terça-feira, 26 de junho de 2012

FLORISVALDO MATTOS: POEMA


(William Turner)


O SÓLIDO EM ÁGUA SE DESFAZ

Cores demais severas hoje me atam
a este crepúsculo infindo. Guarnecem-no
os fatais sortilégios, pesadelos.
Tudo aqui arde, é tudo áspero sonho.

Árdua e cálida noite se aproxima.
Saudarei nesse instante os que chegaram,
brandindo evangelhos e sentenças;
também os que sumiram neste chão.

Nuvens não faltarão de longa espreita.
Retalhos de memória estilhaçaram
o que em mim foi profético e que, flor,
se fez escória, pó tangido pelo vento.

Porque só existe de valor no mundo
o que em cristais de ausência se dissolve.
Lembrarei esta máxima provada
em meu vagar de porto para porto.

Enquanto agita um voo de gaivota
o céu claro, o Atlântico me doa
um cardume de luto imensurável,
que jamais sumirá no sal dos mares.

Mar que me segue para sempre, rastro
de quereres febris, deixa que sonhe
a alma intrépida, em senda de soluços,
rota de fel em perdidos paraísos.

Deixa a alma perder-se; deixa que a inunda
o reflexo perene das estrelas;
deixa-a sumir em ti, haste de espuma,
imersa em alquimia de pretéritos.

Deixa que, água, ela em água se desfaça.
Líquido mito, o brilho transpareça
estranho olho que aguarda em labirintos
ansiado tropel de outros minotauros.


Do livro Poesia reunida e inéditos. Ed. Escrituras.





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