domingo, 22 de novembro de 2009

OS GRANDES ESQUECIDOS: UMA CONVERSA COM JOAQUIM BRASIL FONTES SOBRE LÉON BLOY, CHARLES PÉGUY, BERNANOS, MAURIAC E PAUL CLAUDEL


Duas ou três coisas que sei sobre eles...



Bloy, Péguy, Bernanos, Mauriac, Claudel... Os autores sobre os quais você me questiona não figuram entre os meus preferidos, mas eu os li, e muito, na adolescência, graças aos acasos das traduções e das bibliotecas: eles circularam, no Brasil, entre os leitores da geração anterior à minha, e estavam ao alcance da mão, por assim dizer, nas estantes de livros de nossos tios, pais e vizinhos cultos. Nas Alianças Francesas, onde, na época, era de bom-tom aprender o francês, aqueles autores se impunham como uma espécie de reserva moral e patriótica da velha Gália: o establishment literário os tinha enfim incorporado, embora eles fossem maiores e melhores do que ele.

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Léon Henry Marie Bloy (1846-1917) e Charles Péguy (1873-1914) são ainda homens do século XIX, se aceitarmos a tese de Hobsbawn, segundo a qual o século XX começa com a Primeira Grande Guerra. Léon Bloy participou, aliás, do conflito franco-germânico de 1870, que abre simbolicamente, no século XIX, a primeira grande crise do capitalismo europeu. Católico fervoroso, era amigo de Barbey d’Aurevilly e de Villiers de L’Isle-Adam, típicas figuras do fin-de-siècle francês. Dizia escrever “para Deus somente” e aguardava, nos últimos anos de vida, “o advento dos cossacos e do Espírito Santo”. Um apocalíptico, em suma. Mas também “um entrepreneur de démolitions”, como ele a si mesmo definia.
Deixou novelas e um diário em oito volumes, os dois últimos significativamente intitulados Au Seuil de l’Apocalypse e La Porte des Humbles.

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Deleuze fala rapidamente de Péguy em Diferença e Repetição, mas lhe dá um lugar de honra na estruturação dos conceitos do seu livro: evocando o “tríptico do pastor, do anticristo e do católico” (Kierkegaard, Nietzsche e Péguy), o filósofo observa que cada um dos três, à sua maneira, fez da repetição não só uma potência própria da linguagem e do pensamento, um pathos e uma patologia superior, mas também a categoria fundamental da Filosofia do futuro. A cada um daqueles homens corresponderia um Testamento e um Teatro, uma concepção do teatro e um personagem eminente nesse teatro, como herói da repetição; o de Péguy seria Joana D’Arc/Clio: a mulher cristã-soldado-inspirada por Deus e a Musa da História. Jeanne D’Arc e Clio são, aliás, os títulos de duas obras de Péguy, não sei se já traduzidas para o português.
Se o admirador da poésie pure permanece reticente diante da poesia de Péguy (retórica, mística, talvez grandiosa demais, patriótica, fruto da obra literária concebida como apostolado), não creio que não se possa negar o valor de sua poética como um todo, sobretudo se nos voltarmos para os seus admiráveis Mystères, composições inspiradas na Idade Média, mas de um barroquismo impressionante.

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Os autores sobre os quais você me questiona pertencem ao bloco, muito coerente, da literatura católica francesa na primeira metade do século XX e fazem parte, em geral, de um movimento de renovação do pensamento religioso contra os conservadores, a política de adesão ao Estado, contra o bersgonismo, a censura papal e sobretudo contra a “Action Française” positivista e reacionária. Talvez fosse interessante acrescentar a eles o nome de Jacques Maritain, que marcou a juventude do período entre-guerras e cruzou, em certo momento, o caminho do irrequieto Jean Cocteau. Seria interessante estudar, aliás, um certo catolicismo “mundano” e “programático” que vicejou naquele momento... Fica para outra ocasião.

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François Mauriac, nascido em 1888, sobreviveu à sua própria época atormentada e já era póstumo de si mesmo quando morreu em 1970: a literatura francesa e universal haviam tomado, depois da Segunda Guerra Mundial, rumos nos quais ele não conseguia se engajar.
Mauriac é o grande representante do romance psicológico francês, e sua obsessão central é a do pecado, que é sempre o “pecado da carne”. Carpeaux dizia, com uma ponta de ironia, que a tentação era para ele mais do que um tema: era própria razão de ser do romance católico.
Mauriac é um mestre ao pintar “a miséria da criatura humana sem Deus”: aquela que é talvez sua obra-prima, Thérèse Desqueyroux (1926), esboça, de forma exemplar e com rápidos traços, o caso de uma jovem provinciana movida pela tentação do crime. Tudo, nessa novela, acontece nos limites da tragédia cristã. (Depois de tanto tempo, me vem a vontade de reler este livro.)
Os romances de Mauriac, impregnados de fé e desespero, têm, contudo, uma formatação clássica. A narrativa densa e breve, num ritmo ascendente que enfeitiça (ou enfeitiçava... ). São histórias de crises e seu locus favorito é a província, onde não há, talvez, para as “almas pecadores” divertimento melhor do que o mergulho nos abismos do coração e a entrega temerosa e gozosa às tentações do demônio da carne.

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Georges Bernanos é outro escritor dominado pelo pathos católico, embora sem as sutilezas cruéis e a fineza estilística de um Mauriac: em narrativas às vezes caóticas (para o apreciador dos clássicos) ele apresenta seus heróis enfrentando as forças do Mal, e a maiúscula, aqui, se impõe: o pecado original teria submetido o homem, para sempre à potência de Satan. Um dos livros mais conhecidos de Bernanos tem por título, aliás, Sous les Soleil de Satan, narrativa apaixonada dos tormentos de um padre dividido entre o amor de Deus e a tortura do desespero. Outra obra sua, antigamente muito lida, foi levada ao cinema por Bresson: Le Journal d’un Curé de Campagne.
E não nos esqueçamos da outrora famosíssima peça de teatro O Diálogo das Carmelitas, também filmada, com Jeanne Moreau num dos papéis centrais. Foi traduzida para o português nos anos 60, numa coleção da antiga Editora Agir, que nos deu de presente, aliás, outras obras de Claudel e Bernanos.

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Deixei para o final, propositalmente, Paul Claudel (1869-1955), com certeza a maior e a mais brilhante entre as cinco estrelas que você menciona. E a mais contraditória, sem dúvida.
Contam que Apollinaire, um dos meus poetas favoritos, havia mandado gravar na porta do seu estúdio parisiense estas palavras: “Se você não aprecia Claudel, entre sem bater”. Pode ser que, mais do que ao poeta, Apollinaire estivesse tentando exorcizar – no umbral do seu território espiritual – o “bom católico”, o patriota, o embaixador da França, o burguês de quem, para muitos, Paul Claudel ainda é o emblema.
Numa entrevista concedida a um jornal italiano em 1925, Claudel, na época embaixador da França no Japão, havia declarado:

“Quanto aos movimentos (literários) atuais, não há sequer um que possa conduzir a uma verdadeira renovação ou criação. Nem o dadaísmo nem o surrealismo, cujo significado é apenas pederástico.
Muitos são os que se espantam, não de eu ser um bom católico, mas de ser ao mesmo tempo escritor, diplomata, embaixador da França e poeta. Mas eu não acho nada disto estranho. Durante à guerra fui à América do Sul a fim de adquirir trigo, carne congelada e toucinho para o exército e dei a ganhar duzentos milhões ao meu país”.

Os surrealistas endereçaram então a Claudel uma resposta que ficou famosa. Dou, abaixo, alguns excertos, exatíssimos no tom e na dissonância:

“Pouco nos importa a criação. Desejamos, com todas as nossas forças, que as revoluções, as guerras e as insurreições coloniais acabem por aniquilar esta putrefata civilização ocidental que V. defende até no Oriente e declaramos que esta destruição é o estado de coisas menos inaceitável para o espírito.

(...)

Só se mantém de pé uma idéia moral que impede, por exemplo, que se seja ao mesmo tempo embaixador da França e poeta.

(...)

Aproveitamos este ensejo para nos dessolidarizarmos publicamente com quanto for francês, em palavras e em ações.

(...)

Um singular desconhecimento da capacidade e das possibilidades do espírito exige que canalhas da vossa espécie procurem periodicamente a sua salvação numa tradição católica ou greco-romana. A salvação para nós não está em nenhum lugar. Nós consideramos Rimbaud como um homem que desesperou da salvação e cuja obra, como a vida, são verdadeiros testemunhos de perdição. Catolicismo e classicismo greco-romano, nós os deixamos à vossas infames beatices. Bom proveito lhe façam; engorde mais, rebente com a admiração e o respeito de seus concidadãos. Escreva, reze e babe-se; nós reclamamos a desonra de o ter tratado de uma vez por todas de pedante e de canalha”.

É sintomática a referência, nesta carta, à figura emblemática de Rimbaud, que os surrealistas reivindicavam como um dos seus mais brilhantes faróis, ao lado de Lautréamont.
Claudel havia descoberto a obra de Rimbaud em 1886, quando tinha 17 anos de idade. Foi imediatamente enfeitiçado por ela. Seis meses mais tarde, ouvindo um Magnificat na Catedral de Notre-Dame, em Paris, o jovem poeta se converte definitivamente ao catolicismo: “En un instant” – escreveria ele mais tarde – “mon coeur fut touché et je crus”.
Me permita sublinhar esse “en um instant”: a conversão de Claudel tem o caráter de uma iluminação de Rimbaud.

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Poeta lírico e dramaturgo, Claudel traz na sua escritura ecos da Bíblia, da liturgia, da tragédia grega, de Shakespeare. Seu verso tem uma força extraordinária, um sopro que toma conta do leitor/ouvinte. Não deixe de ler Cinq Grandes Odes suivies d’um Processionnel pour saluer le siècle nouveau, de 1910. Não deixe de ler Le Soulier de Satin, um oratório escrito em 1921 e encenado em 1943, durante a guerra.

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Quando Claudel morre, em 1955, a literatura francesa e a universal haviam passado por uma revolução extrema. A guerra havia varrido a Europa, literalmente, de seus valores culturais, espirituais, e ameaçava sua herança. Desponta a literatura chamada existencialista, à qual Camus às vezes é assimilado. O teatro de Jean Genet abala a cena francesa. Kafka é finalmente traduzido e lido com paixão pela juventude. Inaugura-se o teatro do absurdo. Em breve, uma nova geração domina o palco e o romance chamado de “novo” perspectiva o mundo do ponto de vista do objeto. É o momento de Robbe-Grillet.
Morte do autor, do personagem e, dizem, do próprio romance.

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Examine estas palavras: tentação, graça divina, o Mal, com a necessária maiúscula... E pecado. Que sentido tem a noção católica de pecado para o homem de hoje?
Sim, os autores sobre os quais você me questiona pertencem a um mundo para sempre perdido.

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