Sei teu grito profundo, e não me animo
a cortar a raiz que aTi me embasa.
Em mão mais primitiva não me arrimo
devo-Te tudo, origem, patas e asas.
Permite que eu revele história e limo
sem desobedecer a Tua casa.
Nazareno dos lagos, lume primo,
atende à pobre enguia de águas rasas.
Se desses versos outro lume alar-se
misturado com os Teus em joio e trigo,
sete vezes por sete me perdoa.
Ó Desnudado, é meu todo o disfarce
em revelar os tempos que persigo
– na vazante maré com inversa proa.
***
Eu te sinto pecado original
não só corroendo ainda os meus tecidos
porém intumescendo-me com a lava
do orgulho em que um arcanjo se abrasou.
Para me dominares a alma escrava
entorpeces-me todos os sentidos,
crânio, tórax, abdômen, membros, sexo,
tudo é uma gorda empola alta e convexa.
Mudas depois meu crânio, tronco e membros:
a boca em tromba, espádua em asas negras
sorriso, em gargalhada má. Lusbel,
vês que a minha figura se assemelha
à tua, tu que foste o meu modelo
orgulhoso da luz que me cegou.
Destinado a pequenas notas de livros didáticos criminosos, pondo-o como um poeta menor e sem interesse, e que chegam às mãos de milhões de alunos de todo o Brasil, limitado-o apenas a uma Negra Fulô insípida, Jorge Mateus de Lima (1893-1953) é, ao lado de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, considerado por muitos, um dos poetas mais representativos de todo o Modernismo Brasileiro, mas, ao contrário dos outros dois, sua poesia é, sem sombras de dúvidas, a mais intelectual e a mais profundamente formal de todo o século XX, igualando-se apenas a Fernando Pessoa, em Portugal, e Bruno Tolentino, aqui, no Brasil.
ResponderExcluirTodavia, passados mais de 50 anos de sua morte, nem um grande poeta foi tão boicotado, tanto na influência, como em sua importância, quanto este alagoano de União, e a crítica literária brasileira dos últimos 50 anos, medíocre e despreparada – com raríssimas exceções, é claro – tem sido segundo César Leal (um dos que fazem parte das exceções), em seu maravilhoso Os cavaleiros de Júpiter, a principal responsável por tal desprezo, pois muito mais interessados com os processos econômico-sociais do País, deslocam todo o seu interesse àqueles autores que, imbuídos de semelhante pensamento, têm sua participação mais intensa nesta “tomada de posição”, cujo resultado não poderia ser outro, senão um barbarismo estilístico parasitório que só o pensamento marxista poderia construir, o qual, infelizmente, tem sido a face mais conhecida não só de nossa crítica literária, mas de todo o “pensamento intelectual” brasileiro até os dias de hoje. Jorge de Lima, maior do que tudo isso, produz uma desdobrável visão da realidade, que é uma função essencial de todo grande poeta, realizando o milagre da fusão temporal, embora sinta a necessidade sempre urgente de transcrevê-lo, no dizer de Murilo Mendes, produzindo uma poesia do Espírito, no sentido mais autêntico do termo.
Por estas razões, também, que não é de estranhar que os nossos críticos comunistas e os ditos poetas que nunca fizeram um soneto (não pelo facto de não gostarem, mas pela incapacidade de fazê-lo) sejam incapazes de compreender uma poesia elegante e de tão grande alcance intelectual como a de Jorge de Lima. Sabendo que o Cristianismo, principalmente o Cristianismo Católico Europeu, está na essência mesma da Cultura Brasileira e que a Bíblia nada mais é do que o principal Mito Fundador da Cultura Ocidental, Jorge Mateus de Lima é para Literatura Brasileira, um pilar fundamental e, por isso mesmo, indispensável, na compreensão não só de a nossa cultura, mas do muito de tudo aquilo que a antecede, pois o bardo alagoano nada mais é que uma síntese de toda a Literatura Universal, além de ser um dos poetas brasileiros que, logicamente, melhor compreendeu Dante Alighieri e Luis de Camões, como a própria História do Cristianismo.
Quem duvidar, por favor, leia a obra de Jorge de Lima, mas vou logo avisando, é preciso ser um iniciado em muitas dessas coisas, para não acabar no time de ignorantes, que há mais de meio século, compõe nossa Crítica Literária:
SONETOS GÊMEOS
Se me vires inúmero, através
deste poema, entre as coisas e as criaturas,
como se eu próprio fosse o que ontrem é,
dissipado nas páginas impuras,
arrebatado pelo próprio poema,
possesso, surpreendido, fragmentado,
travestido de herói ou de réu, em
quase todos os versos degredado,
negarás, meu irmão, a alma que vive
perdida na ansiedade de si mesma
sonhando a paz, querendo a paz; a paz
até na álgida paz da insânia, Deus
me busca para ser o seu convulsivo
a amado filho em torno de quem crês
morar a paz que Ele destina viva
a todo aquele que lhe faz perguntas.
Eis as respostas nessas vozes gêmeas,
deblaterando sobre o seu defunto,
sobre seu louco, sobre o seu recente
corpo hoje inda nascido e já julgado
e já descido, e já movido nesses
campos da morte, sob os passos, pássaros,
aos ventos indo, sob as noites gastas
passos sobre as caliças, sob os gestos,
sob as bocas sem choro, em seus nadas.