quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

GUSTAVO CORÇÃO: LIÇÕES DE ABISMO II

(Ismael Nery)


O mundo é um anárquico depósito, uma loja monumental onde a gente compra estrelas e flores para a festa silenciosa e recatada no recesso da alma. Não é assim que fazem os escultores, quando arrancam o barro do chão e o trazem para o encontro do amor? Não é assim, por exclusão, por ablação, que o poeta destaca o que quer do anônimo e bulhento reservatório comum? O importante, na poesia e na vida, é a escolha; e por conseguinte a recusa. A poesia é uma greve, um protesto, como o que fazem os límpidos cristais, com suas intolerantes arestas, no seio opressivo da montanha. Ninguém rejeita tanto como o poeta, e como o apaixonado.
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Curioso é esse contraste: a morte é o que há de mais certo, a ponto de servir no modelo clássico de silogismo; e é por outro lado a ideia que mais nos custa admitir, e tanto mais custa quanto mais perto nos toca. É uma certeza que anda ao contrário das outras.

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Há pessoas que falam quase sempre de um modo caloroso, com indignação fácil e cólera pronta. A qualquer injustiça cerram os punhos e desatam a generosa paixão dos sanguíneos. Gosto de vê-los; mas em geral fico alheio ao tom maior de suas indignações. A mim o que mais fere, o que mais dói sãos os equívocos que vejo no mundo. Essa é minha triste dominante: uma exasperação do senso do ridículo. E só quem já viveu essa experiência é capaz de avaliar a dor aguda, penetrante, glacial, que permanentemente me faz companhia. Falam de um inferno de fogo; eu penso, às vezes, num inferno de gelo.

Lições de Abismo. Ed. Agir

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