1 – Quando ocorreu seu contato
inicial com a literatura? Quais são suas influências literárias e quais
escritores contemporâneos você destacaria na cena atual da literatura
brasileira?
CT: Meu pai era Mestre de Banda
Militar e, quando em casa, costumava cantarolar marchas, canções e dobrados. Versos
musicados de Catulo da Paixão Cearense, Olavo Bilac, Evaristo da Veiga, dentre
outros, embalaram meu sono e meus sonhos nas redes daquela Manaus do segundo
pós-guerra. Por outro lado, minha mãe, nascida e criada à beira de rios e
igarapés no interior do Amazonas, costumava recitar, durante as suas fainas
domésticas, poemas que exaltavam a vida dos caboclos ribeirinhos e os mistérios
e encantos da floresta. Versos do poeta regional, Hemetério Cabrinha, ficaram
para sempre na minha memória. Mas a
centelha que deflagrou o meu entusiasmo pela literatura foi o prêmio escolar que
ganhei aos 10 anos de idade, já vivendo em Fortaleza, Ceará: “As aventuras de
Tom Sawyer – de Mark Twain – o primeiro livro de ficção que eu li –– e também a
minha primeira paixão literária.
A leitura apurada de muitos autores,
ao longo de pelo menos 50 anos, muito contribuiu na construção do meu fazer
literário. Se influência não for a palavra certa, digo que li e reli sem obedecer
a nenhum critério, principalmente: Mark Twain, Poe, Hemingway, Borges, Osman Lins, Kafka, Gabriel Garcia
Marquez, José Bergamin, Octavio Paz, Natalia Ginzburg, Balzac, Saramago,
Machado de Assis, Graciliano Ramos, Joyce, Camus, José de Alencar, Proust, Arthur
Azevedo. E Maupassant, José Gomes Ferreira, Camões, Goethe, Flaubert,
Shakespeare, Moliére, Herman Melville, Euclydes da Cunha, Clarice Lispector, Fernando
Pessoa, Lawrence Sterne, Ítalo Svevo, Juan Carlos Onetti, Ernesto Sábato, Salinger,
Rui Barbosa, Abade Prévost. E Lope de Vega, Dostoievsky, Pedro Nava, Freud, Camilo
José Cela, Juan José Millás, Dickens, Nelson Rodrigues, Eça, Tolstoi, Tchekhov,
Gorki, Confúcio, Sartre, Vargas Llosa, Santo Agostinho, Bioy Casares, Moravia.
E os escribas que compuseram a Bíblia e “As Mil e Uma Noites”. Quanto à cena
atual da literatura brasileira, bons autores há, mas com uma longa escalada
para atingir o patamar dos escritores apaixonantes e inesquecíveis.
2 – Em seu livro de contos Confissões de um Anjo da Guarda, você
usa a ironia, o humor e o sarcasmo como instrumental lingüístico. Um recurso
literário que proporciona no livro como um todo desfechos reflexivos, ou seja,
no final de cada conto o leitor é tomado por uma espécie de estranhamento que o
leva a inúmeros questionamentos. Comente essa dimensão de sua escrita.
CT: A ironia e o sarcasmo se bem
utilizados podem sacudir os credos do leitor. Na nossa cultura religiosa,
bíblica e dogmática, onde aparições, milagres e fatos inexplicáveis são amparados
por sofismas como “Mistérios da Fé”, julguei o onividente Anjo da Guarda um narrador
ideal para avaliar os percalços da condição humana. Assim, os contos narrados pelo
Anjo Mahlaliel, contêm uma dialética licenciosa que pode levar um atento leitor
à reflexão. Hoje, vivemos sob o domínio das tecnologias, dos automatismos e
respostas prontas “on line”, do marketing consumista massificado pela TV, de modo
que quase nunca nos observamos interiormente ou olhamos entorno para meditar e
refletir sobre esses abismos da alienação contemporânea –– esses vazios de
reflexões sobre os desconcertos do mundo.
3 – Como se deu a composição do
livro Confissões de um Anjo da Guarda?
CT: Foi lenta, e durou anos. E
como a maioria dos meus livros, teve várias formas até chegar à versão que
julguei consentânea com a proposta confessional de um Anjo da Guarda. Curiosamente,
a única idéia imutável durante a composição do livro, foi a sua capa: um anjo
meio ajoelhado e de olhar espantado, escrevendo com uma pena clássica num livrão
bem aberto. A figura foi extraída de um detalhe do óleo de 1521, “Madonna com
Il Bambino”, do notável pintor veneziano, Lorenzo Lotto, obra da Alta
Renascença e que está na Igreja de San Bernardino (Bergamo, Itália). Quando vi
a pintura pela primeira vez, há muitos e muitos anos, imediatamente me veio a
ideia da capa para o livro. Voltando ao livro em si, convém registrar que
“Confissões de um anjo da guarda”, mesmo na versão final, foi recusado
formalmente por mais de uma dezena de editoras, até chegar à Bertrand Brasil
que o publicou.
4 – No romance Libido aos pedaços temos a temática da
sexualidade, das complexas relações familiares em torno do sexo e seus estigmas
morais. Como você vê a temática em questão na literatura contemporânea e seu
tabu em nossa sociedade? Seria o maior desafio para um escritor que aborda essa
temática a banalização que o mesmo tema passa em nossa época?
CT: Os temas da violência, do
sexo e das drogas em conjunto estigmatizaram grande parte da literatura
contemporânea, e isso se vê nos “best-sellers” nacionais e internacionais. Em
geral, são abordagens não distantes daquelas exploradas por meios midiáticos
sensacionalistas impressos ou eletrônicos. Claro que vivemos numa época em que
a velocidade das inovações tecnológicas impacta os comportamentos sociais, os
costumes e a cultura dos povos. Entretanto, no Oriente, parece que filtros
culturais milenares ainda preservam a literatura de tais banalizações, mormente
em termos de parâmetros da sexualidade. Tenho dito que o próprio sentimento do
amor também já se submete, por exemplo, à revolução digital. Sim, antropólogos
também dizem que estamos amando pelos dedos. Tanto faz digitar que estamos
apaixonados ou que “o nosso amor era pouco e se acabou. Basta clicar “enviar”
numa geringonça eletrônica e... pronto. Estamos redimensionando sentimento,
distância e tempo simultaneamente para caber tudo nos impulsos e, quem sabe,
nos orgasmos informáticos.
Em “Libido aos pedaços” o tema da
sexualidade, e, até certo ponto, das drogas, é abordado, digamos, de forma dramática
e psicológica, num contexto de romantismo, mas sem falso moralismo, sem apelos a
pieguices e sem cair na banalização do “vapt-vupt” sexual. É uma tentativa talvez
pretensiosa, de trazer a complexidade das atrações amorosas espúrias, ou seja,
no âmbito familiar, para um debate entre especialistas, estudiosos do
comportamento humano, ainda que no âmbito ficcional, pois os recursos da ficção
literária reluzem matizes pouco ou, talvez, nunca explorados.
Penso que o grande desafio do
escritor que aborda essa temática é preservar o papel sagrado do livro. E numa
analogia com o que pregava Roland Barthes, o leitor não quer a paixão
textualizada em linguagem chula, em palavrório e cicios onomatopaicos a traduzir
contrações e ejaculações, mas, sim, a imagem literária da paixão. E isso só é
possível construir com recursos e figuras dignos da Literatura maiúscula. Caso
contrário, descrições sexíferas, palavrões excessivos, repetitivos ou
descabidos (como acontece hoje no nosso Teatro) borram o papel sagrado do livro
que, desse modo, vira panfleto de bordel, papel de embrulho, papel ordinário,
ou reles papel sanitário.
5 – Qual seria a função da ficção
literária em nosso tempo?
CT: Aqui, não sou nada original,
e perfilho as idéias de Ernesto Sábato ao dizer que os verdadeiros escritores são
aqueles que sentem a necessidade obsessiva de dar testemunho de seu tempo, de
seu drama, de sua infelicidade, de sua solidão, de suas fraquezas. Além disso, considero a ficção literária
também uma obra de arte como o teatro, o cinema, a pintura, ou a música. Mas vejo-a
ainda como um espasmo doloroso ou prazeroso da alma sob a tônica da
efemeridade. E se a literatura de ficção tiver alguma função em nosso tempo ou
algum objetivo digno, esse será sempre a constatação da trágica dualidade do
homem. Sim, esse ser de carne e osso, magnífico nas suas emoções e paixões,
porém corruptível, vil nas suas imundícies e tentações infernais, nos seus
pesadelos, assaltado pela consciência da sua precariedade temporal, pela avidez
de uma imortalidade inalcançável, e pela constatação do seu destino desesperado,
infalível e mortal.
Aliás, no romance “Libido aos
pedaços” há muitos e variados diálogos, aforismos e reflexões dos personagens
sobre essa precariedade temporal da condição humana. E isso é coerente com os
pensamentos acima alinhados, pois vários personagens do romance também são
escritores, ou seja, mártires da história, ou como diria Sábato, testemunhas de
uma época, mártires de seu tempo.
Carlos Trigueiro, Rio,
06.03.2012.
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