segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

ALEXANDRE GUARNIERI: POEMAS

(Franz Kline)



(cativo)

como servo, serve; como vive,

sorve; mero serviçal sem

absolvição, e sempre insone

à sombra do dono, que há de

alimentá-lo, qual um cão

desossado ou, qualquer, um

detalhe desagradável, ei-lo

anônimo esse móbile de nervos,

de ossos, que o é por si ou o

que talvez pudesse ser, se não

fosse só, a sós, esse ossário

frágil, mais outro escravo,

sem limo, sem sumo, sem caldo,

só o triste bagaço ressecado,

um astro escasso, mas tão magro

e gasto, quanto inadaptado

ao trabalho, diário e árduo,

à rotina mortal do horário.



(repartição)

os rituais estoicos do escritório, entre móveis

sólidos, ásperos e numerosos módulos, e os

funcionários, do rh ou contas a pagar, "boa

tarde", "volte sempre", as tantas cobranças que

o patrão reclama, avulsas, ouvindo a secretária

soluçar, aplicada às duplicatas, enquanto

convulsionam os números (necessário é discá-los

todos), o monstro é um patrão eletrônico, ao

invés de mãos, há troncos telefônicos; inaptos,

se matando aos poucos estes homens que

trabalham: um por um, inúteis,

caminham na calma

ao recinto sanitário, tomam pílulas diante dos

próprios rostos, projetados no mictório, findam

em suicídios tão limpos quanto burocráticos; as

máquinas permanecem a sós, sem ócio nem laços,

sem tempo, apenas relógios, sem sonho ou

delírio, apenas atrapalham, repetindo os mesmos

sinos; apenas trabalham, trabalham: com ódio.



(rendição)

nossos hábitos formulaicos,

acordar, dormir – o horário de

ir para o trabalho – de abrir o

armário; vestir-se – a vida

vista de frente, preâmbulo, sem

ângulos, sem ânimo, apenas o

sarcasmo diário, sem alarde, sem

contraste – café com açúcar; as

ruas assustam – a retina rendida

à rotina, só o cinismo insistindo ainda

o dia-a-dia – o

sono no ônibus lotado – só em

certa parcela da vida há vida —

terrível dízimo – uma ilha

vitimada nessa ciranda servil.

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