domingo, 15 de julho de 2012

SOMBRA E VOLÚPIA DAS PEQUENAS FLORES II - DIEGO TARDIVO


(Jean Delville)


II

Os vastos céus imberbes voltarão pelas palmeiras aclimatadas em sonhos perdidos. Toda a tragédia de minha vida pontuada, agora, por um sutil sopro de oboé; não o fato de eu ter sido cômico em minhas penúrias, mas o torpor característico de alguma forma de infelicidade tornou-me indiferente aos cantos que descem de balaustradas celestiais.
Uma jovem mão acompanhou-me com bastante regularidade em minhas jornadas pelos desvãos de uma nação redescoberta. As pulgas têm sua morada, muito embora se refestelem com sua ninhada viscosa as cadelas nascidas em casebres lúgubres. Herdei de algum clã indiscreto o desprezo pelas atividades. Ó milênio entronizado nas chagas do Inocente, ruas Palpitantes e Atemporais, como me vejo hoje? Sei que ainda terei de persuadir os amigos de toda e qualquer puerícia a tamborilarem qual chuvinha branda nas ondulações da fraqueza.
Vejo-me – pois bem! – um asno, a tontura me enerva e petrifica, enregelam-me a espinha as sinfonias dos gabarolas. Ondulam, ondulam! Ah, vida plena, teus logros saciarão teus caprichos? Raça de céleres, imbeles demônios, coalhada ainda jaz a taça dos júbilos mais escaldantes. Os vagalhões fugidios a rouxinolar através das cambulhas de alaridos impuros...
Só uma criança solitária martelando seus vícios em meu ventre, só um camponês decrépito construindo uma horta teimosa, só as inocências mais estúpidas me comovem – desde sempre. – Será chegado o dia de minha despedida. Como outrora, folhas multicores choverão entre meus impulsos serenos e minhas inclinações primitivas; hordas de flocos lunares por-se-ão a interceptar minha galhardia aforçurada, e quieto dormirei. Deixei o local de minha penúria, encontrei outro. Enverguei garabulhas maiores, ascendi às vis dimensões que tratam por amenidades as alegorias do desígnio. Lucrarei alto, gritarei. Harmonias complexas abraçarão minhas mágoas, sei disto – oh, maldito orfeão, nada estará acabado, será apenas mais uma entre todas as outras antigas manifestações de glória!
No entanto, a pobreza não pode desejar outra geração senão esta nova – ela quer se vingar de Deus. Perdi a compaixão, mesmo pela escória da abnegação. Resta-me uma filha que jamais há de nascer, embora há muito eu a escute dizendo: “sou tua filha, sou a fonte do êxtase, toma-me nos braços...” Senhor!
Para a belicosa deserção da alma vi se erigirem campinas abobadadas, estrebuchei sob as flores silvestres que jamais sonhara, mas os sortilégios que guiam todas as manápulas incandescentes do sangue moderno... – não me construíram, tampouco me destruíram; a poeira que esmaece entre meus dedos diz à musa das perfeições da Antiguidade que calados rumarão para o mar os torvelinhos de minhas invenções – a luz acima das manobras espirituais, dobres de sinos torturados, os arrabaldes de qualquer vereda bucólica afiançando suas orquestras no infinito! Não sou mais Aquele – não o primeiro de outras longínquas primaveras, pulsa dentro da alvorada ladina a verossimilhança de minha descrença. E hoje sou o carrasco; tenho a chibata e o breu da ira, pois logo me condenareis! Ainda que o trabalho acumulado durante séculos por vastas paragens deicidas admoestasse o bem a ser, o mesmo apenas continuaria a enganar-se. Com quantos mistérios vos regalais? Minha inatividade ruinosa, o que me será permitido à hora do supremo gozo?
Vejo as cabeleiras da doença: o morto enfim se soergue e num gesto de indescritível desdizer abate-se sobre as marolas que supuravam nas imediações do paraíso que ainda me será dado desprezar. Tenho tantas inclinações à repulsa, compreendei-me, vós, criaturas que não descem – nem eu posso alcançá-las, subindo laboriosamente até enfim abraçá-las aos prantos! -, mas se me mandam aquietar-me, fá-lo-ei. Se me remetem ao cerne da alegria, enquanto apalpo os milagres emanados das cúpulas brilhantes e inacessíveis, um panteão de serranias coroadas pelas inscrições oriundas de calvários alheios, far-me-ei atencioso e loquaz. Minhas abominações, meus preciosos ramalhetes de paixões profanas, o que não me será proibido desde a consumação do chamariz que à carne obedece? Logo, sujeitar-me-ei à frieza dos deíficos peregrinos – e que se calem os profetas!
A subida é lenta. Louco talude, como é íngreme! Incontáveis graus de declive. Comecei por descer, agora subo aos assobios. Jamais regressarei a vossos pés, ó tolas imensidões!
- A água escorreu dentro de mim e depurou-se ao encontrar o céu.
Dói o diabo!
Amei bem pouco, pois me veio o jardim esquecido.



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