quarta-feira, 18 de novembro de 2009

ENTREVISTA COM O POETA CLÁUDIO NEVES


1) Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?


Comecei a ler poesia meio tarde, com mais de quinze anos. Os primeiros autores sobre os quais me debrucei mais detidamente foram Camões e Vinícius, mas acho que me tornei um efetivo leitor de poesia a partir da descoberta de Pessoa, alguns anos mais tarde. Também comecei a escrever tarde, com dezoito ou dezenove anos, na Faculdade. Minha expressão, desde criança, sempre foi o desenho. Não digo que me tornar escritor tenha sido exatamente um acaso, mas uma surpresa.


2) Como é seu procedimento ao escrever um poema?


Não creio que tenha o “método”, mas o “hábito” de fazer pequenas anotações manuais ou diretamente no computador. Coisas soltas – às vezes um verso, uma imagem, uma idéia. Volto às anotações dias depois, quase sempre nos finais de semana. O que resulta disso é uma “primeira forma” do texto. Depois, posso passar semanas, meses, até que o dê por resolvido. Agora é lógico que há textos que já surgem quase prontos e outros que não andam de jeito nenhum.


3) O que é poesia para Cláudio Neves?


É uma forma de expressão eficiente. Pode parecer pouco, mas, de fato, não é. Não partilho a idéia de que a poesia é mais “nobre”, se é que esse conceito realmente existe, que a prosa, por exemplo. É tão eficiente quanto. Como, apesar de também escrever prosa, não me considero um prosador no sentido maior do termo, então, quando digo que a poesia é “eficiente”, digo que o é para mim. É a forma de arte em que me expresso melhor.

4) Comente sobre as características poéticas presentes em seus dois livros.

Publiquei o primeiro, De Sombras e Vilas, com 39 anos. Passei quase uma década acrescentando e retirando textos. A primeira parte é de poemas “suburbanos”, de viés memorialista e, muitas vezes, narrativo. Há um segundo ciclo de poemas chamado De sombras e gatos (que originalmente dava nome ao volume). A seção Os Construtores traz dois poemas que integram um livro de mesmo nome, ainda por publicar. E a seção final é uma reunião de poemas soltos, escritos em épocas distintas. O livro mais recente, Os Acasos Persistentes, é mais conciso, foi concebido quase que como um único texto. São variações sobre o amor, a morte, mas talvez o tema central seja, como disse o Antonio Carlos Secchin na contracapa, o embate entre a memória e a dissipação. Creio que, nesse segundo livro, minha sintaxe está mais homogênea, mais ajustada a seus objetivos. Quanto às características, creio que permanecem as mesmas. No plano temático, a memória, a especulação metafísica. No plano formal, a utilização de formas regulares ou semi-regulares, a busca por uma expressão cada vez mais “justa”.

5) Sua poesia parece transitar entre uma dimensão meditativa onde a linguagem busca continuamente a concisão, mas sem abrir mão de certo lirismo. Como você vê essa questão?


Tenho quase uma obsessão pela clareza. Sempre admirei a poesia em que os objetos são bem recortados. Se alguma coisa sobra no texto, é porque não deve permanecer nele. Tenho ainda um natural repúdio à poesia obscura, hermética, bem como a beletrismos. Também não vejo função numa poesia auto-referencial, ou seja, aquela em que o leitor tenha de ter lido outro autor (muitas vezes menor) ou uma dúzia de outros textos para entender uma analogia, uma ironia. E também não partilho a crença de que a poesia seja o principal tema da poesia. Tudo isso – o recorte impreciso, o hermetismo da linguagem e a crença nos metapoemas – , na minha opinião, tornou certo tipo de poesia uma espécie de ritual para iniciados, sem qualquer vínculo com a realidade. Você termina de ler a imensa maiores de textos contemporâneos e se pergunta: mas, afinal, sobre o que li? Há grandes poetas etéreos? Claro. Cecília Meireles é um bom exemplo. Mas, quando Cecília propõe uma imagem que expresse sentimentos indefinidos, essa imagem é justa, justíssima. Porque o sentimento ou a idéia podem ser hesitantes; a metáfora, não. Por outro lado, sempre tive a intuição de que há um certo limite de concisão além do qual cessa o efeito poético (para usar a expressão consagrada por Edgar Poe para designar a súbita comoção do leitor perante a obra). Então a questão de fundo é achar esse justo-meio na abordagem e, sobretudo, na sintaxe. Tento, não sei se com sucesso, adotar uma expressão substantiva e um registro que, sendo “literário”, não seja rebuscado. Por exemplo, procuro me manter sempre na ordem direta, no que diz respeito à estrutura dos períodos, e apenas o faço se o resultado soar natural, sóbrio.


6) Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?


É sempre difícil e perigoso falar de autores contemporâneos. Considero-me um bom leitor, talvez melhor leitor que escritor, mas não consigo acompanhar o ritmo, cada vez mais intenso, das publicações. Assim, só posso falar sobre os autores que conheço e que serão, obviamente, uma parte ínfima do se escreve em poesia no Brasil hoje. Acho que a poesia brasileira hoje tenta recuperar o que mais perdeu nas últimas décadas – leitores. A Poesia Concreta, que terá claro alguma validade histórica, foi, e é, pouquíssimo lida. No Plano Piloto, os concretistas falam em fim do ciclo histórico do verso, e o verso, como expressão rítmica, continua sendo escrito. Os próprios concretistas o praticaram posteriormente. A chamada Poesia Marginal também pouco deixou de sólido. Outro problema foi o fato de a poesia dita pós-moderna desincumbir-se, por exemplo, de narrar, quando narrar sempre foi um atributo de poetas. Por essa época, mergulhamos num lirismo que se queria radical, o império do eu, mas um eu vazio, um lirismo da falta de assunto, para ser bem objetivo. Mergulhamos também numa metapoesia quase programática. “Vamos fazer da poesia o tema por excelência do poema”. Ora, os temas são históricos, o homem é histórico, e qualquer arte universal deve traduzir o que de mutável e o que de perene nesse ser histórico que somos. Li certa vez um autor que dizia que “a poesia se faz com as sobras do real”. Convenhamos, isso não serve nem como frase de efeito. A poesia, bem como qualquer outra forma de arte, ocupa-se do real. A arte, de resto, é centralidade. Pode ser entendida como depuração, se quisermos, do real – jamais sobras. Creio que, em geral, a poesia brasileira dos anos 1960 até o final do século XX esvaziou-se de objetos e de clareza. Mas vejo hoje alguns sinais de consciência desse processo de esvaziamento e tentativas de devolver à poesia, como arte, sua centralidade. Sobre os poetas mais recentes, gosto de muitos dos livros do Alexei Bueno, sobretudo A Via Estreita e a Juventude dos Deuses, que são da década de noventa. Leio com prazer alguns poemas do Carlito Azevedo. Mas citar é sempre esquecer alguém.


7) Você é crítico literário. Por que a crítica literária tem se mostrado tão alheia ao que se tem feito em termos de poesia contemporânea? Como formar novos leitores de poesia ante a persistência da academia em ignorar a poesia brasileira que é escrita em nosso tempo?


Acho que o espaço das resenhas e da crítica de poesia se reduziu devido aos fatores que já citei. De fato, não é alheamento, é uma conseqüência natural daquele esvaziamento do discurso poético que já mencionei. Além disso, a poesia sofre de problemas de tiragem (sempre mínima) e distribuição. Um autor do norte ou do nordeste publica um livro por editora local e, muitas vezes, a obra nem chega às mãos dos críticos do Rio ou de São Paulo. Então não repercute. Você só encontra resenhas de poetas que conheçam diretamente críticos e poetas de algum renome. Aí sim o livro lhes chega diretamente. Sobre a(s) academia(s), não há nenhuma surpresa nisso. A academia, seja a ABL ou qualquer academia regional, sempre será, por definição, um espaço restrito. Não creio que a ABL ignore o que ocorre. A Revista Brasileira, editada pela ABL, publica um painel bem abrangente das publicações do ano. A questão é que, como já disse, a maioria dos livros nem chega aos acadêmicos. O Antonio Carlos Secchin e o Ivan Junqueira, que são da ABL, são leitores atentos e grandes incentivadores de novos autores. Agora, claro, eles lêem o que lhes chega, e quando chega, inédito ou já publicado. E aí voltamos ao problema das edições particulares, das tiragens pequenas, da distribuição e da divulgação. Sobre a formação de novos leitores, creio que o problema esteja na escola. Sou professor de português e posso assegurar que muitos professores de português não são sequer leitores de poesia.


POEMAS DE CLÁUDIO NEVES

Díptico

I

Teu corpo é belo e ao mesmo tempo inútil,
eterno, ubíquo, e ao mesmo tempo nuvem.
Púbere, exausto, e na verdade oculto.
Dorme, suspira, e na verdade escuta.

Teu corpo é belo, são, tanto mais puro
quanto mais torpe meu desejo o torne.
É informe, grave, como um quarto escuro,
e exato, simples, como um deserto.

Teu corpo é belo, ancestral, telúrico:
um veio débil, subterrâneo, absurdo,
que, já raízes, minhas mãos procuram.

Teu corpo é um sonho (alheio e lúcido)
em que me finjo ou me descubro.
Teu corpo belo, simples, nuvem, inútil.

II

Teu corpo, quando penso concebê-lo,
eis que teu ser o muda por inteiro –
não que o habite, mas com apenas sê-lo
e com torná-lo triste e verdadeiro.

Se te abstraio do corpo que desejo,
se para tê-lo esqueço que estás nele,
mais me confundo entre o que toco e o que vejo,
pois que o procuro como a um espelho.

Mas o possuo, porquanto assim me seja
possível num momento destruí-lo
no erro em que me é dado conhecê-lo.

Teu corpo, quando penso possuí-lo,
já nem o posso ter, porque desapareço,
como uma sombra noutra sombra, dentro dele.

Notre Dame de Paris

Da luz, senão aquela
que as nuvens consentem,
que o vidro consente
ou não pôde conter.

Das cores, aquelas
que nascem com a pedra,
habitam-lhe a idéia,
o peso, o calor.

Das linhas, aquelas
que invejam a luz,
com ela nasceram
ou a ela perderam,
e buscam as nuvens
e erguem a terra
com sua vontade
ou com seu terror.

Do silêncio, aquele
de um órgão jacente
ou que neste pressente
o seu salvador.

De Deus senão
o que nele é seu centro
e luz peregrina
e rosas de luz
e linhas volantes
em ordem ascendente,

o que nele é potência,
suspeita, certeza,
silêncio,
torpor.

Paris, dezembro de 2007.


(do livro De sombras e vilas. Ed. 7 letras)

I

O amor já foi
antes de ter sido,
e, se incriado,
é entanto renascido.

É livre de objeto
(se o tem, logo o assassina)
e livre de si mesmo:
deus, nuvem, bailarina.

Dança num intervalo
de luz, palavra, sentido
ou noutro qualquer abismo:

como o de antes de um não,
como a pupila de um cão
numa manhã de domingo.

7

Que o amor não é. Será.
Nunca infinito,
mas infinitivo.

Não dura. É duração.
Depura o tempo
em força, direção, sentido.

Habita a areia à beira-mar
não como rastro,
mas como um passo erguido.

14

Que o amor é isso:
saudade sem objeto,
objetos sem ruído,
tempo sem corrosão,
vozes mortas sem aviso,
a morte sem terror:
tudo apenas admitido
sem prêmios nem ruínas.

O amor é isso:
o que escolhe ser,
à revelia de quem o habita.

26

Se mais se teme o amor do que a morte,
se mais se teme a espera do que a voz,
é porque fundo e além do que chamamos nós
habita alguma coisa que nos sabe.

Se pura ou maculada de quem somos,
se lâmina, se linfa, se tão pronta
a nos cindir ou condensar em outro,
é porque desde sempre em nós não cabe.

Sentimos que se agita em frente ao mar
e silencia em face de outro corpo,
às vezes de uma cor ou de um piano.

Sabemos que por fim reclamará
o que dizemos se à falta de outro nome,
aquilo que em nós é, mais que nós, humano.

(do livro Os acasos persistentes. Ed. 7 letras)

2 comentários:

  1. Caro amigo Hilton,
    Muito boa a entrevista do poeta André Neves.
    Mais uma vez você nos traz pessoas que têm algo dizer e poemas a mostrar. Este é o sentido da arte para ser conhecida e divulgada.
    Parabens!
    Grande abraço,
    Regina Lyra

    ResponderExcluir
  2. Estimada Regina, o que me move é o amor a essa arte maravilhosa que infelizmente em nosso país ainda não é tão valorizada, mesmo tendo grandes poetas como você. Abraço fraterno!

    ResponderExcluir