quinta-feira, 3 de novembro de 2011

UM ANO SEM ILDÁSIO TAVARES POR DOUGLAS DE ALMEIDA





RESTOS

Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada.

Há um resto de tédio inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia.


Há um resto de mim em toda a parte
Que nunca pude ser inteiramente.



Este poema de Ildásio Tavares, escrito quando o poeta tinha 22 anos de idade e publicado pela primeira vez em 1967 na antológica antologia Moderna Poesia Bahiana (Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro). cai bem para dar início ao meu texto acerca deste poeta, completando hoje exatamente um ano da sua morte ocorrida, dia 31 de outubro de 2010 depois de ser acometido de um AVC e permanecer durante 17 dias no Hospital Jorge Valente.

Falar de ildásio, não é tarefa fácil pois trafegou por diversas áreas da arte e do conhecimento, e inúmeras são as suas facetas, ou melhor (para o espírito do poeta não rimar), inúmeras são as suas fases e faces. Ildásio não foi apenas um escritor, um poeta, professor ou um agitador cultural, Ildásio foi jornalista, ensaísta, tradutor, compositor, foi tudo isto e muito mais. Ildásio se constitui em um documento da cultura baiana,

Ildásio nasceu a 25 de janeiro de 1940 na atual cidade de Gongogi, região do cacau da Bahia, e já morando em Salvador, formou-se em Direito (1962) e em Letras (1968) pela Universidade Federal da Bahia. Fez o Mestrado na Southern Illinois University, o Doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e um Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa.

Lecionou por muitos anos literatura portuguesa no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahiam pela qual se aposentou, e manteve uma coluna de cronicas durante anos no jornal Tribuna da Bahia, porém nos deteremos aqui apenas em sua trajetória de poeta.

E por favor, neste escrito, não me cobrem rigor. Não o leiam como um ensaio, uma reportagem, e sim, apenas como uma lembrança – que estou a compartilhar – escrita às pressas, de um aprendiz de poesia frente a um mestre da palavra.

Ildásio publicou seu primeiro livro de poesia, Somente um Canto, em 1968, e continuou publicando livros de poesia, contos, romance, teatro, ensaios, crítica, alguns destes, com direito a prêmios e traduções.

Neste livro – Somente um canto – e no livro O canto do homem cotidiano, publicado em 1977 (porém com poemas escritos entre 1964 e 1969) seus poemas caminhavam entre o social e o existencial. Não esqueçamos que nesta epoca o Brasil vivia uma Ditadura Militar iniciada em 1964. É deste último o poema Canto do homem cotidiano, do qual veremos um fragmento.

Eu canto o homem vulgar, desconhecido

Da imprensa, do sucesso, da evidência

O herói da rotina,

O rei de pijama,

O magnata

Do décimo terceiro mês,

O play-boy das mariposas

O imperador da contabilidade.

Esse que passa por mim

Que nunca vi outro assim.

Esse que toma cerveja

E cheira mal quando beija

Esse que nunca é elegante

E fede a desodorante

Esse que compra fiado

E paga sempre atrasado

Esse que joga no bicho

E joga a pule no lixo

Esse que sai no jornal

Por atropelo fatal…

Ildásio após estes livros iniciais, foi cada vez mais se distanciando das questões sociais pontuais, aproximando-se dos temas universais, e aprimorando sua poesia, seja ela em versos livres ou formas fixas, a exemplo dos sonetos, dos quais foi exímio artesão. Entre seus outros livros publicados: Tapete do Tempo (poesia, 1980), Poemas Seletos (1986), Nove sonetos da Inconfidência (1999), O Domador de Mulheres (romance, 2003), O amor é um pássaro selvagem (contos, 2004). Em Portugal foi editado Flores do Caos (sonetos, 2008).

Segundo Simone Lopes, no livro Paixão Premeditada (Imago, Rio de Janeiro 2000): a poesia de IT é dramática e grita – desabrida ou veladamente – os infortúnios da existência contemporânea aliando erudição e ousadia. Mais adiante continua: poesia dinâmica que surpreende pela síntese, indo do prosaico ao sofisticado sem perder a pulsação rítmica .

O escritor João Ubaldo Ribeiro disse: seus versos que eu sei e percebo trabalhados minuciosamente, são, não obstante o seu apuro técnico, tão maravilhosamente simples, que parecem, em muitos casos, recolhidos de um cancioneiro popular.

A erudição o refinamento, o rigor em Ildásio não era exibicionismo e sim um preciosismo natural como o brilho esplendoroso de uma pérola na escuridão profunda de um lodaçal. Escreveu baladas, odes, os famosos e temidos epigramas, letras de canções, literatura de cordel, porém sua predileção era pelos sonetos perfeitamente metrificados, que todavia não impediam a troça, o humor, a iconoclastia, Creio que um bom exemplo seja…

SONETOS DA POSSE – I

Jamais amei uma mulher. todas amei

Em uma só; em um só corpo; um só poema.

Paracatá, paracatá, cansou-se o tema,

E este verso francês que já mudei.



E mudo mais. Desde que armar eu sei

Que a poesia pra mim não cria problema

Na verdade, prefiro um bom cinema –

Só um louco armará como eu armei.



Saio admirando o verso do italiano

Para o estilo ficar menos azedo,

Pois toda arma u dia vira o cano.



E o verso entorta. O tema pouco importa –

Mais vale um pássaro a voar que o dedo.

Viva Quevedo: Andrada, abre essa porta!



Como compositor, teve 46 músicas gravadas por Vinícius de Moraes, Maria Bethânia, Alcione, Toquinho, Nelson Gonçalves e Maria Creuza. Entre os seus parceiros estão Baden Powell, Vevé Calasans, Gerônimo e Carlinhos Cor das Águas.



A cultura de matriz africana foi objeto de estudo e fez parte da vida de Ildásio que escreveu os livros Nossos colonizadores africanos, (1995), Candomblés na Bahia (2000). Foi Ogá de Oxum e Obá Aré da Casa de Xangô, do Axé Opó Afonjá, e autor da ópera afro-brasileira “Lídia de Oxum”, com música de Lindembergue Cardoso, regida por Júlio Medaglia, e encenada no Teatro Castro Alves e depois com modificações, levada às margens da Lagoa do Abaeté, em Salvador, para um público de cerca de 30 mil espectadores. Tive o prazer de assistir a ambas.



Porém como ele mesmo em vários momentos declarou: em tudo que fazia o que prevalecia era a poesia. O poeta era maior que o ensaíasta, o romancista, o dramaturgo, o encenador.

Escrevi no início que Ildásio Tavares era um documento da cultura baiana e sua obra, um monumento. Alguns podem perguntar: um monumento? Sim, um monumento. Tanto quando Jorge Amado, Dorival Caymmi, eu vejo Ildásio à mesma altura só que de forma subterrânea, difundindo a cultura baiana através dos seus livros – romance, contos, poesia, ensaio – mas também através dos seus ensinamentos e da obra dos seus alunos, dos seus colegas compositores como os já citados Vevé Calasans e Gerônimo.

A obra de Ildásio é vasta e reflete a diversidade étnico-cultural da nossa Bahia – vai do popular ao erudito, do chulo ao refinado, transita pela África e Europa, é tradição e transgressão. É um vasto mundo que precisará de tempo para desbravar.

O leitor já teve ter percebido o caráter apologético do meu escrito e pode questionar. Só tem coisas boas neste tal de Ildásio? Outros dirão; Ah! Mas ele era inconveniente, agressivo, mal educado com as pessoas… desrespeitava os colegas de profisão com seus epigramas.

Entrevistado pela revista Metropóle, acerca da repercussão dos seus epigramas, respondeu que preferia perder um amigo do que deixar de produzir um artefato literário. Não esqueçamos que o epigrama faz parte da literatura, também é tradição.

Sim, Ildásio também era odiado, tanto que ao seu enterro não compareceram a grande maioria dos seus colegas de profissão e geração, salvo raríssimas exceções como o escritor Joaci Góes e a poeta Myriam Fraga, todavia o Cemitério do Campo Santo ficou lotado com músicos, compositores, cineastas, o povo do candomblé, além dos amigos e dos parentes – e rolou música e poesia.

Conversando ao telefone com o poeta Adelmo Oliveira, este declarou: Ildásio era uma grande figura humana, certo que era difícil a convivência, pelo seu temperamento bipolar, porém temos em algum momento de respeitar a loucura das pessoas, ter a humildade de reconhecer o grande poeta e crítico literário que era. Por estarmos próximos só reconhecemos os defeitos.

Sim, Ildásio era mau, agressivo, desrespeitoso, inconveniente, agressivo, mal educado, porém acredito esta faceta ser uma máscara. Creio ter ele confeccionado uma capa para camuflar seu outro lado: o dócil, o amável, o generoso. Sim… Ildásio era dócil, amável, generoso… afinal mais do que um professor, Ildásio foi um educador, e um educador...

Quantos jovens passaram “uma tarde em Itapoan” na casa de Ildásio aprendendo a escandir um verso. Com a palavra, os poetas Gustavo Felicíssimo e José Inácio Vieira de Melo, este último, autor de um dos livros – Roseiral – que mais me tocaram recentemente e que Ildásio, com certeza, aplaudiria.

Ildásio com sua generosidade, abrigou Antonio Carlos e Maria Creuza em seu apartamento e os apresentou a outro músico, estimulando a criação de uma das duplas mais importantes da MPB; Antonio Carlos e Jocafi.

Ainda ao telefone com Adelmo, este declarou Ildásio ter contribuído para a publicação de livros de diversos poetas, a exemplo dele próprio com seu livro Canto Mínimo que Ildásio publicou pela Editora Imago juntamente com diversos outros autores baianos – poetas e prosadores. O seu CD, Canto de Magia, Ildásio incorporou o projeto e arregimentou intérpretes como Margareth Castanheiro. O poeta arremata: ainda há de ser reconhecido o trabalho de Ildásio, a sua importância como intelectual, Só o tempo vai dizer.

E o bardo era um paizão – tinha três filhos e três filhas – preocupado em fazer o melhor. Que o diga seu filho Ildázio Jr. que em seu blog agradeceu o pai ter estimulado a leitura e o aprendizado da língua inglesa, tão importante em sua vida profissional de produtor cultural.

Que o diga seu filho Gil Vicente Tavares, hoje ocupando alguns espaços como dramaturgo e diretor graças aos ensinamentos do pai que o estimulou até pelo nome que o deu.

Que o diga a sua filha Jéssica, que mesmo só a conhecendo quando já adolescente, a assumiu, deu-lhe teto e abriu-lhe todas as portas possíveis …

Ildásio, já com cabelos ralos e barriga destruidora de cintos, contnuou jovem e rebelde qual um Rimbaud capoeirista sempre à procura de alguém para dar uma rasteira ou uma cusparada... porém já não tenho mais tempo nem inspiração para continuar.

Ildásio nos deixou no dia 31 de Outubro de 2010, aos 70 anos, por conta de um quadro grave de Acidente Vascular Cerebral, que resultou em uma falência múltiplas de órgãos. Seu médico e amigo Dr. Heraldo Moura Costa, declarou ele ter dado entrada no Hospital Jorge Valente na terça-feira dia 26 de outubro, já com um quadro grave.

Ildásio nos deixou… mas ficou… com seus livros de poemas, suas canções, seus ensinamentos… e filosoficamente em um perfeito soneto que dizia…


Quando eu morrer e reverter ao chão,
não profiram discursos nem louvores
se acaso tive glória ou tive amores,
não sepultem o passado em meu caixão.

Não quero missa, prece ou oração;
nem sufoquem meu corpo sobre flores;
não levem ao cemitério pranto ou dores,
quer seja de saudade ou de paixão.

Recitem versos, cantem melodia
não fui senão poeta em minha vida,
girando dentro em mim qual caracol

Terei mais luz no derradeiro dia,
um cruel esplendor na despedida
poesia enchendo o túmulo de sol.

Um comentário:

  1. Hilton,

    Veja este soneto da posse, por exemplo:

    Jamais amei uma mulher. todas amei
    Em uma só; em um só corpo; um só poema.
    Paracatá, paracatá, cansou-se o tema,
    E este verso francês que já mudei.

    E mudo mais. Desde que armar eu sei
    Que a poesia pra mim não cria problema
    Na verdade, prefiro um bom cinema –
    Só um louco armará como eu armei.

    Saio admirando o verso do italiano
    Para o estilo ficar menos azedo,
    Pois toda arma u dia vira o cano.

    E o verso entorta. O tema pouco importa –
    Mais vale um pássaro a voar que o dedo.
    Viva Quevedo: Andrada, abre essa porta!

    Conversava ontem com uma amiga sobre ele. Dizia-lhe que este "jeito maroto" de fazer um poema sério é uma forma antitética bem típica de Ildásio; que vem de uma tradição que já remonta o bom e velho Gregório de Matos.

    Em breves saltos líricos, ele faz várias incursões por inúmeras vertentes de nossa tradição ibérica, por exemplo.

    É sensual... é. Mas não perde a veia sátira. É soneto, mas não abre mão de seus prosaísmos.


    "É" um grande poeta...

    Abraços amigo,

    Silvério Duque

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