(Jean Delville)
VI
Eu vejo centenas de barcos aportando num cais
constelado de escuras nódoas de felicidade. Para onde foram as luzes que
bruxuleavam em torno daquele tristonho sol de inverno? Por que as esperanças de
minha juventude jazem agora despedaçadas em pórticos longínquos onde eu jamais
porei os pés?
Por detrás das pétreas nuances de meu desespero
ordinário destacam-se os ganidos opulentos de uma gentalha para sempre
adormecida. Não terei, ó terra, mais que uma ou duas oportunidades de
aferrar-me à imperiosa substância de minha louca alegria? Ó penumbra esfaimada,
ó penúria desgrenhada, martelam eternamente para a miséria provisória os ruídos
de um coração esquartejado!
Quando pairam os enigmas de todos os
destroços em campinas desconhecidas prosternam-se os filhos de Deus.
Quando as sentenças destinadas aos
oprimidos são escorraçadas para o inferno de excrementos prosternam-se os
filhos de Deus.
Quando reluz nos meandros mais
trevosos de uma noite tempestuosa a página prateada do livro da salvação
prosternam-se os filhos de Deus. – O demônio da covardia não age senão ao lado
do bezerro maldito idolatrado pelos entusiastas do progresso.
E canta o progresso, como canta!
Sumarentas notas emanam de sua goela ressequida, que devora a Vida. Sobre o
torvelinho de nuvens obscuras marchava o grande exército da fome eterna
enquanto na terra os filhos de Deus se apedrejavam.
Ó maravilhosos orgulhos! Ó eternos
pressentimentos!
Brisa insalubre, minha verdadeira mãe, minha
eterna rainha, ó bela, ó divina dama do sofrimento! Tenho contemplado mais
coisas do que os profetas jamais supuseram ter contemplado... –
Eu estive perdido no leito de um expansivo
bosque sob a mirada obscena de ninfas atléticas quando o motim dos céus
ultrajou com paciência e beleza o motim dos infernos. E eu, que me percebi dos
infernos – sorrindo para os anjos, todavia! -, senti-me deveras curioso por
conhecer os céus, onde em lugar algum há o menor vestígio de dor. Ah, os anjos
se compraziam em suas orgias infantis, e seus oboés segregavam um líquido
multicolorido que, conforme me seria revelado mais tarde, representava a
auspiciosa ascensão de Deus ao Reino da Orgia Terrena.
Como gozavam! Alguns metros adiante dei com um
vasto campo coberto de vegetação seca, onde algumas outras centenas de anjos
dos céus festejavam com os anjos dos infernos. Mas sua cópula era algo bastante
singular e escabroso; enfiavam as línguas nas vísceras uns dos outros através
de orifícios escancarados em seus corpos musculosos e fragilizados pela volúpia
pecaminosa. Na ponta de suas línguas puxavam o fel e o sangue das entranhas dos
céus e dos infernos enquanto nas extremidades do campo bezerros desmamados
abriam abismos sob seus focinhos sanguinolentos. Corri até a beira do abismo e
lá embaixo havia um mar agitado cujas ondas batiam violentamente contra
falésias que exibiam as figuras taciturnas de nossos antepassados pungidos por
dores que lhes abriam no rosto carrancas medonhas. Os querubins dos céus e dos
infernos prosseguiam em sua orgia de sangue, um imenso Homem derreou-se sob a
luxúria.
Eu vi as trevas sendo consumidas por uma
escuridão secundária inundada casualmente por alguns pontos de luz
remanescente. Meus olhos fumegavam em face de tal horror. Ainda hoje fumegam. A
Eternidade refletiu-se em meus olhos por alguns segundos – enojado, afugentei-a
com um gesto brusco e repulsivo. Por ora a aniquilação me era suficiente e eu
permaneci às suas premissas até que pude compreender o sentido velado do fim.
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