terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

CLAUDIO DANIEL: POEMA LETRA NEGRA

(Paul Klee)

“Sou apenas fragmento, enigma e pavoroso acaso”.
Fernando Pessoa

I

escuto escuro – sombras surdas –
no espaço espesso
lodo torvo
de um tempo esquivo
em que começo e recomeço
o pugilato
comigo mesmo
luta ou luto
que me cega e segue
como treva ou trava
ao vento curvo.

II

verde é o segredo
verde é o silêncio

escrito em cicatriz
escrito em anti-flor-de-lis

– para a necessária
abolição de mim –

III

estou morto e não-morto
vértebras ao inverso
letras tontas
de um nome incerto
vocábulo equívoco
desfeito em água
– para a necessária
abolição de mim –
escuto espesso – sombras mudas –
no escuro escuro.

IV

nada me aquieta
entre espectros
de palavras-coisas:

anêmonas trafegam
pensamentos rotos,
roídos até o muco

– eis a era desolada
de cortes e recortes
tempo-cutelo
no espaço lacerado
pele-de-lua violada
por línguas-gárgulas

lua-esfinge-macerada
por caninos cérberos:
tempo nigromante

– corvo corvo corvo
recrocitando escárnios.

V

“quando nada mais faz sentido” –
busco o mistério animal,
a ferocidade da noite:
deslizando por meus lábios,
ela se transforma, revoluta,
desentranhada, não me decifra,
não te devoro, abisma fábulas
na desordem dos cabelos;
entre pupilas, expandindo luas,
tensionando a pele, na cegueira dos mamilos.

VI

floresta de enganos, se me esmagam,
furiosos, com simulações,
é tua face que me escapa à pele;
se atravesso veredas infernais,
desalentado, paisagem de fraturas,
é apenas para encontrar-te,
tua imagem reversa é o meu labirinto.

VII

espaço vegetal, tempo lagarto:
mãos fluidas; voz movediça;
olhos de musgo, na pedra;
quem sou eu, nessa era líquida,
menos homem que número,
letra negra, fragmento do caos,
movendo-me à roda de teu nome?

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