sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

JORGE DE LIMA: A ESSÊNCIA CRISTÃ DA POESIA II


O HOMEM – SER PROCESSIONAL

Junto de ti, homem, ser processional que só vês tua sombra,
pousa a mão no teu ombro o Anjo que te protege.
Mas, ora esvoaça à direita, ora esvoaça à esquerda
o grande e belo Anjo exilado da Luz.
Adiante de ti – perfurada e sangrando,
a mão do Redentor te aponta o caminho certo;
dentro de ti – seres anteriores a ti, – luminosos ou negros
vão contigo e tua sombra.
Quando adormeces e ficas durante o sono – invisível e inocente,
e o livre arbítrio voa de teu cadáver,
a estranha procissão espera que tu te acordes
para prosseguir a marcha.
Por isso é que te cansas sem motivo nenhum.
Por isso é que andas de costas para o caminho certo.
Por isso é que tropeças e tateias como um ser sem leme.
Por isso quando pensas estar sobre o abismo do Inferno,
a mão perfurada e sangrenta te conduz para cima.


A MULTIPLICAÇÃO DA CRIATURA

Parece, Senhor, que me desdobrei,
que me multipliquei,
que a chuva dos céus cai dentro de minhas mãos,
que os ruídos do mundo gemem nos meus ouvidos,
que batem trigo, chorando, sobre o meu tronco nu,
que cidades se incendeiam dentro de minhas órbitas.
Parece, Senhor, que as noites escurecem dentro de meu ser múltiplo,
que eu falo sem querer por todos os meus irmãos,
que eu ando cada vez mais em procura de Ti.
Parece, Senhor, que tu me alongaste os braços
à procura de abóbadas raras e iluminadas,
que me estiraste os pés repousantes no Limbo,
que os pássaros cansados em meus ombros repousam
sem saber que o espantalho é a semelhança Tua.
Parece que em minhas veias
correm rios noturnos
em que barqueiros remam contra marés montantes.
Parece que em minha sombra
o sol desponta e se deita,
e minha sombra e meu ser
valem um minuto em Ti.


CONTEMPLAÇÃO

Se és cego de nascença ou cegaste lutando, crê!
E então a visão voltará; e tu hás de sofrer vendo sofrer o mundo;
porém, pede mais, pede contemplação:
E a grande Face descerá quando dormires, e ficarás um ser estranho,
com cem órbitas cobrindo tua pele bruta;
e não poderás caminhar mais entre os homens para não
os atropelares com tuas visões terríveis,
com as rodas aladas que te transportarão aos montes
onde as sarças sagradas ardem sob o divino Rosto.
Mas o fogo do Inferno há de vir te caldear
ou te extinguir ou te experimentar também.
E serás entregue aos areais desertos
que arderão a teus pés com uma fogueira imensa.
E se não te desviares da divina Presença
serás o aço de Deus,
serás o espelho divino
que refletirá a luz sobre o mundo apagado.


A MORTE DOS ELEMENTOS

E há de vir um dia em que a Terra que acolheu teu cadáver
será vazia como um cemitério.
E da água que te batizou e te matou a sede não restará uma gota.
E o ar não envolverá a terra nem as águas;
e junto aos três elementos que tantas vezes na Vida
nem te deram prazer, nem te deram pesar,
indiferentes a ti como se não existissem;
só o fogo, o forte fogo invencível
pode acompanhar teu espírito e envolvê-lo.
E chorarás em vão e rangerás teus dentes.


DAS PROFUNDEZAS DO PECADO ORIGINAL

Ó pais primitivos que das profundezas do pecado original
me transmitistes o vosso sangue revoltado
que corre nas minhas vísceras,
que corrompe as minhas mãos,
que cega os meus olhos e o meu entendimento,
quanto vos sou semelhante, como sou uma perfeita imitação de vós,
como morro de vossa morte, como sofro de vossa ambição,
como me pertence o vosso erro!
Na noite tenebrosa em que me pusestes, ó pais errantes e pródigos,
me transmitistes a dúvida no Senhor,
me ocultastes a Face do Senhor, e perdestes a casa
para onde eu devia voltar!
Ó pais primitivos,
que me enviastes para uma existência que eu não solicitei,
e para a qual cheguei nu, humilhado e chorando,
eu vos perdôo pelo sangue de Cristo que me obrigastes a derramar,
pela traição de Judas meu irmão e teu filho,
pela negra expiação que me esmaga na Terra!


RESTITUO-ME

Estende a Tua mão, agora, que ninguém notará:
sem desespero e sem mágoa me restituirei a Ti.
Não te devolverei minha Figura sangrando,
nem também paralisada sob o sopro da morte:
Mas os pés fatigados de tanto caminho errado,
mas as mãos abatidas de tanta procura vã,
mas os olhos sem brilho que adiante das mãos viram a decepção.
Estende a Tua imensa Mão e ninguém notará
que entre milhões de homens,
um Elias anônimo, sem função no teu reino
desapareceu para sempre
sufocado de pó, sobre um tufão de cinzas.


A PROMESSA

O Sumo Sacerdote, o Principal, o Majestoso Oficiante,
o Bispo, o Presbítero estavam no Padre Único que subiu para o Altar.
Era belo, era meigo, era homem e era Deus,
era um ângulo da Trindade enfincado na Pedra
como um cometa imenso iluminado a Terra.
E detrás do imenso altar,
vozes o acusaram, mãos surgiram e lhe transpassaram o peito.
E o Majestoso Oficiante se transformara em vítima;
e nas mãos que o sacrificavam
estavam as suas próprias mãos que eram as mãos do Pai,
com a promessa milenar que se cumpria então.


O VENTRÍLOQUO

Debruça-te sobre tua voz para escutá-la:
tua voz existiu antes de tua forma.
Se o alarido do mundo não te permite entendê-la,
vai para o deserto,
e então a ouvirás com a inflexão inicial das palavras do Verbo
e com a fecundidade do Gênese ante o Fiat do Pai.
Ouve a tua voz sobre a montanha para que o divino eco
atravesse os milênios
e reboe dentro de ti que és o templo de Deus!
Na tua voz adulta ainda existe o acalanto de tua ama
e o balanço de teu berço.
Ainda há apelos que vêm da alcova de teus pais,
ainda há os convites do instinto de tua juventude.
Debruça-te sobre tua voz e escuta as vozes que vêm nela,
as ressonâncias de ti próprio que nasceram contigo,
os bramidos dos ventos nas tuas velas rotas,
a risada do diabo diante de teus desastres.
Ouve a tua voz entre as massas humanas
que como o mar se tornarão fecundas
e espalharão a palavra do Livro
pelas águas e pelos continentes.


MARTA E MARIA

Tu tens nas tuas mãos as duas irmãs de Cristo:
a que escreve, a que trabalha, a que propaga a palavra
divina, a que louva e proclama a sua glória e a sua
poesia; e a que silenciosamente ampara a tua fronte pendida
onde irão cravar uma coroa de espinhos.


ALTA NOITE QUANDO ESCREVEIS

À senhora Heitor Usai

Alta noite, quando escreveis um poema qualquer
sem sentirdes o que escreveis,
olhai vossa mão – que vossa mão não vos pertence mais;
olhai como parece uma asa que viesse de longe.
Olhai a luz que de momento a momento
sai entre os seus dedos recurvos.
Olhai a Grande Mão que sobre ela se abate
e a faz deslizar sobre o papel estreito,
com o clamor silencioso da sabedoria,
com a suavidade do Céu
ou com a dureza do Inferno!

Poemas de A túnica inconsútil. Ed. Nova Aguilar

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