sábado, 15 de outubro de 2011

W.J.SOLHA: TRIGAL COM CORVOS (FRAGMENTO II)

(W.J.SOLHA)










Pra que?
Um poema não arrasta 150 vagões de minérios pela estrada-de-ferro
um poema não ergue 400 passageiros e os leva pr’ outro lado do mundo
- e aqui vou fundo:
não produz – mesmo se prolixo - alimentos suficientes pr’os que fuçam meu lixo.
Serve apenas.... pra dizer que passado e futuro são provisórios como icebergs e dunas
um
quase sempre entre lendas
outro
descrito com runas.
Serve pra dizer que ao ver Terra e Lua fotografadas de Marte
minúsculas na treva intensa
veio-me a idéia de que tudo é nada
e orgulho... imenso
da foto realizada.
Serve pra dizer que as melhores cachoeiras de Foz do Iguaçu ficam no lado argentino
mas que o espetáculo só do lado brasileiro se goza
confirmando – ao que parece - que é mais divertido ser amante do que marido
- seja em verso
ou prosa.
Serve pra dizer que me fascinam as mudanças de canal que me ocorrem na mente quando penso em lua
rua
nua
e
crua.

Pronto:
talvez eu faça versos porque haja algo a dizer... vago... e belo... como as paisagens na névoa
na China.
O que pode ser
não sei.
A erosão
que cavou o Grand Canyon
produzindo aquela Manhattan de pedra no Arizona
ergueu catedrais góticas no Monument Valley com tanta inocência quanto Bosch - o genial debilóide – foi surrealista... séculos antes de Freud.
Meu neto
ao me perguntar
depois de ver vários filmes em branco e preto comigo
se no meu tempo não havia cor
foi um criador inocente
sem tirar nem pôr.
Claro que para construir uma acrópole... precisa-se de fé... e pedra
mas pedra – aqui - é o que não falta
além de outras palavras lindas
como rocha
cristal
cedro
flores
...libélulas
... e mágoa
... além de “água”
mil vezes superior a “water”
sem falar de “nuvens”
muito mais “nuvens” do que “clouds”.
O fato de isso não ter sido problema para Shakespeare
apenas prova que em terra onde todo mundo dirige na contramão
ninguém bate.
Admito
no entanto
que o castelhano dá um tom encantatório a la noche
a la luna
a las mujeres
al corazón
y al sol
e que atmósfera é tão mais leve que atmosfera quanto nosso ferro é menos pesado que hierro
o que me faz pensar em certa perda de magia nos versos em português
( mas isso é frescura e logo passa ).
O importante é a percepção da mecânica da coisa:
O importante é fazer como os rios
sempre vindo de presépio humilde e de lento crescimento
mas com passagens por campos e boqueirões
sofrendo cheias
secas
corredeiras
monções
baques em cachoeiras
grandes esperas em lagos e barragens
pasmaceiras
até que chegam ao mar em que tudo em tudo se funde
inclusive o princípio
que com o fim se confunde.
O importante é a percepção da mecânica da coisa:
Eugenio Arias - barbeiro de Picasso - enquanto conversava com seu fre-
guês e o escanhoava
viu-o
aqui acolá
ilustrar o que dizia com desenhos em papéis de embrulho calendários
livros de várias áreas
pintar cenas de tauromaquia nas caixas de seus instrumentos
viu-o criar figuras soltas nas tigelas de espuma
uma aquarela surgir na contracapa de um catálogo de Arte ( em que o artista
se representou servindo ao conterrâneo uma porção de tourinhos fritos regados a vinho espanhol)
viu a nova companheira do pintor - Jacqueline Roque – ser-lhe apresentada em traços ligeiros
enfim:
sessenta peças ao todo
hoje no Museo Picasso
de Buitrago de Lozoya
75 km de Madri.
Esperto – já que sem gênio - o Eugenio
no toque de Midas do outro
teve seu prêmio.
Foi o que fez o Camões querendo o toque de Virgílio que quis o toque de Homero
e é o que também quero
pois é isso
ou zero.
Claro:
não há
mais
interesse em anjos e deuses
não há
mais
impacto na maçã com parafuso no furico
como na foto de Man Ray
eu sei
e ninguém mais se impressiona com o buñuelesco burro morto em cima do piano
se não me engano
nem com relógios moles ou cheios de formigas
de Dali.
Mas o que me tem faltado – talvez - seja algo mais poderoso e sutil do que meus cinco ou seis sentidos
que sabem disso.
Algo como aqueles mil olhos do partido
que – dizia Brecht – lhe davam a visão completa das coisas.
Mas não existe mais o partido
e é estranho como agora vamos vivendo – todos – com provisórios valores:
publicitários padres médiuns astrólogos
traficantes políticos terroristas
rabinos pais-de-santo artistas vigaristas
psicólogos.

Por isso
talvez o máximo que eu consiga – em versos – seja um resultado final ao nível dos imaculados carros ainda sem donos
nas concessionárias
que não param de ser produzidos
de forma extraordinária
mas sem a perfeição... de um Mercedes Benz Special Roadster 500k
de 1936
ou de um Porsche 911
ou Ferrari 456 GT
dos anos 90
nem de um Hispano Suiza Nieuport
1924.
Conto
no entanto
com o Tempo
essa poderosa
inflexível
lenta
enigmática e
colossal conseqüência do avanço da máquina do mundo
travada em marcha única ( apesar das urgências e emergências ou ausência de expectativas de todo tipo que nos têm dado a ilusão de que ele às vezes urge
ou muge )
pelo que Van Gogh se matou em 1890 logo depois de pintar o atormentado “Trigal com Corvos”
sem saber que
se tivesse resistido mais três anos
assinaria “O Grito”
de Munch.

2 comentários:

  1. mesmo que Van Gogh pintasse o Grito, ele nã o ouviria, é certo.esse blog é impressionante, no sentido Moneniano.

    ResponderExcluir
  2. Seja bem vinda, Adriana! Obrigado pelas palavras, e que sua presença seja constante!

    ResponderExcluir