quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O ROMANCE CATÓLICO: OCTÁVIO DE FARIA

(Bosch)
Padre Luís hesitava. Diria que sim? Diria tudo? Diria que era preciso velar eternamente, incessantemente, até a consumação dos séculos, com o Cristo em agonia, segundo a grande palavra cristã que repetia sempre? Daria àquela alma inquieta, já torturada, as chaves para a penetração no grande mistério da agonia perene do Cristo, que lhe parecia ser o Supremo mistério da vida de cada criatura? Daria o brado de alarme naquela natureza sensível, covarde diante do sofrimento?
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- Escute uma coisa, Ivo – preste bem atenção, porque é coisa que você precisa saber para a vida toda, coisa essencial para todos os homens e que só talvez quando vier a velhice ou o perfeito amadurecimento de seu espírito, você compreenderá direito: só há verdadeira serenidade em Deus. Só em Deus, compreende? Tudo o mais é agitação incessante, são tranqüilidades que, na verdade, não duram todas mais de um instante. São descansos, pequenas paradas – quando não são apenas o primeiro degrau de um novo inferno, ainda velado...
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Estava correndo um sério perigo e não havia como evitar o sofrimento iminente. Possuído de uma grande emoção, pensou quanto era profundamente triste aquela situação: a vida vinha a Ivo em toda a sua grandeza, e ele, pela natureza, pelas suas qualidades, podia e merecia aceitá-la nobremente. Todavia, eis que, nessa vida apenas ainda no horizonte, já o tentador se introduzira. E procuraria, agora, dominar tudo, perverter Ivo, deformando o simples oferecimento da vida, a tomada de contato no momento das grandes dádivas e dos compromissos decisivos.
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A compreensão da importância e das dificuldades da luta exaltam padre Luís. Está disposto a tudo para não falhar. E, de joelhos diante do Cristo crucificado – desse Cristo que para ele é, acima de tudo, o Cristo em agonia até o fim dos séculos – implora que não seja abandonado na sua tarefa e tenha a força e a confiança necessárias para a luta que pressente em toda a sua violência e nas suas imensas dificuldades. Não se ilude: terá que sustentar nos ombros todo um mundo e os ombros de um homem, mesmo os de um padre, são muito fracos. – Qualquer peso os faz vergar até o chão, se a mão de Deus não estiver servindo de contrapeso. – Os ombros de um padre, sobretudo os de um padre, talvez de todos os homens o mais fraco, o que mais sente o peso terrível da condição humana...

Nem por um momento se ilude sobre as dificuldades. Sente-se mesmo a presa de uma grande angústia. E desde então até a madrugada que lhe traz enfim o sono, é como se soubesse, se pudesse adivinhar, que numa casa, distante apenas alguns quarteirões, numa cama revolvida pelo desatino, imagens impuras triunfaram sobre todas as proibições e se impuseram a Ivo como o mais irreprimível e legítimo apelo da vida.
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Certas naturezas precisam de amizade para desabrochar inteiramente. São como flor ainda fechada que exige o ar da noite para mostrar como é, que mistérios abriga. Sem um clima especial de penumbra e de secretas confidências, de conspiração a dois contra o resto do mundo, essas criaturas, especialmente marcadas para a incompreensão, permanecem muradas por detrás de suas defesas e nada conseguem comunicar aos que vem a elas. Não existem para o simples uso diário, para conversas despreocupadas entre camaradas que se entendem, mas para os longos caminhos que a amizade faz nos momentos de crise e de alegria profunda.
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Será preciso o longo e doloroso aprendizado da vida para que nos eduquemos melhor para o acolhimento dos grandes sentimentos necessários.

Mundos Mortos. Ed. Record.

4 comentários:

  1. Hilton,
    Interessante postagem. A obra do Octávio de Faria é uma das mais significativas da nossa literatura, tanto pela forma de que lançou mão o romancista para construir sua obra, através do ciclo romanesco, quanto pelo valor filosófico e religioso que sobressai em seus escritos. É uma pena que seus escritos estejam esquecidos ou quase esquecidos pelos leitores e pela crítica. Fico imensamente feliz quando me deparo com publicações recentes sobre o autor, o que aconteceu ao me ver frente a seu blog e com os trechos de Mundos Mortos, primeiro romance da Tragédia Burguesa.

    Sinceramente, Samara.

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  2. Estimada Samara, é lamentável que esses escritores estejam marginalizados em nosso país, sobretudo na academida. Penso que isso seja consequência de uma crítica de cunho marxista. Em breve devo postar fragmentos de o Anjo de Pedra, outro grande romance de Octávio de Faria. Um grande abraço e esteja sempre presente.

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  3. Por favor alguém saber dizer quem é o autor da obra acima (quero dizer da tela). Obrigado.
    João Carlos

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  4. Prezado João, seja bem vindo ao Poesia Diversa! Essa tela é do pintor Bosch. Um abraço.

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