(Jean Delville)
IX
Para não pousares no cume da erva amarga que
serve de ídolo aos nossos saduceus: - mostra o que fazes de mau e esconde o que
fazes de bom; expõe o que tens de pior em ti e oculta o que tens de melhor; não
te vanglories de ser ou ter sido bom, mas de ser ou ter sido mau. Se um astro
da inércia, no entanto, já há muito repousa em teu espírito, procede assim: -
não faças bem algum; não procures ter nada de bom; não te vanglories do bem,
pois em ti o mal já se fez uma virtude autônoma. Cada indivíduo respira através
da essência de seu coração. Portanto, para cada essência evoluída, há milhões
de essências saniosas.
Por detrás de um parapeito torciam-se os olhos
de uma feiticeira à contemplação do imenso jardim de bugigangas – no Alto ela
encontrou a resposta, mas não pôde tocá-la. Afastai-vos, ó meus filhos, não
procurai apalpar uma resposta frívola!
Jorrava de um escoadouro, aos borbotões, o
sangue de todos os mártires, a formarem uma unidade de ouro florido – provei
desse sangue castigado e não senti o sabor do castigo, tampouco o da dor –
quando muito, somente o da ignorância.
Meus ancestrais possuíam o amor pela Obra –
carpintejavam sem cessar e a mim foi dado segurar firmemente archotes e
broqueis; chegada a hora da batalha, assobiei um canto arcangélico e segui pelo
atalho que levava a um mundo purpúreo.
Imaginei só para mim uma terra plana, por toda
parte coberta de lírios, prenhe de árvores e arbustos radiosos de cor. Os
homens fora expulsos do Paraíso; o Homem nele permanece. Uma terra graciosa e
cheia de lavores seráficos – de um lírio a outro, um interregno à sombra de uma
cerejeira, de uma tarde a uma noite abençoada: filhos meus, o que
sacrificaríamos por isso?
Andas atrás de um amigo? De outro? De outro
ainda? Ó rúbido ingênuo! Quando começarás a procurar-te? Quando andarás atrás
do luminar de teu espírito? Esperas por acaso que teus amigos te abandonem?
Neste caso, parte agora mesmo à tua procura!
Não pude, pelo menos, dar um passo em falso no
alcácere dos defeitos a que chamam Bem. Um trovão sufocado por milênios enfim
foi libertado e a poeira não feriu-me a sensibilidade.
Num momento o azevinho subjugará a cólera. Nosso
azar consiste em teias de insetos lúgubres e nossa identificação com a face do
Amor ocorre em concomitância com o bocejar do ódio.
Sim, ó luzes, ó veleiros, ó camponeses! Dai-me
uma pequena camponesa a título de eternidade! Dai-me vossos calos e vossos
suores! Dai-me o jardim de vosso infortúnio e o mel de vosso sofrimento! Ó
luzes, ó veleiros, ó camponeses!
A nova dança – volta agora, canalha, teus olhos
para as serras em que ela é alimento. Um rumorejar de pântanos gritando em esquecimento;
toda a minha selvageria decorre de conhecimentos abjetos, mas meu amor foi
tocado pela risada do diabo. Tenho mil razões para desferir crueldade onde quer
que se fixem as numerosas matilhas de meu ganido, e a intensidade do troar
mordisca os guerreiros laivos de natureza pátria – mas como eu não haveria de
vos amar, vós crianças e vós criaturinhas carcomidas por tantos reinos
amaldiçoados! Lama, bolor, podridão: a ciência da vida, que se diz irmã de uma
arte e uma filosofia mortuárias.
Perdi inumeráveis canções, mas ganhei novas
danças. O bailado dos ácaros que me induzem a perguntar-vos: - não vamos fazer
repicar todos os outros metais, não seremos os únicos ou os últimos afinal, a
que espécie de raça pertencemos, quando iremos destruir a fim de que se revelem
as flores solitárias da alma? Não vos
conclamarei à perda do universo; imenso é o luto... pobre coração
sanguinolento, talvez possamos ainda sacudir os zéfiros do mundo a nosso favor!
Mau grado teu, ó ateu! Mau grado teu, ó hipócrita! Mau grado teu, ó negro! Mau
grado teu, ó agiota, banqueiro, comerciante, escravo, lacaio, pajem! Vossa
desgraça há de morrer quando sobre ela decair o estrondear da alegria que
sucumbiu à corrupção? Hoje compreendo que jamais enganei-me... belos parecem os
passos arrastados para o suplício, mas não devem ser tais passos arastados para
a evolução, o crescimento.
Poderei enfim acariciar minha idéia de
liberdade, vergastando a pele do pior monstro. Ainda vejo o breu do cárcere,
mas meu sorriso não me parecerá tão execrável se puderem os lacaios compreender
uma libertação e mais uma efêmera nota de coração exausto.
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