(Jean Delville)
II
Os vastos céus imberbes voltarão pelas palmeiras
aclimatadas em sonhos perdidos. Toda a tragédia de minha vida pontuada, agora,
por um sutil sopro de oboé; não o fato de eu ter sido cômico em minhas
penúrias, mas o torpor característico de alguma forma de infelicidade tornou-me
indiferente aos cantos que descem de balaustradas celestiais.
Uma jovem mão acompanhou-me com bastante
regularidade em minhas jornadas pelos desvãos de uma nação redescoberta. As
pulgas têm sua morada, muito embora se refestelem com sua ninhada viscosa as
cadelas nascidas em casebres lúgubres. Herdei de algum clã indiscreto o
desprezo pelas atividades. Ó milênio entronizado nas chagas do Inocente, ruas
Palpitantes e Atemporais, como me vejo hoje? Sei que ainda terei de persuadir
os amigos de toda e qualquer puerícia a tamborilarem qual chuvinha branda nas
ondulações da fraqueza.
Vejo-me – pois bem! – um asno, a tontura me
enerva e petrifica, enregelam-me a espinha as sinfonias dos gabarolas. Ondulam,
ondulam! Ah, vida plena, teus logros saciarão teus caprichos? Raça de céleres,
imbeles demônios, coalhada ainda jaz a taça dos júbilos mais escaldantes. Os
vagalhões fugidios a rouxinolar através das cambulhas de alaridos impuros...
Só uma criança solitária martelando seus vícios
em meu ventre, só um camponês decrépito construindo uma horta teimosa, só as
inocências mais estúpidas me comovem – desde sempre. – Será chegado o dia de
minha despedida. Como outrora, folhas multicores choverão entre meus impulsos
serenos e minhas inclinações primitivas; hordas de flocos lunares por-se-ão a
interceptar minha galhardia aforçurada, e quieto dormirei. Deixei o local de
minha penúria, encontrei outro. Enverguei garabulhas maiores, ascendi às vis
dimensões que tratam por amenidades as alegorias do desígnio. Lucrarei alto,
gritarei. Harmonias complexas abraçarão minhas mágoas, sei disto – oh, maldito
orfeão, nada estará acabado, será apenas mais uma entre todas as outras antigas
manifestações de glória!
No entanto, a pobreza não pode desejar outra
geração senão esta nova – ela quer se vingar de Deus. Perdi a compaixão, mesmo
pela escória da abnegação. Resta-me uma filha que jamais há de nascer, embora
há muito eu a escute dizendo: “sou tua filha, sou a fonte do êxtase, toma-me
nos braços...” Senhor!
Para a belicosa deserção da alma vi se erigirem
campinas abobadadas, estrebuchei sob as flores silvestres que jamais sonhara,
mas os sortilégios que guiam todas as manápulas incandescentes do sangue
moderno... – não me construíram, tampouco me destruíram; a poeira que esmaece entre
meus dedos diz à musa das perfeições da Antiguidade que calados rumarão para o
mar os torvelinhos de minhas invenções – a luz acima das manobras espirituais,
dobres de sinos torturados, os arrabaldes de qualquer vereda bucólica
afiançando suas orquestras no infinito! Não sou mais Aquele – não o primeiro de
outras longínquas primaveras, pulsa dentro da alvorada ladina a verossimilhança
de minha descrença. E hoje sou o carrasco; tenho a chibata e o breu da ira,
pois logo me condenareis! Ainda que o trabalho
acumulado durante séculos por vastas paragens deicidas admoestasse o bem a ser,
o mesmo apenas continuaria a enganar-se. Com quantos mistérios vos regalais?
Minha inatividade ruinosa, o que me será permitido à hora do supremo gozo?
Vejo as cabeleiras da doença: o morto enfim se
soergue e num gesto de indescritível desdizer abate-se sobre as marolas que
supuravam nas imediações do paraíso que ainda me será dado desprezar. Tenho tantas inclinações à repulsa,
compreendei-me, vós, criaturas que não descem – nem eu posso alcançá-las,
subindo laboriosamente até enfim abraçá-las aos prantos! -, mas se me mandam
aquietar-me, fá-lo-ei. Se me remetem ao cerne da alegria, enquanto apalpo os
milagres emanados das cúpulas brilhantes e inacessíveis, um panteão de serranias
coroadas pelas inscrições oriundas de calvários alheios, far-me-ei atencioso e
loquaz. Minhas abominações, meus preciosos ramalhetes de paixões profanas, o
que não me será proibido desde a consumação do chamariz que à carne obedece?
Logo, sujeitar-me-ei à frieza dos deíficos peregrinos – e que se calem os
profetas!
A subida é lenta. Louco talude, como é íngreme!
Incontáveis graus de declive. Comecei por descer, agora subo aos assobios.
Jamais regressarei a vossos pés, ó tolas imensidões!
- A água escorreu dentro de mim e depurou-se ao
encontrar o céu.
Dói o diabo!
Amei bem pouco, pois me veio o jardim esquecido.
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