quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

GUSTAVO CORÇÃO: LIÇÕES DE ABISMO III

(Edward Hopper)
A conclusão que tiro é que a vida e a morte são heterogêneas, e que a vida não se pode tornar como um objeto de arte, música ou poema, como insinua o filósofo que diz que o homem é uma existência para a morte. Se a nossa vida fosse um poema, a morte seria o termo. Se fosse dança, o último passo do exausto dançarino mereceria o aplauso das galerias angélicas. Se alguma coisa tende impetuosamente para um termo é a arte. O poeta não é somente aquele que morreria se não escrevesse, como ensina Rilke; é antes aquele que deseja acabar, que deseja morrer com seu poema, dar tudo, dar-se todo, afundar com seu navio fantasma. Digo do poeta o que Rilke dizia do homem em geral: c’est quelq’un qui s’en va, alguém que se despede, que se despede em cada todo que realiza, inteiro e completo como um ovo mágico. Na poesia, sim, a idéia de termo e de morte se casam. Cada poesia é uma boa morte. Um testamento novo. Uma vitoriosa agonia.
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Tentemos outras direções. A vida não é um poema; não tem a inteireza de um bailado; não se completa como a música. Mas será, quem sabe? uma coleção descontínua de momentos, com intervalos mais ou menos prolongados e mais ou menos insípidos. O conjunto será confuso, como as obras completas de um autor que tenha andado por caminhos diversos; mas os pedaços, os volumes, serão compreensíveis e razoáveis. Vem a morte e deixa um resto, como em gaveta de laborioso escritor que não teve tempo de rasgar seus abortos. Mas o que ficou, ficou.

Lições de abismo. Ed. Agir

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