terça-feira, 22 de março de 2011

ENTREVISTA COM O POETA SILVÉRIO DUQUE


1) – Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?

Eu comecei, muito cedo, a ler poesia; escrever, no entanto, foi algo que veio depois, bem depois e eu, sinceramente, não conseguiria dizer, com certeza, quando ou como foi verdadeiramente. Sei que apareceu, sei que Fernando Pessoa, Drummmond, Camões, Shakespeare, Dante, e, logo depois, Eurico Alves Boaventura, Manuel Bandeira, João Cabral, Rilke, Tolentino, começaram a fazer parte de minha vida... mas, hoje, prefiro acreditar, o me limitar a responder, na seguinte idéia: Poeta nascitur, orator fit, como diria Sêneca.


2) – Como é seu procedimento ao escrever um poema?

A idéia me vem. Aí, eu a capturo, “deixo rolar”, como dizem os mais jovens. Depois, ponho “no complicador”, como diria o João Cabral. Tenho poemas feitos de uma só vez, cujos retoques foram mínimos e outros que levaram horas, dias, meses e até anos. Em meu próximo livro, Ciranda de Sombras, a sair pela É Realizações, há um poema que construir ao longo de oito anos...

Retoco aqui, refaço ali, reproduzo e experimento várias combinações sonoras. Sou músico, componho um poema como quem combina notas, melodias, harmonias, timbres... Este é o caminho de quem quer algo bem feito, é o caminho percorrido pelos grandes, é o caminho que quero e devo seguir. Quem faz o contrário é um idiota preso em sua própria vaidade de inepto.

3) – O que é poesia para Silvério Duque?

É uma afirmação diante da vida e de suas limitações. A poesia é uma das poucas coisas que eu sei valer, verdadeiramente, alguma coisa. Com ela, a vida é maior e já a não sei olhar (ou para mim mesmo) sem olhar para ela, pois nos tornarmos uma coisa só, o mesmo propósito, a mesma vontade de completude. Ela me dá a certeza de que é possível criar, realizar... E realizar é afirmar a vida, vencer a morte; como eu mesmo escrevi, para um amigo poeta que morria de câncer:

É preciso criar para sentir;
nada somos se nada construímos,
pois se nada inventamos, nada existe...
Somos a nossa ação por sobre o tempo.

No dia em que tecemos tudo vive,
realizar é escapar da morte... mas,
não durarei apenas entre os outros,
pois dou aos versos usos e clarezas.

De tanta falta e busca me revejo,
de tanto amor e anseio, me reinvento,
nessas rotas e fugas me refaço.

Necessário é criar e a vida é pouca,
no dia em que eu me faço estou e existo.
Neste poema há todos os meus passos.

4) – Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea?

Eis, aí, uma pergunta difícil...

A poesia, em nosso País, sempre foi algo muito forte, ligada demasiadamente à construção de nossa nação, à nossa idéia de brasileiros, à identidade brasileira. O problema é que, de uns tempos para cá, alguns critérios muito básicos vêm mudando radical e erroneamente. Exceto por uma duas dúzias de esmerados perdidos por nosso vasto território, a cultura, que, no Brasil, um dia, se chamou de erudita, é quase uma alucinação.

Um dos grandes problemas de nossa atual sociedade foi desaprender o sentido, tanto teórico quanto prático, da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”. De pessoas que acham, por exemplo, que a Ivete Sangalo é a maior cantora do Brasil porque cantou no Madison Square Garden ou que o Romero Britto, que, claro, possui lá o seu valor, é um grande pintor porque vendeu quadros para a Madona e o Arnold Swarchenegger...“me poupe”! E a poesia, principalmente a contemporânea, acabou sofrendo muito com isso, também. Assim, se tu me perguntas sobre a nossa poesia e se ela vai bem, é claro que vai, sempre foi maravilhosa. A questão é que a poesia, mesmo se apresentando como uma forma de arte menos comercial e, muitas vezes, “sisuda”, não se livrou deste problema que no Brasil é grave, crônico e contagioso, por isso é preciso, infelizmente, dividir a poesia em dois extremos bem distintos: de um lado, aquela que ocupa a maioria das revistas, jornais e programas ditos especializados que, em sua maioria serve apenas para maquiar a total ignorância e a falta de apreciação mais acurada, aliada às trocas de favores, ao cooperativismo porco, à industria da promoção, dos diplomas, das orelhinhas de livros; do outro, aquela poesia distante da grande maioria destes veículos, feitas por pessoas que sabem que a poesia é a mais perfeita das redações, que ela não se nivela por baixo e que deveria constar nos livros de literatura e em todo material didático que chega às mãos de nossos alunos, porém, o que acontece é que aquilo que há de pior, ou, no melhor dos casos, de mais simples, óbvio e, digamos, de fácil digestão, à maneira da axé music e do hip hop, é o que se acaba estudando e aprendendo como a única poesia existente no Brasil, e isso é uma inverdade cruel e sínica, mas, ouça o que te digo, a história, no fim, excluirá os covardes, os apedeutas, os sem talento, os sem critério, os sem noção...

Mas, ainda contamos com grandes nomes, como Bruno Tolentino, Alberto da Cunha Melo, Orides Fontela, Hilda Hilzt, Ildásio Tavares, por exemplo, que, mesmo mortos, ainda que a pouquíssimo tempo, são nossos contemporâneos, incluindo mestres da velha guarda como Ferreira Gullar, Ariano Sussuna, Reynaldo Valinho Alvarez, Adélia Prado, Mirian Fraga, Antônio Brasileiro e Conceição Paranhos que ainda estão vivos e nos ensinando cada vez mais. Estes são nossos contemporâneos, claro.

Agora, se tu me perguntas, mais especificamente, de nomes e poetas mais novos, em todos os sentidos, eu muito me contento em ler os trabalhos de Rodrigo Petrônio, autor de Venho de um país selvagem, que, inclusive, ganhou prêmio, aqui, na Bahia; Érico Nogueira, Marco Catalão, Jorge Elias Neto, ou de baianos – por que acontece que eu também sou baiano –, que são responsáveis por manter uma tradição de qualidade e beleza que provem desde Gregório de Matos, passando por Castro Alves e outros mais, como Bernardo Linhares, que nos apresenta uma poesia madura e admirável, onde forma fixa, aliada à livre cadência de ritmos, compõe uma das obras mais singulares de nossos últimos tempos por se tratar, principalmente, de um livro contemplativo, que nos apresenta uma postura positiva da vida e de toda a beleza que ela nos oferta dia após dia, e, em um caso que vai um pouco além do ofício de poeta; Gustavo Felicíssimo, que é o paulista mais baiano que conheço e um dos poetas mais disciplinados e talentosos de minha geração, por assim dizer, responsável por reunir e divulgar, em seu livro Diálogos (Ilhéus/Itabuna: Via Litterarum/Editus, 2009.), uma dos maiores grupos de poetas que o Brasil já possuiu, todos baianos, da região Grapiúna, onde, sem dúvida nenhuma, se produz, atualmente, a melhor poesia da Bahia e uma das melhores do País.

Quem se aventurar nas páginas de Diálogos, encontrará a síntese perfeita entre imagem e palavra na econômica, porém dialética, poesia de Edson Cruz; o verso sincero e livre de Heitor Brasileiro Filho; a delicada angústia de Noélia Estrela; os formais e coloquiais sonetos de Piligra; a enigmática literatura de George Pellegrini; o erotismo pujante e lírico de Rita Santana; o verso livre e apaixonado de Fabrício Brandão; o deslumbramento reflexivo de Daniela Galdino; os haicais (e falando em haicais já se diz tudo) de Mither Amorim; o esmiuçar emotivo de Geraldo Lavigne. Além do mais, o leitor constatará uma coisa óbvia: o trabalho sério e impressionante do pesquisador e organizador Gustavo Felicíssimo, que, entre critérios estéticos e políticos, constrói uma obra de referência, onde novas vozes se misturam, em igual índole, a nomes referencias como Sosígenes Costa, Adelmo Oliveira e Cyro de Mattos e para onde não encontramos sinais de nenhum “verbalista” que, como bem acentuou, certa vez, o filósofo Olavo de Carvalho, são os ditos "poetas que saltam direto do estímulo verbal à reação emotiva, sem passar pelo trabalho de imaginação e muito menos pela triagem crítica das representações imaginativas e cuja sua tendência é buscar a comoção ante os simples jogos vocabulares que, bem examinados, não significam absolutamente nada e nem poderão suscitar emoção nenhuma a não ser no sucesso do movimento Concretista que se deveu a propagação do verbalismo no lugar do verdadeiro poeta..."

............................................................................................................................................
E se tu (e o leitor) ainda me permitir mais um exemplo – eu disse que esta pergunta era um problema – ainda temos o caso de poeta Patrice de Moraes, que, por ainda não ter seu trabalho muito divulgado e nem lançado por uma editora, merece um tratamento um pouco especial.

Falar de Patrice de Moraes é falar de um homem de extraordinário talento, cuja produção poética, segundo o dizer de Jessé de Almeida Primo, tranqüiliza a toda crítica “por não deixá-la em dúvida quanto à sua qualidade”, não restando objeções ao seu domínio de um ofício de eleitos: a Poesia. Poesia sem medos: sem medo de mostrar suas influências, de apontar para as fontes de onde se embebera, seja uma poetisa grega, morta a mais de vinte e seis séculos ou um mineiro introspectivo, cuja derradeira herança foi um livro de versos eróticos; seja um poeta português que foi tantos ou um paraibano que não foi menos que único. Poesia sem medo de mostrar sem disfarces e subterfúgios ou de encontrar aquela liberdade presente nas formas fixas que só um grande poeta sabe dar e reconhecer. Sem medo de não se mostrar pessoal e sincera, sem perder a boa e velha veia fingidora. Sem medo de ser poesia pura e depurada. Poesia como poesia deve ser. E para ser possível obter algo assim faz-se necessário munir-se de três grandes e indispensáveis requisitos: o talento a disciplina e o amor ao que faz que, a tudo, nos obriga.

Quando me refiro à poesia de Patrice de Moraes, refiro-me a uma poesia que sempre se quer cinética, que pretende romper os limites da impressão simplória e alçar à consubstanciação da mais pura e didática alegoria, ou seja, uma poesia que substitui o abstrato pelo aparentemente concreto, ou, como melhor definiu Coleridge, citado por César Leal em seu Os cavaleiros de Júpiter, uma “transposição de noções abstratas para uma linguagem de cores”. Assim, cada poema de Patrice faz-se de imagens intencificadoras, dentro de um sistema que permite muito bem a isso; uma imagem representando um conceito ao qual se pretende, ou, simplesmente, comunicar, por meio de imagens puras e gradativas, o despertar dos sentidos, onde certas questões, como a do erotismo, são bem menos um assunto do que uma maneira de metaforizar, como nos dirá Jessé de Almeida Primo: “nesse sentido, sua poesia é tão erótica quanto toda poesia de qualidade deve ser, pouco importando seu assunto”.

Mas é, evidentemente, o próprio Patrice de Moraes, quem nos dá o melhor exemplo:

Se tens em ti a alma seduzida
a contemplar o Belo onipresente,
pensa que esse recurso reverente
levar-te-á à terra prometida.

Não àquela da Bíblia conhecida.
Mas outra situada num ambiente
onde sentir é fonte permanente
de ilustrações poéticas da vida.

Falo-te com profética certeza
porque assim que a existência foi-me empresa
às bases da contemplação do Belo

meu coração coitado preparou-se
a receber o AMOR como se fosse
o prego feito à imagem do martelo.



5) – A inovação em termos de poesia é sempre necessária? Existe uma tradição perene em regiões especificas do nosso país, como o Grande Nordeste?

Como afirmei, no início de nossa conversa, A poesia, aqui, no Brasil, sempre foi algo muito forte, ligada demasiadamente à construção de nossa nação, à nossa idéia de brasileiros, à identidade brasileira. E é claro que há uma tradição histórica ligada aos grandes centros culturais: no Nordeste (Bahia, Pernambuco e Maranhão), principalmente, por causa dos primeiros dois séculos de nossa formação, em Minas Gerais, graças aos Inconfidentes e no Rio de Janeiro, por tudo que veio dos primeiros anos do século XIX para cá. Eis os nossos grandes centros, lugares onde há uma tradição de poesia, onde a própria poesia é uma tradição. Todavia, mais do que tradição, ou inovação, necessitamos de boa poesia, de poesia de qualidade e é aí que começa um problema que já discutimos...


6) – Comente sobre a influência bíblica presente nos poemas de seu livro A pele de Esaú.

Eu penso da seguinte forma: como não ter esta influência? Ela está em nós por mais que não queiramos aceitar, pois é na Bíblia que está o nosso Mito Fundador. Leia o artigo: Do mito à ideologia, de Olavo de Carvalho, no Jornal da manhã do dia 21 de março de 2001. Um autêntico Mito Fundador é uma verdade inicial compactada que, no decorrer da História, vai desdobrando o seu sentido e florescendo sob a forma de ciência, de leis, de valores, de civilização, não sendo ele mesmo um produto da cultura por ser ele mesmo a semente de uma cultura possível. Basicamente, prossegue o filósofo, um Mito fundador constitui-se, em geral, de uma narrativa simbólica de fatos que efetivamente os sucederam que de tão essenciais e significativos que acabam por transferir parte de seu padrão de significado para tudo o que venha a acontecer em seguida numa determinada área civilizacional. A Bíblia é o Mito Fundador da civilização ocidental. E de que maneira este Mito Fundador se nos apresenta, e nos é repassado ao longo da História? Através da Literatura, primordialmente... Oral, depois escrita, xilogravada, depois pintada, melodiada por Bach etc. e tal... A arte é uma das muitas punções de um Mito Fundador. Quando Northrop Frye afirma ser, a Literatura Ocidental, uma variação dos enredos bíblicos, ele não só demonstra a existência e a importância do Mito Fundador como nos dá um belo exemplo do poder que a Poesia e a Arte exercem sobre nós ao longo de milênios. Até mesmo o Marxismo (que para mim é uma coisa abjeta) no que ele, supostamente, tem de melhor, é um mero decalque do Cristianismo.

No contexto mais específico d’A pele de Esaú, procurei, na figura de um Esaú destituído de seu destino, elaborar uma associação de sentimentos e pensamentos, buscando a verticalidade de múltiplos personagens que se querem fundir em um só. Afinal, o drama de Esaú é de todo ser humano, criatura destituída de seu verdadeiro lugar, como aquele Albatroz de Baudelaire,...“exilé sur le sol au milieu des huées, ses ailes de géant l'empêchent de marcher”, que um dia se apartou da presença de Deus. Um drama que, aliás, Sto. Agostinho, n’As Confissões, resumiu muito bem: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat inTte."


7) – Em tempos onde muitos “poetas” vanguardistas repudiam toda referência à Tradição Poética, você escreve uma poesia centra na forma fixa do soneto, ou seja, uma forma clássica. Comente sobre esse aspecto de sua poesia.

A forma, como já tive a oportunidade de dizer outrora, sempre pareceu, aos olhos ineptos, como um grande problema para quem nutria alguma pretensão poética; durante a pantomima estilística promovida pelo modernismo paulista de 1922, a forma figurará com um problema a ser resolvido, ou melhor, um cancro a ser extirpado, e não uma condição natural do fazer poético. Ambas as concepções, no entanto, são impressões simplórias e vulgares de quem só gosta de acreditar em besteira; neste caso, na idéia de que a forma é uma mera disposição de versos e rimas, ao bem da escolha de cada poeta, principalmente, àqueles que demonstram a mais completa inabilidade para com ela. Digo isso por pura experiência, pois, de todos os poetas que convivo e convivi – dos que conheço pessoalmente ou dos que só sei de ouvir falar e ler –, somente os que não dominam a forma reclamam dela; análogos a muitos artistas plásticos de lorota, que escondem sua escassez de talento através de um dito viés abstracionista. Há muitos que se dizem poetas, desprezando o soneto e as demais formas fixas, com a velha desculpa de que a forma é uma “aprisionadora” da inspiração e, conseqüentemente, do poema... entre outros despautérios.

Mas a forma nada mais é do que a elaboração interior do poema e é a idéia nele contida que a comporá, não o contrário. Um decassílabo, por exemplo, deve nascer decassílabo, quaisquer emendas de rimas ou sílabas métricas resultariam numa deformidade a comprometer, mais do que a qualquer outra coisa, o conteúdo da poesia. Forma é assimilação de idéia; compor diretamente nela é o melhor exemplo que alguém possa ter da incorporação desta idéia ao seu resultado final, enquanto arte. Todavia, é sempre bom lembrar que, quando digo que não pode haver emendas, ou apoios à composição de um poema, não me refiro aqui à depuração, que é um ato indispensável à criação poética, e que nada mais é do que o exercício e, conseqüentemente, a adequação de melhores recursos a uma forma já existente, pois ninguém sai de um soneto alexandrino para uma retranca, ou de um octossílabo pronto para um possível decassílabo sáfico; apenas se lapida, se retoca, fazendo com que um verso defeituoso, ou inexpressivo, como bem considerou Manuel Bandeira, em seu Itinerário de Passargada, carregue-se de poesia “pelo efeito encantatório de uma ou de algumas palavras”, exprimindo, no entanto, a mesma idéia e o mesmo sentimento que as substituídas, mas “lhes dando superioridade” naquilo que é a matéria mesma da poesia: a palavra.

Essas coisas são tão óbvias e, de certo modo, tão simplórias, que é difícil de acreditar que alguém as ignore com tanta veemência, mas não faltam exemplos de que tamanha asneira prolifera-se, por aí, como baratas no esgoto. Não faltam exemplos de idiotas que não acreditam na forma como a patente e espontânea conseqüência da idéia de um poema que – como afirmou o crítico Jessé de Almeida Primo – carrega em si o caráter mimético que, de tal sorte, a forma vem a existir para calcular, bem como para dizer algo do texto, que o texto não diz, por mais que isto, antagonicamente, só seja possível, através do texto, por meio da “prosódia e do ritmo” que, para o autor de A natureza da Poesia, são sempre encenação de alguma coisa.

Acreditar que um soneto são simples catorze versos e não o resultado natural da concepção poética é, paradoxalmente, quase que dar crédito ao piano, pela bela interpretação de um concerto, do que ao pianista que, virtuosamente o dedilha, visto que, ao desprezar o resultado acabado, ele teria mais credibilidade em sua forma do que em sua essência. Vejamos então, leitor amigo, outro exemplo simples, também utilizado pelo Jessé Primo.

Na cinza desta tarde me comovo,levado por lembranças tão pequenasque me volta o desejo de partida quando já estou bem próximo à chegadae me sobram razões de ter ficadosem sonhar o momento de partirnem cultivar tenções de continuar.Procedo como um louco que se perdenas voltas renovadas do caminhoe sem saber repisa a mesma trilha.Repasso o longo espaço percorridoe me faço perguntas sem resposta.Onde terei deixado o que perdiou que terei deixado ao me perder.
Os catorze versos estão aí, embora se sinta a falta dos já citados dois quartetos e dois tercetos ou, neste caso mais específico, os três quartetos e um dístico, pois se trata de um soneto inglês. Por que...? Para Jessé de Almeida Primo, há, neste belíssimo poema de Reynaldo Valinho Alvarez, um ritmo muito específico que predomina nos dose versos, levando-se em questão uma leve variação, que, por sua vez, confirmam e credibilizam o ritmo original, como na retomada de fôlego a partir do oitavo verso, no qual, ainda segundo Jessé, “tudo começa outra vez”, até a mudança mais acentuada exercida pela “uniformidade prosádica dos dois versos finais”; Jessé Primo, então, conclui que, “se a rima é igualdade de som”, como também afirmara o grande Manuel Bandeira, “neste soneto mostra ser também uma igualdade no ritmo, ou seja, a forma fixa é, antes de tudo, definida pela melopéia, de modo que, o agrupamento de versos e as rimas terminam por ser um detalhe”. O resultado disso, como vemos, é um soneto, e não catorze versos.

E por falar em soneto... Se tu perguntares a quaisquer alunos de nossas melhores escolas, ou, até mesmo, aos neófitos do Materialismo Histórico, os quais compõem a grande maioria de nossos universitários, não só nos cursos de Letras, mas, nas Universidades brasileiras, como um todo, sobre o que seria um soneto, ouvir-se-ia, entre ludibriações de todos os tipos (recurso muito comum àqueles que não gostam de admitir suas ignorâncias; talvez, a coisa mais honrosa que a grande maioria destas pessoas poderia fazer em vida) e retumbantes, porém dignos, “não sei!”, a resposta mais comum seria: “é um poema de quatorze versos, dividido em dois quartetos e dois tercetos”. Afirmação esta muito comum de se ouvir com relação àquilo que se perguntou (pois para a grande maioria dos alunos de Literatura, seja lá qual for o seu grau de instrução, extraviados do mais simples e decente rumo intelectual, esta será toda consideração, a respeito deste assunto, que eles terão em toda sua vida acadêmica), mas que, de longe, açambarcaria esta forma que, dentre as “castas” poéticas em que se diversifica o gênero lírico, é a que exige, de seu criador, o maior nível de intelectualidade, de concretude e de pensamento lógico-reflexivo, ou seja, a priori, o soneto precisaria ser rimado, metrificado e apresentar uma estrutura dissertativa em seu discurso, exigindo de seu autor grande conhecimento daquilo que faz e do que fala através dele (além do esqueleto estrófico tão comumente citado), que, em nada, ajudaria a compreender a grandeza e a complexidade desta forma, a qual se encontra no cerne de toda a Poesia Ocidental há séculos, e, ainda assim, é o mais sofisticado modelo poético existente, mostrando-nos, só por motivo de exemplo, que não foi à toa que parnasianos e simbolistas – tão diferentes entre si – preferiam-no, incondicionalmente.

Desde os exemplos mais clássicos, como os de Petrarca, Camões e Shakespeare, aos melhores mestres deste gênero em nossa literatura colonial e pré-moderna, como Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Machado de Assis, Raimundo Correa, Cruz e Sousa e Olavo Bilac, o soneto tem se mostrado o fim a que se dirigirem os versos de muitos dos maiores poetas do mundo há mais de meio milênio. Nem mesmo o advento do Modernismo – e, quando falo de Modernismo, não me refiro, aqui, à pantomima paulista de 1922, nem à Disney World canibalística que a ela se seguiu, antes, refiro-me àquele Modernismo onde o clássico e o novo convergiam sem nenhum tipo de inconveniência ideológica ou de extravagância lírica, como é o caso do Modernismo de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Augusto dos Anjos, logo retomado pelas gerações de 30 e 45, por exemplo – destruiu a importância e a tradição às quais o soneto se vale até os dias de hoje; pelo contrário, o Modernismo cultivou um soneto dotado de rigor e beleza como jamais se viu.

Segundo César Leal, em Os Cavaleiros de Júpiter, “o elemento protéico do soneto é o pensamento reflexivo”, mesmo quando este “alcança uma ordenação mágica como é freqüente em Jorge de Lima”. É, no soneto, que conhecimento, ciência e instrução geral se fundem com legitimidade, por isso mesmo, no Modernismo, apesar do descrédito e difamação de muitos, o soneto se aperfeiçoou, tornado-se, inclusive, “independente e diverso em relação aos modelos clássicos” – afirma César Leal –, apresentando – ainda de acordo com o poeta e ensaísta pernambucano – “traços estilísticos inconfundíveis”, como são os casos de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Vinícius de Moraes, Bruno Tolentino, Sosígenes Costa, Mário Quintana, Emílio Moura, Ariano Suassuna, Dante Milano, Ildásio Tavares... O soneto moderno – como todo bom poema de qualquer época – deve estar pleno de sentido, de significados, e não ser um mero jogo de idéias sobrepostas ao acaso; deve aparecer e soar ao seu leitor dentro de uma “imaginação auditiva” (lá vem o César Leal, de novo), tão comum em Milton, segundo T. S, Eliot, como no próprio Eliot, mas também em Castro Alves e até mesmo em Ascenso Ferreira, e, por recortar uma realidade instigante, por ter uma penetração psicológica muito intensa, por proporcionar uma fácil compreensão de tudo e de si mesmo, é uma obra da razão recortada pelos malabarismos lingüísticos e dos signos comuns, à maneira da inovação formal proposta por mestres como Jorge de Lima, e mantendo aquela tradição oral e simbólica comum que Vinícius de Moraes absorveu de Camões, por exemplo.

Além do mais, todo poema é formal quando se quer fazer algo bem feito, pois o bom poeta, que é também música, não pode admitir a desarmonia, o barulho frívolo, o ritmo descompassado. Meu livro A pele de Esaú tem metade de seus poemas em forma de soneto e a outra metade em forma livre, por assim dizer, o que ele não possui, é a deselegância instintiva dos que não querem aprender nem melhorar; trabalhei duramente para que ele tivesse, como afirmei a pouco, a plenitude de sentido, de significados, e não ser um mero jogo de idéias sobrepostas ao acaso, mas aparecer e soar ao seu leitor dentro de uma “imaginação auditiva”. Isso eu sei que se faz presente tanto em poemas como este:

E sempre, em meu olhar, o mesmo rosto,
a mesma noite, o mesmo labirinto.
O anjo que eu vi cair, já recomposto,
evola-se na luz – Eu não o pressinto...?

Avistei-o, através deste sol-posto,
sob o livor da morte e meus instintos,
ardente e triste sobre os céus de agosto
como as coisas que vi e agora sinto,

pois maior é o Mistério à minha frente.
( Nesse vento indo e vindo pelas portas,
eu penso em Deus e nada está ausente... )

– Somos memória e a morte a todos corta,
meu irmão Esaú precito e crente,
mas só a visão de Deus é o que te importa.


Como neste, também:

Tudo é tão terrível, Senhor
estes silêncios colhendo as orações e os frutos
a temeridade presente na Beleza
a navalha despertando a carne
o coração que bate
o pulso aberto
este morrer de tantas coisas
a indagação da Eternidade
a dúvida
o chão
a chuva
o barro paciente
o vaso que em todo barro existe
o oleiro
o instante fugaz como
todo instante
o instante fugaz como tudo
a noite
as estrelas
o dia sem nuvens
o corpo
o outro corpo
o espaço
a medida
o campo
as reses
a vida a brotar da morte de toda semente
o mover de tudo
o musgo
os muros
ainda que eu veja tudo
e esteja em tudo
toda mentira me é pouca
o passado
o porvir
a dor que trago agora
o peito
o braço
o olho
o sexo
os pés
o mar
o céu
( mas entre o mar e o céu o abraço insano )
o mar
o céu
( dois infinitos que no Azul se inflamam )
o mar
e o céu
( este mútuo espelhar entre os eternos )
as estrelas no espaço
tristes
o afastamento
o encontro
o martírio
o amor
a renúncia
o Minotauro
a falsa fé de Minos
as asas de Ícaro
Pasifae
o Touro
o Labirinto
o muito perder-se de Dédalos
a Esfinge
o enigma
o precipício
( esta mulher, Senhor
meu naufragar em seu corpo
o seu cheiro
a sua carne
o seu delírio
o suor
o gozo
as entranhas
toda ela e tudo... )



8) – O que você diria como forma de conselho para aqueles que estão se iniciando na prática da poesia?

Não sou a melhor pessoa para dar este tipo de conselho, pois tenho apenas 32 anos, dois livros publicados e um a caminho, sou tão aspirante quanto muitos que ensaiam seus primeiros versos; mas, para não deixar a pergunta sem resposta, vou falar dos conselhos que eu mesmo me dou. Ler muito, mas, principalmente, ler os grandes poetas. Muitos poetas com certo talento tornam-se poetas medíocres por causa de leituras igualmente medíocres. Trocar Manuel Bandeira por Cassiano Ricardo, Jorge de Lima pelos irmãos Campos, Bruno Tolentino por Manuel de Barros, Ildásio Tavares por Arnaldo Antunes é querer não ser ninguém, ou coisa alguma, nada. Ouvir os mais velhos e experientes; ser humilde, aceitar o fato de que poder errar, mas também poder se corrigir, porque um poema nunca está, verdadeiramente, terminado; há sempre a algo a mudar, a corrigir, a refazer, tudo pode ser melhorado se houver talento, exercício constante e vontade de construir sempre o melhor. Lembrar-se de que ninguém colhe manga em jabuticabeira, nem todos hão de ser poetas por mais que queiram e é preciso saber a hora de desistir, também. E se já são poetas, acreditar no que acreditam ser algo especial, porque é verdadeiramente especial; a poesia e arte tornam a vida melhor; com a poesia, como diria Gullar, “a vida é mais”, sem dúvidas. Mas, não se iludir... este não é um caminho de glória, muito pelo contrário, por causa da poesia eu ouvi muitas injúrias, muitas mentiras que disseram todo tipo de mal a mim e aos meus. Parafraseando meu velho mestre e amigo, Ildasio Tavares, o melhor conselho, assim como os melhores versos, quem nos deu foi Dante: “Lasciate ogni speranza, voi che entrate”!




7 comentários:

  1. Prezada Avril...faça uma crítica elaborada mostrando os motivos pelos quais você não considera o Silvério um poeta e eu publico... Ok?

    ResponderExcluir
  2. Silvério Duque mostra, com bastante munição, porque é considerado, por muitos, um dos maiores poetas de sua geração. E não se trata do poeta que "faz versos como quem morre"... Silvério é poeta vivíssimo, poeta com forte cabedal de ideias, substrato bastante sólido, consistente, que faz com que sua poesia cresça à medida que cresce a capacidade do leitor. Trata-se de poeta pensador, que faz prevalecer a forma para o bem do conteúdo, e que se utiliza da poesia como veículo do pensamento, do sentimento e da criação humana como um todo. Seus poemas realmente iluminam.

    Henrique Wagner

    ResponderExcluir
  3. Bravo, Silvério Duque, meu amigo!

    Conselhos retidos na tábua do coração.

    Grande abraço,
    Paulo.

    ResponderExcluir
  4. Amigo Silvério,

    Mais uma aula despretensiosa, mas riquíssima em informaçãoes, principalmente no que diz respeito aos grandes poetas brasileiros do passado e aos que estão em plena produção, como estás.
    Parabéns e que Deus ilumine sempre o teu caminho,
    Abraço,
    Elpídio

    ResponderExcluir
  5. Querido Silvério,

    Adorei o "grave, crônico e contagioso (...)", "cooperativismo porco" também foi fantástico! rsrsrs dá pra ver o ácido escorrendo - com razão de ser, porém escorrendo ... Se eu continuar dizendo o que achei fantástico vai demorar muito, mas pra terminar, chamar marxismo (que pra mim tem sim letra minúscula) de "coisa abjeta" ... minha única reação foi rir!!!!

    Saudades,

    Fabi.

    ResponderExcluir
  6. Hilton,
    vc como sempre postando matérias relevantes e dando o que pensar. Terei que reler essa entrevista, pois há nela muitos pontos importantes para reflexão. E conhecer a poesia de Silvério Duque me interessa muito. E aproveito para dizer que voltei aos blogs, que estarei visitando e postando regularmente e que será uma honra receber suas amáveis visitas.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  7. Com certeza, muita lucidez e cérebro. Negar que estamos passando por uma enorme crise na literatura é negar a verdade.

    Por ser de São Paulo posso dizer abertamente que aqui vivemos em pleníssima decadência principalmente nas palestras em redutos ultravanguardistas....

    ResponderExcluir