quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: LÚCIO CARDOSO - CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA II

(Bosch)



Sem pressa, com a mesma timidez de quem desobedece ditames de uma lei oculta, inclinei-me e levantei a ponta do lençol. Foi a primeira vez que vi o rosto de um cadáver, e aquilo deu-me uma sensação estranha como se uma música longínqua, em acordes muito finos, vibrasse em meu espírito. Ah, seria impossível expressão humana modificar-se com maior rapidez: nela, de linhas tão suaves e perfeitas, tudo havia sido vincado com violência, desde os cílios alongados, um tanto excessivamente, até a testa branca, larga demais, e a curva acentuada das asas do nariz, positivando um aspecto inesperado de semita. E em torno desse rosto, a rigidez estabelecera uma aura intransponível. Bem se via que a morte não era uma brincadeira, que o ser estabelecido originalmente, e toscamente modelado em barro pelas mãos de Deus, ali irrompia de todos os disfarces, para se instalar onipotente em sua essência mais verídica. Bem se via também que tudo se achava definitivamente dito entre nós. Inúteis as palavras que haviam sobrado, os afagos que não haviam sido feitos, as flores com que ainda pudéssemos adorná-la. Libertada, repousava em sua pureza final. Ah, e inútil também tudo o que não fosse fúria e submissão. Sem resposta, como se nós, criaturas, nada mais merecêssemos senão o luto e a injustiça, tudo terminava ali. E o que existira não passara de um sonho, de uma magnífica e passageira ilusão dos meus sentidos. Nada conseguiria mais romper o duro peso que se acumulava sobre meu coração, e diante daquela ruína, já tocada pela corrupção, eu custava a reconhecer aquela que fora o objeto do meu amor, e nenhuma lágrima, nem mesmo de piedade, subia-me aos olhos.
___________________

Morremos quase sempre da crueldade ignorada dos seres que nos cercam.
___________________

Quem somos nós que assim passamos como espuma, e nada deixamos do que construímos, senão um punhado de cinza e de sombra? Debato-me, o coração me vem aos lábios: que é valido, que é invulnerável à fúria do tempo, qual o sentimento que não se esgota e não se ultraja?

Crônica da casa assassinada. Ed. Civilização Brasileira

Nenhum comentário:

Postar um comentário