sábado, 27 de março de 2010

CRUZ E SOUSA: POEMA

(Magritte)


ÂNGELUS

Um sol em sangue alastra, mancha prodigiosamente o luxuoso e largo damasco do Firmamento.

Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras luminosas dão uma glória sideral à tarde.

E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora, os deslumbrantes efeitos escarlates do grande astro que desce, d’envolta com douramentos faustosos, fazem lembrar a magnificência romana, a ritual majestade dos Papas, um festivo desfilar católico de bispos e cardeais, através dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os báculos e as mitras altas, sob os pálios aurilavrados.

Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos, purificadores, como emanados da saúde, das virgindades eternas.

Um ar olímpico, talvez o sopro vital de mares verdes e gregos, eterifica harmoniosamente a curva das montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as, dá-lhes a nitidez, o esmalte do aço.

Como que a Natureza, nesse esmaecer do dia, tem mocidades imortais e como que as forças, as origens fecundas da terra, desabrocham em rosas.

O rubente esplendor solar gradativamente smorza num cor-de-rosa leve, de veludosa suavidade.

Serenamente, lentamente, uma pulverização neblinosa desce das amplidões infinitas...

Névoas crepusculares envolvem afinal a imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios.

Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos vales e das colinas adormecem além, repousam num fluido noctambulismo...

Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma voz de mulher, dispersa no silêncio, clara e sonora, canta amorosamente para as estrelas que afloram rútilas e mudas.

Canta para as estrelas! e parece que a sua voz, errante na vastidão infinita, vai inundada do mesmo perfume original que a alma viçosa e branda dos vegetais exala da Noite...

Missal. Ed. Martins Fontes

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