domingo, 15 de julho de 2012

SOMBRA E VOLÚPIA DAS PEQUENAS FLORES VI - DIEGO TARDIVO


(Jean Delville)


VI

Eu vejo centenas de barcos aportando num cais constelado de escuras nódoas de felicidade. Para onde foram as luzes que bruxuleavam em torno daquele tristonho sol de inverno? Por que as esperanças de minha juventude jazem agora despedaçadas em pórticos longínquos onde eu jamais porei os pés?
Por detrás das pétreas nuances de meu desespero ordinário destacam-se os ganidos opulentos de uma gentalha para sempre adormecida. Não terei, ó terra, mais que uma ou duas oportunidades de aferrar-me à imperiosa substância de minha louca alegria? Ó penumbra esfaimada, ó penúria desgrenhada, martelam eternamente para a miséria provisória os ruídos de um coração esquartejado!
Quando pairam os enigmas de todos os destroços em campinas desconhecidas prosternam-se os filhos de Deus.
Quando as sentenças destinadas aos oprimidos são escorraçadas para o inferno de excrementos prosternam-se os filhos de Deus.
Quando reluz nos meandros mais trevosos de uma noite tempestuosa a página prateada do livro da salvação prosternam-se os filhos de Deus. – O demônio da covardia não age senão ao lado do bezerro maldito idolatrado pelos entusiastas do progresso.
E canta o progresso, como canta! Sumarentas notas emanam de sua goela ressequida, que devora a Vida. Sobre o torvelinho de nuvens obscuras marchava o grande exército da fome eterna enquanto na terra os filhos de Deus se apedrejavam.
Ó maravilhosos orgulhos! Ó eternos pressentimentos!
Brisa insalubre, minha verdadeira mãe, minha eterna rainha, ó bela, ó divina dama do sofrimento! Tenho contemplado mais coisas do que os profetas jamais supuseram ter contemplado... –
Eu estive perdido no leito de um expansivo bosque sob a mirada obscena de ninfas atléticas quando o motim dos céus ultrajou com paciência e beleza o motim dos infernos. E eu, que me percebi dos infernos – sorrindo para os anjos, todavia! -, senti-me deveras curioso por conhecer os céus, onde em lugar algum há o menor vestígio de dor. Ah, os anjos se compraziam em suas orgias infantis, e seus oboés segregavam um líquido multicolorido que, conforme me seria revelado mais tarde, representava a auspiciosa ascensão de Deus ao Reino da Orgia Terrena.
Como gozavam! Alguns metros adiante dei com um vasto campo coberto de vegetação seca, onde algumas outras centenas de anjos dos céus festejavam com os anjos dos infernos. Mas sua cópula era algo bastante singular e escabroso; enfiavam as línguas nas vísceras uns dos outros através de orifícios escancarados em seus corpos musculosos e fragilizados pela volúpia pecaminosa. Na ponta de suas línguas puxavam o fel e o sangue das entranhas dos céus e dos infernos enquanto nas extremidades do campo bezerros desmamados abriam abismos sob seus focinhos sanguinolentos. Corri até a beira do abismo e lá embaixo havia um mar agitado cujas ondas batiam violentamente contra falésias que exibiam as figuras taciturnas de nossos antepassados pungidos por dores que lhes abriam no rosto carrancas medonhas. Os querubins dos céus e dos infernos prosseguiam em sua orgia de sangue, um imenso Homem derreou-se sob a luxúria.
Eu vi as trevas sendo consumidas por uma escuridão secundária inundada casualmente por alguns pontos de luz remanescente. Meus olhos fumegavam em face de tal horror. Ainda hoje fumegam. A Eternidade refletiu-se em meus olhos por alguns segundos – enojado, afugentei-a com um gesto brusco e repulsivo. Por ora a aniquilação me era suficiente e eu permaneci às suas premissas até que pude compreender o sentido velado do fim.




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