terça-feira, 6 de março de 2012

ENTREVISTA COM O ROMANCISTA CARLOS TRIGUEIRO



1 – Quando ocorreu seu contato inicial com a literatura? Quais são suas influências literárias e quais escritores contemporâneos você destacaria na cena atual da literatura brasileira?

CT: Meu pai era Mestre de Banda Militar e, quando em casa, costumava cantarolar marchas, canções e dobrados. Versos musicados de Catulo da Paixão Cearense, Olavo Bilac, Evaristo da Veiga, dentre outros, embalaram meu sono e meus sonhos nas redes daquela Manaus do segundo pós-guerra. Por outro lado, minha mãe, nascida e criada à beira de rios e igarapés no interior do Amazonas, costumava recitar, durante as suas fainas domésticas, poemas que exaltavam a vida dos caboclos ribeirinhos e os mistérios e encantos da floresta. Versos do poeta regional, Hemetério Cabrinha, ficaram para sempre na minha memória.  Mas a centelha que deflagrou o meu entusiasmo pela literatura foi o prêmio escolar que ganhei aos 10 anos de idade, já vivendo em Fortaleza, Ceará: “As aventuras de Tom Sawyer – de Mark Twain – o primeiro livro de ficção que eu li –– e também a minha primeira paixão literária.

A leitura apurada de muitos autores, ao longo de pelo menos 50 anos, muito contribuiu na construção do meu fazer literário. Se influência não for a palavra certa, digo que li e reli sem obedecer a nenhum critério, principalmente: Mark Twain, Poe, Hemingway,  Borges, Osman Lins, Kafka, Gabriel Garcia Marquez, José Bergamin, Octavio Paz, Natalia Ginzburg, Balzac, Saramago, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Joyce, Camus, José de Alencar, Proust, Arthur Azevedo. E Maupassant, José Gomes Ferreira, Camões, Goethe, Flaubert, Shakespeare, Moliére, Herman Melville, Euclydes da Cunha, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Lawrence Sterne, Ítalo Svevo, Juan Carlos Onetti, Ernesto Sábato, Salinger, Rui Barbosa, Abade Prévost. E Lope de Vega, Dostoievsky, Pedro Nava, Freud, Camilo José Cela, Juan José Millás, Dickens, Nelson Rodrigues, Eça, Tolstoi, Tchekhov, Gorki, Confúcio, Sartre, Vargas Llosa, Santo Agostinho, Bioy Casares, Moravia. E os escribas que compuseram a Bíblia e “As Mil e Uma Noites”. Quanto à cena atual da literatura brasileira, bons autores há, mas com uma longa escalada para atingir o patamar dos escritores apaixonantes e inesquecíveis.

2 – Em seu livro de contos Confissões de um Anjo da Guarda, você usa a ironia, o humor e o sarcasmo como instrumental lingüístico. Um recurso literário que proporciona no livro como um todo desfechos reflexivos, ou seja, no final de cada conto o leitor é tomado por uma espécie de estranhamento que o leva a inúmeros questionamentos. Comente essa dimensão de sua escrita.

CT: A ironia e o sarcasmo se bem utilizados podem sacudir os credos do leitor. Na nossa cultura religiosa, bíblica e dogmática, onde aparições, milagres e fatos inexplicáveis são amparados por sofismas como “Mistérios da Fé”, julguei o onividente Anjo da Guarda um narrador ideal para avaliar os percalços da condição humana. Assim, os contos narrados pelo Anjo Mahlaliel, contêm uma dialética licenciosa que pode levar um atento leitor à reflexão. Hoje, vivemos sob o domínio das tecnologias, dos automatismos e respostas prontas “on line”, do marketing consumista massificado pela TV, de modo que quase nunca nos observamos interiormente ou olhamos entorno para meditar e refletir sobre esses abismos da alienação contemporânea –– esses vazios de reflexões sobre os desconcertos do mundo.

3 – Como se deu a composição do livro Confissões de um Anjo da Guarda?

CT: Foi lenta, e durou anos. E como a maioria dos meus livros, teve várias formas até chegar à versão que julguei consentânea com a proposta confessional de um Anjo da Guarda. Curiosamente, a única idéia imutável durante a composição do livro, foi a sua capa: um anjo meio ajoelhado e de olhar espantado, escrevendo com uma pena clássica num livrão bem aberto. A figura foi extraída de um detalhe do óleo de 1521, “Madonna com Il Bambino”, do notável pintor veneziano, Lorenzo Lotto, obra da Alta Renascença e que está na Igreja de San Bernardino (Bergamo, Itália). Quando vi a pintura pela primeira vez, há muitos e muitos anos, imediatamente me veio a ideia da capa para o livro. Voltando ao livro em si, convém registrar que “Confissões de um anjo da guarda”, mesmo na versão final, foi recusado formalmente por mais de uma dezena de editoras, até chegar à Bertrand Brasil que o publicou.

4 – No romance Libido aos pedaços temos a temática da sexualidade, das complexas relações familiares em torno do sexo e seus estigmas morais. Como você vê a temática em questão na literatura contemporânea e seu tabu em nossa sociedade? Seria o maior desafio para um escritor que aborda essa temática a banalização que o mesmo tema passa em nossa época?

CT: Os temas da violência, do sexo e das drogas em conjunto estigmatizaram grande parte da literatura contemporânea, e isso se vê nos “best-sellers” nacionais e internacionais. Em geral, são abordagens não distantes daquelas exploradas por meios midiáticos sensacionalistas impressos ou eletrônicos. Claro que vivemos numa época em que a velocidade das inovações tecnológicas impacta os comportamentos sociais, os costumes e a cultura dos povos. Entretanto, no Oriente, parece que filtros culturais milenares ainda preservam a literatura de tais banalizações, mormente em termos de parâmetros da sexualidade. Tenho dito que o próprio sentimento do amor também já se submete, por exemplo, à revolução digital. Sim, antropólogos também dizem que estamos amando pelos dedos. Tanto faz digitar que estamos apaixonados ou que “o nosso amor era pouco e se acabou. Basta clicar “enviar” numa geringonça eletrônica e... pronto. Estamos redimensionando sentimento, distância e tempo simultaneamente para caber tudo nos impulsos e, quem sabe, nos orgasmos informáticos.

Em “Libido aos pedaços” o tema da sexualidade, e, até certo ponto, das drogas, é abordado, digamos, de forma dramática e psicológica, num contexto de romantismo, mas sem falso moralismo, sem apelos a pieguices e sem cair na banalização do “vapt-vupt” sexual. É uma tentativa talvez pretensiosa, de trazer a complexidade das atrações amorosas espúrias, ou seja, no âmbito familiar, para um debate entre especialistas, estudiosos do comportamento humano, ainda que no âmbito ficcional, pois os recursos da ficção literária reluzem matizes pouco ou, talvez, nunca explorados.
Penso que o grande desafio do escritor que aborda essa temática é preservar o papel sagrado do livro. E numa analogia com o que pregava Roland Barthes, o leitor não quer a paixão textualizada em linguagem chula, em palavrório e cicios onomatopaicos a traduzir contrações e ejaculações, mas, sim, a imagem literária da paixão. E isso só é possível construir com recursos e figuras dignos da Literatura maiúscula. Caso contrário, descrições sexíferas, palavrões excessivos, repetitivos ou descabidos (como acontece hoje no nosso Teatro) borram o papel sagrado do livro que, desse modo, vira panfleto de bordel, papel de embrulho, papel ordinário, ou reles papel sanitário.

5 – Qual seria a função da ficção literária em nosso tempo?

CT: Aqui, não sou nada original, e perfilho as idéias de Ernesto Sábato ao dizer que os verdadeiros escritores são aqueles que sentem a necessidade obsessiva de dar testemunho de seu tempo, de seu drama, de sua infelicidade, de sua solidão, de suas fraquezas.  Além disso, considero a ficção literária também uma obra de arte como o teatro, o cinema, a pintura, ou a música. Mas vejo-a ainda como um espasmo doloroso ou prazeroso da alma sob a tônica da efemeridade. E se a literatura de ficção tiver alguma função em nosso tempo ou algum objetivo digno, esse será sempre a constatação da trágica dualidade do homem. Sim, esse ser de carne e osso, magnífico nas suas emoções e paixões, porém corruptível, vil nas suas imundícies e tentações infernais, nos seus pesadelos, assaltado pela consciência da sua precariedade temporal, pela avidez de uma imortalidade inalcançável, e pela constatação do seu destino desesperado, infalível e mortal.
Aliás, no romance “Libido aos pedaços” há muitos e variados diálogos, aforismos e reflexões dos personagens sobre essa precariedade temporal da condição humana. E isso é coerente com os pensamentos acima alinhados, pois vários personagens do romance também são escritores, ou seja, mártires da história, ou como diria Sábato, testemunhas de uma época, mártires de seu tempo.

Carlos Trigueiro, Rio, 06.03.2012.

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