terça-feira, 11 de outubro de 2011

MAJELA COLARES: ENSAIO

(Felipe Stefani)











POESIA DE REPENTE



Ao poeta-repentista Lourinaldo Vitorino


É chegada a hora de rumar o pé na estrada e rastrear, mundo adentro, o universo telúrico, original e encantador da poesia popular, focando com maior atenção o território da cantoria. Não é fácil! Precisarei de um guia, um rastreador de fôlego largo e olhos de gavião rapina... ao mesmo tempo poeta e bom parceiro de viagem. É coisa rara! Muito rara. Épa! Lembrei de um; melhor impossível... Orlando Tejo.
... estamos à caminho. O sol é fogo de coivara em chamas. Vez por outra saltam versos faiscantes, vindos de todas as direções. A prosa é boa. Dizer de poesia popular é bom que se comece a falar em cantoria, improviso, repente. Cantar uns versos. Fica melhor... um desafio. Bem melhor! – Mas tem que ser bom! Ressalta Orlando Tejo. – Claro amigo Tejo, muito bom; assim... Pinto do Monteiro começa:
(...)

No lugar que Pinto canta
não vejo quem o confunda
o rio da poesia
o meu pensamento inunda
terça, quarta, quinta e sexta
sábado, domingo e segunda...

e Louro do Pajeú rebate:

Sábado, domingo e segunda
terça-feira, quarta e quinta
na sexta não me faltando
a tela, pincel e tinta
pinto, pintando o que eu pinto
eu pinto o que Pinto pinta!

– assim, companheiro, é demais! Diz Tejo sorrindo após uma longa baforada em seu cachimbo. Cantoria das grandes! Improviso puro! Éeee... Pinto do Monteiro e Louro do Pajeú em combate. A maior dupla de repentistas que o mundo já viu; conclui, com a fumaça feito redemoinho em torno de seu bigode.
* * *
A cantoria, ao ritmo da viola, segundo o escritor, ensaísta, poeta, jornalista e, ora, guia literário, Orlando Tejo, nasceu em Teixeira, cidade paraibana encravada no ponto culminante da Cordilheira da Borborema, há precisamente (contando de hoje, 06.09.2002) 144 anos, 2 meses e 17 dias. Confia na exatidão desses dados, o mestre Tejo, baseado no único documento verdadeiro existente, ao qual teve acesso – passou em suas mãos – na década de 1950, o folheto escrito por Josué Romano, filho de Romano do Teixeira, também conhecido por Romano Caluête. Conforme tão precioso documento, a primeira cantoria do mundo ao som de violas veio à luz exatamente na noite de 23 de junho de 1858, véspera de São João, tendo como maternidade a “Bodega de Cima”, localizada nas imediações da igreja primeira da cidade de Teixeira, com os repentistas Romano Caluête e Silvino Pirauá. “Essa conversa proclamada por alguns eruditos – que se arvoram doutores no assunto – de que a cantoria surgiu na Peníssula Ibérica, na Espanha Medieval ou na região de Provença, Sul da França, é pura prodologicalidade”, arremata o autor de Zé Limeira – Poeta do Absurdo. “O que houve? Ela foi deportada para o Nordeste brasileiro e nada restou por lá? Aqui, o que não faltou, durante esse século e meio, foi repente, verso e viola. A cantoria em sua forma original, apresentada em duplas ao som da viola, com estilos e rítimos próprios, cadência e rigor métrico, modalidades diversas de toadas, melodias adequadas a cada estilo, é pura criação da imaginosa verve do nordestino, não me resta nenhuma duvida. A bem da verdade, este milagre é nosso, eu vi a certidão de nascimento”, afirma, categoricamente, Tejo. “E é eterno! Enquanto existir Nordeste, suceder-se-ão gerações e gerações de repentistas, com o mesmo DNA do improviso, imortalizando essa entidade mágica denominada cantoria”.
* * *
Após essa longa caminhada ouvindo atentamente meu guia e mestre, Orlando Tejo apontou-me a trajetória a ser seguida e repassou-me as coordenadas. Sumiu. Foi ao encontro de Zé Limeira. Agora seguirei sozinho no rumo dos ventos e dos versos. Penso...!!! O mundo da cantoria que tem como representantes maiores Pinto do Monteiro, os irmãos Batistas: Lourival, Dimas e Otacílio, Inácio da Catingueira, Romano do Teixeira, Cego Aderaldo, Zé Pretinho (criador do galope a beira mar), Canhotinho, Antônio Marinho, Manoel Galdino Bandeira, José Alves Sobrinho, Rogaciano Leite, Manoel Xudú, Joaquim Vitorino, Domingos Fonseca, José Faustino Vilanova, Jó Patriota, Hercílio Pinheiro, Lourival Bandeira, João Furiba, Antônio Nunes de França, José Amâncio de Moura, Severino Ferreira, Diniz Vitorino e hoje, em plena atividade, nomes como Oliveira de Panelas, Geraldo Amâncio, Ivanildo Vilanova, Lourinaldo Vitorino, Raimundo Caetano, Pedro Bandeira, Fenelon Dantas, Antônio Lisboa, Sebastião Dias, Moacir Laurentino, Daudete Bandeira, Edvaldo Zuzu, João Paraibano, Zé Cardoso, Sebastião da Silva, Louro Branco, Valdir Teles, Zé Viola, Rogério Meneses, Edmilson Ferreira, Hipólito Moura, Raimundo Nonato, Nonato Costa, Severino Feitosa, Raulino Silva, dentre muitos outros, que cantaram e cantam essencialmente o Nordeste, essa terra em que o repente está no rosto e na expressão lingüística do povo, esse mundo do improviso, repito, não usufrui, ainda, infelizmente, da grandeza e do valor que possui. Cantoria em terras de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí, é, para muitos que a admiram, coisa viva e ao mesmo tempo coisa mal-assombrada, até. Poucas artes têm tanta representatividade na formação de uma cultura como o verso improvisado tem para as raízes culturais do povo nordestino. Influência que não se restringe apenas às criações de obras populares, mas também em obras de grandes nomes da literatura brasileira, a exemplo de João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna e de destacados compositores e interpretes da MPB, como Zé Ramalho e Alceu Valença. O cantador-repentista verseja com dignidade em grau máximo e expressão maior de beleza a autenticidade da sua arte, quer ao expor às impressões do espaço/tempo exterior, geográfico ou histórico, quer rimando e metrificando os mais intensos e puros sentimentos que afloram das profundezas do homem.


A sapiência do improviso em versos – afirmo sem medo de cair em erro – é uma das mais difíceis formas de expressão artística. Mas, forçoso ressaltar, nem todo repentista é poeta, no entanto, há repentistas – um número reduzido – que fazem poesia no improviso do verso. Grandes cantadores, reconhecidos nacionalmente, são consagrados tão só pelo fato de improvisar com rapidez e desenvoltura – algo, a meu ver, já fora da normalidade – seguindo o rigor da rima e da métrica. A essência da cantoria, principalmente do desafio, é a rapidez criativa do repente. Esse é o seu grande mérito... um tentando superar o outro na qualidade e velocidade dos versos, feito dois espadachins em duelo de morte. Nessa arte, ninguém superou Pinto do Monteiro. Era contumaz, impiedoso e muitas vezes sarcástico com seu opositor. Certa vez em desafio com João Furiba – bom cantador e velho companheiro de batalhas – foi atacado em estrofe que ironizou seus dotes de comerciante. Pinto, furioso, sem pestanejar, rápido como bote de cascavel, pegando a deixa, foi aniquilador na resposta. Eis o embate. Furiba:


(...)



Se você quiser ter sorte
na sua mercearia
coloque uma etiqueta
em cada mercadoria
se nela tiver meu nome
vai conquistar freguesia...


Pinto fulminou:


Triste da mercadoria
que nela tiver teu nome
pode vir um guabiru
com quinze dias de fome
mija o pão, caga no queijo
passa por cima e não come!


Sequer o desafiante havia concluído sua estrofe. Isto é o que se chama de golpe mortal, contra-ataque ferino imprevisível, quando o adversário sente não ter mais forças, nem fôlego para continuar em combate. Na cantoria pode ser a rendição antecipada do oponente, o nocaute inesperado. Dificilmente, qualquer outro cantador, teria condições de manter a peleja num ritmo e num nível desses. Quem sabe, apenas, Lourival Batista, o Louro do Pajeú, o mais sagaz e criativo repentista que Severino Pinto, o Pinto do Monteiro, enfrentou.
Como prova, transcrevo um momento sublime de uma cantoria em que a dupla se batia em improviso, tendo como temática os vegetais e suas características. Lourival termina uma estrofe com a palavra “carola” em vez de “corola”. Pinto percebendo o pequeno deslize ortográfico, repentinamente golpeia o adversário:



(...)


Um rapaz que teve escola
e ainda canta errado
fala em flor e diz “carola’
muito tem-se confessado
parte de flor é “corola”
precisa tomar “coidado”.



Lourival com a mesma perspicácia de detetive infalível observa que Pinto, no último verso, ao invés de falar “cuidado”, pronuncia “coidado”. Sem vacilar, com rapidez desmedida, devolve o golpe:



Pra não ter um só errado
errei eu, erraste tu,
errou Pinto do Monteiro
e Louro do Pajeú
nesta palavra “coidado”
tire o “o” e bote o “u”.

Cantador, poeta e repentista... isto é um fenômeno extraordinário restrito a poucos e possível, no meu pensar, apenas em algumas das várias modalidades e estilos da cantoria; num Galope à beira-mar, num Martelo alagoano, em Décimas soltas, em Sextilhas, num Quadrão mineiro, etc.; modalidades nas quais se harmonizam, além do ritmo, a cadência do verso e a melodia. Dentre essa minoria de poetas-repentistas faço referencia a dois nomes: Dimas Batista e Diniz Vitorino. Dimas marcou época na cantoria. Muitos dos seus improvisos são de um encantamento poético arrebatador. Faleceu na década de 1980, quando já havia encerrado a profissão de cantador, dedicando-se apenas ao magistério, professor de História, na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos na cidade de Limoeiro do Norte, Ceará. Diniz – falecido neste ano de 2010 – não mais cantava, somente escrevia. Cantador completo, dos maiores que surgiu em toda a História da cantoria, respeitado e reconhecido por todos, amigos e rivais, e pelo público. É dele essa estrofe de improviso:

Qualquer dia do ano se eu puder
para o céu eu farei uma jornada
como a lua já está desvirginada
até posso tomá-la por mulher;
e se acaso São Jorge não quiser
eu tomo-lhe o cavalo que ele tem
e se a lua quiser me amar também
dou-lhe um beijo nas tranças do cabelo
deixo o santo com dor de cotovelo
sem cavalo, sem lua e sem ninguém

Bom, diante de tal obra improvisada, nada mais tenho a dizer. Deixo para os leitores o prazer de analisá-la. Fica também com vocês, caros leitores, os que conhecem e os que não conhecem a cantoria, a responsabilidade de pensar e repensar esta arte brasileira – originalmente nordestina – criativa, bela e rara, no entanto, ainda carente do reconhecimento que lhe é devido e solícita da patente que lhe foi sempre negada.

A estrada chega ao fim. Segui o rumo certo. O sol era quase poente. Ficaram as anotações de viagem por essa trilha e vereda palpitante da poesia popular, a cantoria. No local, metrificadamente marcado, estavam cantarolando, à minha espera, Zé Limeira e Orlando Tejo. Daí pra frente Limeira marcou o passo, apontou o rumo a ser traçado e – de viola em punho e verso aceso – cantou... iluminou e encantou a noite.

6 de setembro de 2002.
Majela Colares
escritor, poeta e contista, autor, dentre outros, dos livros O soldador de palavras e As cores do tempo.



Ps. esse texto, escrito em setembro de 2002, foi revisto e ampliado em novembro de 2010.

2 comentários:

  1. de manaus parabens por referencia os verdadeiros representantes da cultura popular,noa 10, um abraço joao bosco de lima.

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  2. Como neta do poeta repentista canhotinho, sinto-me honrada pela menção de seu nome em seu texto. Ele, assim como os demais, são verdadeiros representantes da mais pura poesia popular.
    socorro Fernandes da Costa

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