sábado, 21 de abril de 2012

AFFONSO ROMANO SANT'ANNA: POEMA


(William Blake)


PAREM DE JOGAR CADÁVERES NA MINHA PORTA


Parem de jogar cadáveres na minha porta.

Tenho que sair
                         – respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeliges.

Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos por onde passo.

Estou em Essaouira, na costa do Marrocos,
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.

Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.

Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi
frente ao Bósforo
quando tentaram me esfaquear na esquina.

Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.

Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mãos de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.

Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
                           – na Cidade Proibida da China.

Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.

Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
                         na minha cama
dificultando
                   que alcance o corpo da mulher que amo.

Afastem de mim
                          o meu
                                      o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
       como um Sísifo moderno
                                             desesperado
julgar
          – que o tinha que carregar.
  

Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.




Um comentário:

  1. Acho impressionante a convergência dos escritos de Affonso Romano com os meus.
    Obviamente, guardando as devidas proporções ...
    Na verdade, como disse José Augusto Carvalho, isso é de se esperar, pois os temas dos "pensantes" são, habitualmente, os mesmos ...
    Não tenho esse livro.
    Parabéns.

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