A SUÍTE DE SILÊNCIOS DE MARÍLIA ARNAUD
W. J.
Solha
Deixo-lhe a melodia tecida nas cordas da
minha carne, nos acordes da minha memória, na cadência do meu coração, a
melodia-existência, labiríntica como o espírito, misteriosa como o tempo,
definitiva como a morte. Último
parágrafo do romance
Aquela que até agora era conhecida como
brilhante contista, não começa o seu
primeiro romance ( Editora Rocco, Rio, 2012) com ganas de deslumbrar o leitor.
Nada parecido com as quatro notas iniciais da Quinta de Beethoven; com as
marteladas de piano que abrem o concerto
número um, pra piano e orquestra, de Tchaikosky; a clarineta virtuosística
de Rhapsody in Blue, a imponência da Abertura
de O Guarani. Porque a violinista
Duína – a personagem-narradora de Marília Arnaud - não nos quer levar a nada de
grandioso, imponente, grandiloquente, arrebatador. Seu clima é o da Ária na Quarta
Corda Sol, de Bach; do Adagietto da Quinta
de Mahler; a do tristíssimo, lento – e maravilhoso - solo das peças para piano de Éric Satie, como Trois
Gymnopédies e Trois Gnossiennes.
- A vida – ela escreve - é uma suíte de
silêncios, a longinqua música de Deus.
O
cuidado com que Marília Arnaud nos apresenta cada nota de sua Suíte, é a de um solista que fecha os
olhos com força, com doloroso gozo, pra
obter os sustenidos mais difíceis e perfeitos do instrumento. Que instrumento,
no caso?
-
Meu corpo, minha unidade. Meu corpo,
minha vida. Meu corpo, eu.
É curioso o fascínio que o
mundo das mulheres exerce,
principalmente sobre os homens. Quando eu trabalhava no filme Era uma vez eu, Verônica – igualmente
confessional - perguntei ao diretor e roteirista Marcelo Gomes, se ele iria
dizer, depois, como Flaubert sobre sua Bovary, que “Veronique c´est moi”. E
ele, rindo:
- Não, não...
Mas eu vi, passo a passo – no papel
de pai da personagem - o esforço ingente da grande atriz, que é Hermila Guedes, pra chegar à perfeição de dar
corpo à proposta do cineasta. Quem se esquece de Laura, Lara, Scarlett O´Hara,
outras grandes personagens femininas do cinema? E de Aída, Carmem e La
Traviata, na ópera? E das figuras femininas de Shakespeare, como Ofélia,
Cordélia, Rosalinda, Desdêmona, Cleópatra, Julieta, Lady Macbeth? E acabo de
ler os originais do excelente Palavras
que Devoram Lágrimas, do paraibano Roberto Menezes, que será lançado em breve, pelo estado, em
que há um fluxo de memória de uma
personagem louquíssima à la Molly Bloom, via Almodóvar; e leio a sólida resenha
do também nosso Rinaldo de Fernandes
sobre Suíte de Silêncio e meu lembro
de seu premiado Rita no Pomar, e não
há como não lembrar agora da Ana Karenina,
de Tólstoi: da Capitu, de Machado; da Lolita, de Nabokov; de Anna Terra, de Érico Veríssimo; da
Diodorim, do Guimarães Eosa; da Gabriela, Tieta e Dona Flor, de Jorge Amado,
etc, etc, etc..
Mas
é notável como aumenta o
interesse dos leitores quando encontram tais almas em livros diretamente de autoras. Como Clarice Lispector, Françoise Sagan, Jane Austen, Virginia Woolf
e assim por diante, simplesmente porque delas
é que se espera mais... verdade.
Suíte de Silêncios é um romance extremamente
feminino, extremamente bem escrito,
extremamente triste e – sabe o que é dizer isso como elogio? - extremamente lento. Aborrecido? Nunca, never, jamais! E como ela conseguiu? Há uma cena incrível de equitação, no
filme Mazeppa, de Bartabás, no qual ocorre uma demonstração de
absoluto controle de um galope ao fazer a montaria – a cada movimento - quase
não sair do lugar. Assim, Marília Arnaud
– no que tange ao tema de sexualidade de sua narrativa de 190 páginas, por
exemplo - entrega-nos um primeiro toque
íntimo, o de Victor em Duina, apenas na
página 174, e - na seguinte -, a do prof. Ramon. Só na página179 o grande amor da jovem, João Antonio, faz
amor com ela pela primeira vez De novo a
questão: Como ela consegue nos manter presos a seu depoimento? Como os
cavaleiros de Bartabás: entregando-nos – perfeito em si mesmo - cada momento,
cada etapa de sua evolução.
1) Foi quando passei a usar camisetas por baixo
das blusas e vestidos, para disfarçar os seios de pitomba. Justament nessa
época começaram os constantes suores nas mãos, as espinhas purulentas no rosto,
o odor repugnante nas axilas
2) Existiria algo mais bonito do que meu corpo,
livre de qualquer reserva, à espera do seu?
3) A carne! (...) Porque tudo é carne,
cavidades, secreções, odores, e é tanto, e tão intensamente, que chego a pensar
em seu mistério como sendo tão grande ou maior do que o da Santíssima Trindade!
4) Eu o amei como só é possível amar em tempos
de guerra, com a lucidez alucinada de quem sabe que aquela pode ser a última
vez.
5)
Guardar segredos. Sempre fui boa nisso.
Marília
Arnaud faz um instigante jogo de espelhos em sua história. A Duína que narra, padece de uma dor insuportável desde
que foi abandonada por João Antonio. E conta para ele ( na verdade para nós) o
que está sentindo e o que está rememorando também: a angústia terrível – na sua
infância - causada pela fuga da mãe com um amante, deixando o marido – e a
filha - arrasados.
- Mamãe não voltou. (...) uma manhã como nunca
houve outra igual! A primeira sem ela.
O
desespero da rejeição que Duína sente e que também vê no pai a desesperam:
-
Será que não existe nada mais indigno do
que ser abandonado?
Quem
viu Morangos Silvestres, de Bergman (
Suíte – diga-se de passagem – também
me lembra Bergman pela lentidão densa – é óbvio – e pelo forte vínculo Eros e Tánatos: sexo e morte.
). Pois bem: quem viu Morangos
Silvestres, lembra-se do velho
professor que, em meio a uma viagem de carro, para no lugar em que vivera
muitíssimos anos antes, e se vê – a maneira bergmaniana de lhe mostrar a
memória – em várias passagens decisivas de sua vida.
Observe
a acuidade feminina destas observações de Duína sobre sua mãe, num detalhe
dessa imensidão de um passado que não
passa:
- Um homem atravessou-se na minha infância
(...) calçando sapatos brancos.
E
ela anota:
- Parecia agitada, a todo instante arrumando o
vestido do corpo, ou passando as mãos pelos cabelos. E que jeito de falar era aquele, em um tom frágil e cantado, que eu não
conhecia?
É
num momento desse que se conhece o romancista. E, mais precisamente: a romancista. E o efeito na própria
garota é decrito por ela mesma, décadas mais tarde:
-
Nesse dia, tive a repentina compreensão
de que (...) em minha mãe existia algo
indefinível, que transcendia a obviedade.
(..) Essa descoberta foi o meu primeiro abismo.
Claro
que o abandono da mãe a seu pai (e a ela) cala mais fundo quando a situação se
repete com a partida de João Antonio, de volta para a esposa, deixando Duína,
pela segunda vez, insuportavelmente rejeitada. E essa última dor torna a
primeira maior. Borges fala que Browning é kafkiano escrevendo muitos anos
antes de Kafka, mas alerta que atentamos para isso – evidentemente – só depois
que Kafka existiu.
-
Você se fora e eu me dava conta de que,
enquanto vida houvesse, sempre se podia perder um pouco mais.
E
ela realmente perde tudo: a mãe, Victor, João Antonio. A queridíssima vó Quela
não morre, simplesmente: Deixou-me no
meio de uma noite, sem despedida. E o maestro? Ao final da apresentação – ela conta do primeiro concerto de que
participa – busquei, no momento dos
aplausos, em meio aos olhos da plateia, os de meu pai, e o que enxerguei neles me deixou prostrada.
Duína,
entretanto, não tem reações como a da personagem de Liv Ullman quando é
humilhada pelo comentário da mãe – pianista famosa – à sua performance, no Sonata de Outono, de Bergman. Toco razoavelmente bem – analisa - na medida da minha mediocridade, que hoje
encaro com uma quase indiferença.
Mas
a perda de João Antonio – apesar de aceita ( Não o culpo por haver partido) – é definitiva.
-
Fora de mim, além do meu patético mundo
de dor e autopiedade, não existia nada. Nada.
Mas
Duína tem seu resgate num golpe de mestre de Marília Arnaud:
-
Agradava-me aquela sensação ambígua e
inconfessável de entrega à dor.
Masoquismo?
De Duína. Da romancista, orgasmo criador:
-
Me deixe ficar quieta em minha concha,
você bem sabe como aprecio essas zonas sombrias, que me são quase uma carícia.
E
foi na frase seguinte que ela descobriu que tinha um belo romance nas mãos:
Marília
Arnaud prefere selos a um outdoor. Música de câmera à orquestral, sinfônica,
coros, trompas, trombetas. Sussurros em lugar de gritos. E, segura da qualidade
do que produz, mantém-nos, passantes, no seu passo, compasso. Veja como ela
descreve a capela da escola de sua infância:
-
É um mundo vagaroso, apartado do que zune
lá fora, onde o ar é feito de um
silêncio solene, que incha nos ouvidos, como se estivéssemos embaixo d´água.
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