos. Como se meus dramas familiares saíssem
pelo portão e se estendessem à vizinhança. Foi então que no livro, eles vieram à
tona, são parte dos sentidos temporários e não poderia tirá-los de forma alguma.
Percebi que tinham muito mais que apenas estrofes escritas por um garoto
aprisionado, tentando libertar-se de seus medos. Eram muitos poemas sobre ele,
fiz uma seleção e destruí vários outros. Os poucos que falam do meu pai estão
apenas na primeira parte (plúmbeo), na segunda parte (fascínio), ele deixou de
ser tema e abriu espaço para meus primeiros amores temporários. Dia desses
defini essa história toda, de escrever sobre experiências, quando na estação de
trem, ouvi pelo alto-falante um funcionário enfatizar uma frase do tipo “evitem
tumultos nas estações de trem”, daí eu pensei, “talvez seja isso, ao escrever,
eu evite tumultos dentro de mim”. Hoje, eu tenho tranquilidade para falar sobre
esses tumultos, mas escrever esse livro não foi fácil, foi um contínuo rasgar-se
para reconstruir-se.
9) – O poema “.chet, você e a chuva.”,
trata da complexa e muitas vezes dramática questão do preconceito e da
violência quanto ao homossexualismo. A poesia pode ser uma forma de combate a
homofobia e ao mesmo tempo veículo de reflexão sobre essa temática?
Sem dúvidas, a poesia tem a mesma
potência de protesto que qualquer outro meio de expressão artística. Eu diria
que a poesia é argumento, e dos fortes, mesmo que ela não seja direta e se
apresente muitas vezes versada em metáforas recortadas. Esse poema trata sobre
o dia em que fui agredido dentro do ônibus, um assunto sobre o qual demorei
muito tempo para conseguir escrever. Até que numa madrugada, as palavras vieram...
Escrever o que eu tinha a dizer ao meu agressor foi estar outra vez lado a lado
com a morte. Após terminá-lo fiz duas cópias, coloquei os fones de ouvido, apertei
o play para voltar a ouvir Chet Baker e saí de casa. Peguei a mesma linha de
ônibus onde tudo aconteceu, deixei ali, no banco estofado, uma das cópias do
poema. Depois fui até a delegacia, onde meses antes havia feito o boletim de
ocorrência denunciando um agressor que nunca foi encontrado. Prendi meu poema
com fita adesiva na porta central e fui embora. Me senti menos indignado com
tudo isso? Não. Decidi naquela madrugada que esse poema deveria sim estar no “Temporário”.
Sexualidade não é meu tema, mas é um dos fortes de minha geração e não sou eu
que deixarei de ter culhões para assumir meus espaços e posicionamentos como
cidadão.
10) – Como o poeta Stefanni Marion vê a
internet na divulgação da poesia e da
arte?
A internet permitiu democratizar a
poesia, sopra-la virtualmente em inúmeros caracteres, assim como seria na vida
real se soprássemos com força farelos de pães em cima da mesa forrada por uma
toalha quadriculada. Cada farelo soprado chegaria a um quadriculado diferente.
A mesma informação, através de um clique, chega a um receptor que, a partir
dali, pode replicá-la. Certamente, o ambiente virtual é um importante meio de
divulgação da literatura, música, fotografia, cinema e outras vertentes
artísticas. É feito a extensão da voz, por onde disseminamos nossos trabalhos
sem precisarmos mais ficar carregando eles nos braços feito filhos mimados que
teimam em não andar. É só saber fazer bom
uso dela, educar-se virtualmente. Mas lembro-me que na infância tudo era tão
mais sinestésico e aventureiro. Quando estou em frente ao computador, sinto um
cheiro que não sei nomear. Às vezes quando escrevo, sinto falta do cheiro do
papel amassado e da vela queimando, é quando me desconecto e apago a luz...
Esse autor é maravilhoso !
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