(Professor efetivo da Ufes e Acadêmico correspondente no exterior da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Sua produção
acadêmica encontra-se disponível em www.ricardocosta.com/novosite)
1) A Igreja Católica como
instituição encontra-se nas raízes culturais do Ocidente, visto ter feito do
cristianismo como religião um processo civilizatório de assimilação e
transmissão da cultura Greco-Romana. Assim, durante séculos a cultura tornou-se
a principal dimensão do cristianismo como manifestação teológico-estética, o
que pode ser visto em diversos campos da arte. Com o advento do secularismo
esse processo tornou-se praticamente nulo. Quais as conseqüências desse entrave
secular para o cristianismo e para a Igreja Católica como instituição?
Ricardo da Costa – Cultura e Cristianismo, de fato, formaram, moldaram o Ocidente, como tentei
recentemente mostrar em uma conferência no Rio, ao tratar da relação entre o ideal
monárquico e o Cristianismo (“A Gênese
da Monarquia no Ocidente Cristão, sécs. IV-VI”). O mundo se secularizou a
partir do século XVIII – na Filosofia antes – e o século XIX foi o momento de
ruptura, com a disseminação dos ideais revolucionários franceses. Presenciamos
hoje as consequências mais dramáticas desse processo: atualmente, à medida que
o mundo rapidamente se descristianiza, cresce a violência, não só a mais
extrema, mas tambem nas relações sociais mais corriqueiras. As pessoas hoje
estão incrivelmente agressivas. Não é preciso ser historiador para perceber
isso. Qualquer pessoa minimamente sensata e com mais de cinquenta anos percebe
isso. O mundo era inacreditavelmente mais pacífico antes da década de 60 –
refiro-me aqui à vida cotidiana, naturalmente.
De fato, a década de 60 foi um dos momentos de maior ruptura histórica
que a Humanidade vivenciou. O começo foi o Concílio
Vaticano II (1962-1965), com a prostração teológica da Igreja ao mundo. A
seguir, a explosão do rockn’roll (iniciada em meados dos anos 50). O próprio
John Lennon (1940-1980), em uma entrevista bombástica concedida em 1966,
afirmou que o Cristianismo encolheria até morrer, e que eles (os Beatles) já
eram então mais populares que Jesus Cristo. Se estivesse vivo, considerar-se-ia
profético...
A Revolução cultural na China
(1966) promovida por Mao-Tsé-Tung (1893-1976), com sua destruição do passado
(inclusive das obras de arte do período Ming), Maio de 68 em Paris, Woodstock (1969), a explosão das drogas (a
partir do verão psicodélico-californiano de 1966). Tudo foi rompido,
subvertido, alterado. O mundo nunca mais foi o mesmo.
A eliminação dos Quatro velhos na Revolução Cultural da China: velhos costumes, velha cultura, velhos
hábitos, velhas idéias.[1]
Quanto à Igreja Católica, como me pergunta,
ela própria está implodindo internamente – desde 1962 (afinal, destruir séculos
de tradição não desaparecem da noite para o dia). Se podemos julgar a árvore
por seus frutos, as decisões do concílio foram um desastre para a fé.
Meu irmão Sidney Silveira, especialista em
questões da fé, há algum tempo enumerou algumas das muitas transformações
ocorridas no seio da Igreja.[1]
Colocarei apenas vinte e um itens.
A Igreja 1) assimilou filosofias modernas
contrárias à fé, inclusive ensinando-as nos seminários; 2) praticamente aboliu
os anátemas, reservando apenas para os poucos que quiseram manter-se fiéis à
Tradição; 3) apoiou o ecumenismo (milenarmente condenado); 4) apoiou heresias
no seio de sua hierarquia; 5) proclamou-se “subsistente” em igrejas e seitas
pseudo-cristãs, não se considerando mais a
Igreja de Cristo; 6) fez com que o dogma extra Ecclesiam nulla salus virasse pó; 7) tornou-se laica em
política, aceitando a tese da separação entre as ordens material e espiritual
(entre o Estado e a Igreja); 8) alterou a doutrina da liturgia e transformou a
Missa em uma festiva celebração; 9) estimulou o pluralismo teológico com a
criação da Comissão Teológica
Internacional (CTI), cujos documentos são dúbios em favor de teses
modernistas; 10) aboliu formalmente o Index.
Mais: 11) permitiu que teólogos passassem a
questionar as verdades da fé e do Magistério (para uns o Limbo não existe; para
outros o Inferno está vazio, etc.); 12) aboliu estágios fundamentais na
ordenação sacerdotal; 13) permitiu que jovens claramente sem vocação adentrassem
nos seminários; 14) beatificou teólogos formalmente proscritos, como, por
exemplo, o italiano Antonio Rosmini (1797-1855), ontologista incluído no Index e
condenado por três Papas; 15) alterou o Código
de Direito Canônico; 16) aprovou um Catecismo
semelhante a um tratado de psicologia fenomenológica a ser entendido por meia
dúzia de teólogos e filósofos, e não um documento simples, dirigido a todos os
fiéis, mesmo os mais simples e indoutos, como era o Catecismo de São Pio X; 17) aboliu as mais importantes etapas dos
processos de canonização, tornando a santidade algo ordinário – o papa João
Paulo II (1920-2005), sozinho, canonizou mais santos do que 500 anos de Papas
juntos! De dom extraordinário da graça, a santidade tornou-se ordinária; 18)
baniu por décadas a Missa Tridentina,
usando de medidas disciplinares rigorosas para com os tradicionalistas, e
estimulou os mais absurdos experimentalismos litúrgicos, formalmente, através
dos bispos, ou por pura e simples omissão dos níveis da hierarquia; 19)
permitiu a comunhão na mão sob o pretexto de repetir o cristianismo primitivo
(com isto perdeu-se a noção de que as sagradas espécies só podem ser tocadas
por mãos ordenadas); 20) aprovou (ou tolerou) movimentos como a Teologia da Libertação (nas décadas
de 60 e 70) e a Canção Nova,
recentemente; abriu o flanco para teses teológicas contrárias à fé (como a
evolução dos dogmas e o poligenismo, ou seja, a idéia de que não houve Adão e
Eva, mas protoparentes, o que acaba com a doutrina do Pecado Original); 21)
estimulou o fim do uso da batina; os padres passaram a se vestir mundanamente.
Em resumo: com isso, a Igreja está implodindo por dentro. Nunca houve um
recuo tão grande do número de fiéis.
De qualquer modo, os intelectuais europeus
contrários ao papel da Igreja no processo histórico do Ocidente, como um
Jacques Le Goff (1927- ), por exemplo, famoso marxista da Escola dos Annales (1929-1994), em suas últimas entrevistas, já
recuou. Com o avanço do Islã na Europa – há em curso uma verdadeira islamização do Velho continente – o
historiador francês já deixou claro que a Europa deve olhar para seu passado de
modo mais benigno.
2) A partir do humanismo
renascentista, e, sobretudo com o Iluminismo francês, criou-se uma
historiografia ideológica com conseqüências extremamente negativas para a
religião cristã e a Igreja Católica quanto ao seu papel cultural na Idade
Média. Daí o epíteto “Idade das Trevas” como referência histórica para esse
período. Como você vê essa questão?
Ricardo da Costa – Impossível de ser resolvida. Além de já ter sido
construída uma vasta bibliografia tremendamente parcial, há várias “frentes de
ataque”. Em primeiro lugar, os próprios medievalistas: há muitos que sequer
lidam com fontes primárias. No Brasil especialmente. São reprodutores de
afirmações de terceiros. Sequer se dão ao trabalho de conferir as informações
criticamente.
Deixe-me explicar melhor o que
entendo por “conferir as informações criticamente”. Sabemos que os textos primários,
em sua maior parte, são cópias, escritas em diferentes períodos. Normalmente,
os historiadores mais ciosos de seu ofício costumam consultar edições princeps, ou seja, textos elaborados por
filólogos que tiveram o trabalho de confrontar os diferentes manuscritos da
obra, para chegar ao provável texto original. Pois bem. MUITOS historiadores
não lêem fontes primárias. Outros, quando lêem, consultam edições terríveis,
sem o devido preparo erudito. Como eu lido diretamente com fontes primárias em
meu ofício, em minha área de estudo – desde os textos de Ramon Llull
(1232-1316) até hoje, com os clássicos da Coroa de Aragão (sécs. XIV-XVI)[2] –
conheço todo o processo de produção de uma edição crítica. Assim, por não
conhecerem o processo – sequer se interessam por ele – os historiadores que
lêem essas edições mal feitas não fazem uma boa leitura (interpretação). Aceitam
acriticamente a informação, não confrontam com outras fontes, e não se dão ao
trabalho de conferir as expressões utilizadas pelo tradutor (nem comparam
diferentes traduções).
Há muitos níveis em todo o
processo até o resultado final – quando o historiador lê a fonte. O mais comum
é o historiador ler uma obra contemporânea e acatar as conclusões e
interpretações do historiador. Isso ocorre porque normalmente durante o curso
de graduação além de não haver o hábito de se estudar com fontes, os próprios
professores que lecionam determinam qual a interpretação é a “melhor”, um pouco
ditatorialmente, sem aceitar questionamentos nem debates. Pior: há muitos
estudantes que se formam hoje sem terem lido um livro inteiro. Isso sem contar
o modismo acadêmico atual que “não existe verdade” e “todas as interpretações são
igualmente válidas”, uma porcaria que está estragando gerações de alunos.
Em nosso caso específico, a Idade
Média, a situação piora ainda mais porque, para ler uma fonte medieval é
necessário um preparo erudito, um costume de leitura que é diferente de uma
fonte do século XIX, ou XX. A atual geração de estudantes de História tem um
interesse muito restrito: o mundo do passado antes da Revolução Francesa não
desperta interesse. Pior: a preferência é pelos estudos a partir do final do
século XIX.
Por fim, o preconceito em relação
a TUDO o que diz respeito à Igreja Católica – inclusive por parte de muitos
medievalistas, que só estudam a Idade Média na perspectiva das relações de
poder – poder material, diga-se de passagem. Um ponto de vista completamente
anacrônico para se tratar do Antigo
Regime, da sociedade de ordens. O que vejo de bobagens por aí...
Portanto, não creio que a
situação melhore, pelo contrário.
3) Ao longo dos séculos o
cristianismo católico marcou profundamente as artes, o que pode ser visto nos
afrescos de Giotto, Fra. Angélico, na Capela Sistina, na Divina Comédia de Dante, Ticiano, Veronese, Caravaggio, Tintoretto
e em inúmeros outros artistas que poderiam ser citados. Hoje vivemos um período
artístico marcado pela extrema presença da subjetividade como paradigma, o que
não raro tem como conseqüência uma espécie de estética do “feio”. Estaríamos
vivendo uma crise do “Belo” decorrente do niilismo subjetivista, ou seja, o
abandono do conceito de Transcendência como paradigma da criação artística?
Ricardo da Costa – Há muito tempo! Vou contar uma história, para
exemplificar. Nesse semestre eu estou lecionando uma disciplina no curso de
Artes da Ufes, a convite daquele Departamento. “História da Arte I”, a arte no
mundo clássico e na Idade Média. O gosto médio dos alunos é terrível! Oscila no
mundo que Umberto Eco (1932- ) descreveu em sua História da Feiúra. O grotesco, o disforme, o medonho. Tudo
consideram lindo. Uma menina, linda e agradabilíssima, um dia entrou com uma
camisa com uma foto do Nosferatu,
vampiro do fantástico filme expressionista alemão do mesmo nome (1922).
[1]
Sidney Silveira, “Uma indagação do Papa Bento XVI”. Internet, http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2010/09/uma-fala-do-papa-bento-xvi.html
Nosferatu (1922)[1]
A menina obviamente não assistiu
o filme, mas disse que a figura do Nosferatu era maravilhosa... Diante desse
quadro, como eu poderia explicar a beleza da transcendência dos ideais gregos?
A harmonia, a adequação das partes, a proporção? Não consegui. De modo algum. TODOS,
literalmente TODOS os exemplos que eles tinham em mente eram horrorosos. E a
beleza da luz das catedrais medievais? O conceito de Belo? O Belo como Bem platônico? Ininteligível. Eles não
compreendiam sequer o conceito de fruição.
Considerar o feio belo é um traço característico da decadência de nossa época. O
problema maior é que a negação do Belo
também ocorre dentro da Igreja. Por exemplo, a Sala Paulo VI no Vaticano tem obras verdadeiramente fantasmagóricas
– os católicos da velha cepa diriam demoníacas.
Escultura demoníaca na Sala Paulo VI, Vaticano. A
informação oficial do Vaticano é que a escultura representa Cristo (!!!) se
elevando a partir de uma cratera rasgada por uma bomba nuclear; uma explosão
atroz, um vórtice da violência e da energia.
Concerto de música clássica na sala Paulo VI.
4) Comente sobre as grandes
marcas da cultura medieval como as iluminuras, os mosaicos bizantinos, os
vitrais e a arquitetura gótica, o canto gregoriano e o canto polifônico.
Ricardo da Costa – Contemplar in
loco a arte medieval é uma experiência maravilhosa e inesquecível. Vi uma
catedral gótica pela primeira vez em Freiburg, em 1999, a única igreja
concluída ainda na Idade Média.
Nunca vou esquecer esse fato em
minha vida. Quando lá estive, havia um imenso painel, um poema de um escritor
da cidade, que comemorava a solidez da Igreja: durante a II Guerra, a cidade
foi bombardeada pelos aliados (um bombardeio noturno que devastou tudo – exceto
a catedral!). Os vitrais não se quebraram...A profusão das cores, o espaço, o
silêncio, os ecos. A onipotência. O vislumbre da eternidade.
Catedral de Freiburg (séc. XIII).
Mais tarde, em 2010, tive o
privilégio de fazer uma tournée de
catedrais: Canterbury, Amiens, Beauvais, Notre-Dame de Paris. Em Amiens, eu
tive a oportunidade de presenciar um espetáculo, uma verdadeira viagem no
tempo.
Todas as noites, a prefeitura de Amiens
oferece gratuitamente um show computadorizado que é uma reconstituíção da
pintura original de sua catedral. Como se sabe, todas as esculturas medievais,
e também as greco-romanas, eram coloridas.
Em Beauvais, cinco canhões de
luz, controlados por um sistema computadorizado, oferecem aos espectadores a
iluminação da frente da catedral, com todas as cores originais. Música, um
texto etéreo, explicam ao espectador os detalhes da profusão de cores que os
medievais presenciavam todos os dias.
O belo no cotidiano, o
direcionamento da beleza para a transcendência. Foi uma noite de sonhos.
Catedral de Amiens. Portões principais colorizados por
computador.
5) Países como a França e a
Espanha tiveram uma grande tradição Católica presente no âmbito da cultura.
Podemos citar como exemplo na Espanha, o Barroco, com seus grandes
representantes Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Góngora, Quevedo, Lope
de Veja, Tirso de Molina, e como exemplo na França, o Gótico, com o esplendor
de suas catedrais, além de um forte movimento intelectual no pós-guerra com os
filósofos Etienne Gilson e Jacques Maritain, os poetas Paul Claudel, Charles
Péguy, Léon Bloy, os romancistas François Mauriac, Georges Bernanos e Julien
Green. Hoje também esses países são assolados pelo secularismo. Como você vê a
grande tradição católica desses países em relação à crise do cristianismo?
Ricardo da Costa – A França sofreu o processo laicização a partir
da Revolução Francesa (1789-1799), como sabemos. A Espanha teve a sua
laicização retardada pela ditadura franquista (1939-1976), pois, durante a Guerra Civil (1936-1939), a Igreja
Católica foi perseguida pela esquerda, centenas de padres foram fuzilados e milhares
de igrejas foram queimadas, especialmente na Catalunha. O Estado se laicizou
somente após a morte de Franco (1975), mas o processo foi tão rápido como se
não tivesse havido décadas de franquismo.
Salesianos assassinados em Valência durante a Guerra
Civil.
Hoje, a Espanha despreza seu
passado católico, como aliás a maior parte dos países europeus. Para que
tenhamos uma ideia, um dos lançamentos mais importantes dos últimos anos, España, una nueva historia (2009), do
renomado historiador José Herique Ruiz-Domènec (1948- ), afirma que teria sido
melhor para a Espanha que a Reconquista
(722-1492) tivesse acontecido do Sul para o Norte, não do Norte para o Sul,
isto é, teria sido melhor que a Espanha tivesse se tornado muçulmana! Isso dito
sem meias palavras.[1]
Trata-se de um notável exemplo de
como a Europa lida mal com sua tradição católica, e de quão forte tem sido a
expansão islâmica atual. A curto prazo, a tendência é o encolhimento cada vez
maior da Igreja Católica e o fortalecimento do Islamismo. Eu já tive a
oportunidade de comentar os aspectos filosóficos dessa negação do passado em uma
palestra (transformada em artigo) intitulada As raízes clássicas da
transcendência medieval.[2]
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