quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

CORNÉLIO PENNA: A MENINA MORTA III

(Munch)

Por entre os arbustos do jardim que ficava sob as janelas dos quartos de dormir via-se passar lentamente na luz indecisa da manhã, parando aqui e ali, uma moça feia e vestida de luto. O dia surgira timidamente, envolto em grandes nuvens muito brancas e enoveladas no horizonte em grandes reservas, vindas de longe, de grande batalha fantástica cujo canhoneio de velhas peças de bronze cessasse subitamente, sustido por mão divina, e tudo parara até mesmo o céu. Trazia grande cabaz tecido de palha sem tampa e nele depositava devagar as flores que colhia com extremo cuidado, para evitar que se perdesse uma folha ou qualquer pequeno ramo que fosse, das plantas vergadas quando tentava torcer as hastes mais resistentes.
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O canto dos pássaros, àquela hora ainda abrigados nas copas das árvores, chegava-lhe aos ouvidos em música longínqua, muito calma, e os mugidos dos bois que eram levados para o pasto depois do exame e do tratamento ao qual deviam ser submetidos todas as madrugadas, faziam um fundo majestoso e solene ao cântico da natureza mal desperta que lhe embalava o coração e a fazia respirar amplamente, como se quisesse se integrar naquela festa de saúde e de força.

Instintivamente, sem o perceber, ela murmurava as orações que devia dizer lá na Capela. Prometera bem no íntimo de sua alma rezá-las todos os dias para livrar-se dos sentimentos estranhos que sentia ocultos dentro de si, aprisionados pelo próprio terror por eles inspirado, mas que sabia estavam bem vivos e latentes, tal tumor maligno a espera de instante propício para irromper sem piedade e matar...

Fechava os olhos e sacudia a cabeça para negar a verdade que a acompanhava por toda a parte, e muitas vezes sua respiração se tornava precipitada e ofegante fazendo com que olhassem com admiração e desconfiança, pois parecia de súbito extremamente cansada como se tivesse vindo de muito longe, apesar de ter estado sempre no mesmo lugar. Mas agora estava esquecida, e o sorriso que lhe entreabria os lábios era triste, cheio de ternura, pois formava aos poucos o projeto de fazer com aquelas rosas desabrochadas e as pequeninas dos buquês-de-noiva, grande grinalda muito linda igual às que via sempre de porcelana mate, suntuosas e muitos compostas, guardadas em grande caixas de papelão enviadas de Paris e que lá estavam em depósito na arrecadação, à espera do Dia de Finados. Aquelas, com sua pompa um pouco fria, com as cores desmaiadas do colorido artístico eram bem próprias para a ornamentação arrogante das sepulturas dos senhores, porém a coroa que iria fazer, muito frágil, efêmera e bela, não teria outra igual para a pedra da parede onde havia apenas escrito à tinta o nome da menina morta.

A menina morta. Ed. José Olympio

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