sábado, 28 de novembro de 2009

JORGE DE LIMA: A ESSÊNCIA CRISTÃ DA POESIA


TARDE OCULTA NO TEMPO

O andarilho sem destino reparou então
que seus sapatos tinham a poeira indiferente
de todas as pátrias pitorescas;
e que seus olhos conservavam as noites e os dias
dos climas mais vários do universo;
e que suas mãos se agitaram em adeuses
a milhares da cais sem saudades e amigos;
e que todo o seu corpo tinha conhecido
as mil mulheres que Salomão deixou.
E o andarilho sem destino viu
que não conhecia a Tarde que está oculta no tempo
sem paisagens terrenas, sem turismos, sem povos,
mas com a vastidão infinita onde os horizontes
são as nuvens que fogem.


ACEITO AS GRANDES PALAVRAS

Aceito as grandes palavras eficazes
e os caminhos que Deus pôs diante de mim.
Aceito o sangue derramado se é necessário
para levantar o pobre.
(Minha meditação me queima, Senhor!
Mas me deixai falar para me desafogar.)
Aceito a oração para mim e para distribuí-la como pão.
(Minha meditação me queima, dai-me água
para me dessedentar.)
Aceito a não importância da vida.
(Senhor, pegai minha mão para não me matar.)
Aceito os dias com seus cinemas, seus bonds,
seus flirts, suas praias de banho, sua atualidade.
Mas deixai-me ver no meio dessa conturbação
o que está acima do tempo, o que é imutável.
Senhor, estou cansado, quero descansar.


SOU PARA ME SALVAR SOBRE AS TÁBUAS DA LEI

Não sou só para comer trigo.
Sou para cair e para me levantar,
para viver e para não ligar à vida
nem à morte nem ao tempo
nem às águas paradas
que apodrecem dentro dele.
A mansão de meu pai tem muitas casas:
a nostalgia dessas casas mora em mim.
Sou para procurar roteiros no mar,
para me arrepender e me salvar,
para anunciar como um profeta
e negar três vezes antes do galo cantar.
Sou para me enlamear no mundo e para me lavar na luz.
Sou para me afundar nos pecados mortais.
E para me salvar sobre as tábuas da Lei.


O POETA VENCE O TEMPO

Já não vejo mais a paisagem de plantas carnívoras.
Levadas pelos riachos a água velha canta de novo.
A relva ignora sua tragédia e alteia as folhas inocentes.
Regresso ao teu tempo, Davi.
Como tu tenho harpa e tenho Deus.
E num dia Bíblico assim
fora dos tempos duros
posso voltar às origens,
e sentir como tu
que sou mais forte que o rei,
mais forte que todos os Golias.
Mas não sei como tu
distinguir se essa estrela claríssima
é a estrela da manhã
ou se é mesmo a poesia
que nós vemos no céu
– antecedente e posterior a tudo.


OS QUE VIRÃO NOS CAMELOS

Pobres de espírito os que julgam a Lei pelos homens da lei,
a Igreja pelos homens da Igreja,
a eternidade por um trapo de tempo.
Pobres os que não têm perspectiva
e são fortes de ódio para dominar.
Pobres os que iluminam os falsos dias
e são fugazes como as tempestades.
Pobres os que enfraquecem o espírito
e não têm joelhos para ajoelhar.
Pobres os que não passarão
onde os camelos atravessarão.
Pobres os que não vêem o que ficou atrás,
e o que há de vir, quando as portas baterem.
Pobres os que não conhecem
um minuto sequer de poesia.
Pobres esses pobrezinhos.
Misericórdia, Senhor, para esses pobres.


O TORMENTO

Na sétima lua edifiquei a porta grande da casa do Senhor
e mandei traçar nos muros exteriores os exemplos do céu.
E ensombrei de nuvens gordas o recinto dos povos.
Quebrei as estátuas de Baal, para evitar as calamidades surdas,
equipei as frotas sagradas e mandei-as partir:
renovei a aliança com a suprema Presença,
e ela uma noite me ofereceu um sinal.
Compreendi a grande significação dos mistérios
para saber que nesse mundo apagado,
as verdades são nulas, o real está além.
Mandei buscar num país muito longe
o filho dum ourives para gravar silêncios.
Abri o livro diante do povo
pensando que o povo estava no nível do Alto.
Mas o povo não pôde enxergar os silêncios do livro.
Nem suportar a claridade esquisita que das páginas saía.
Baixei a cabeça no maior dos desânimos.
E o tempo me chamou para morrer.
A eternidade me chamou para viver: irei.

(Poemas de Tempo e Eternidade. Ed. Nova Aguilar)

2 comentários:

  1. Essencial, a poesia de Jorge de Lima, Hilton. Que bela seleção.

    Abraços

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  2. Nydia, é uma pena que esse grande poeta esteja de certa forma esquecido nos meios literários. Ainda vou postar uma seleção do livro A túnica inconsútil e do livro de sonetos. Um abraço fraterno.

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