sábado, 16 de outubro de 2010

O HAICAI: POR CLOVES MARQUES

(Cloves Marques)



HAICAI, A ARTE DE CONVERSAR COM A NATUREZA


Cloves Marques(*)


Conversar com a Natureza, por estas bandas do Nordeste brasileiro, é um perigo. As respostas num diálogo com um mandacaru podem ser espinhos, embora esconda água em seu interior. O leito anêmico de um riacho seco, como na reflexão de um esquecido sertanejo, faz-nos descobrir que "A chuva é o sangue da terra!". Discutir com o Sol porque nos espreita na sombra do umbuzeiro é irritante e pode nos matar esturricado. Quer uma pá de lama nos seus olhos citadinos, encare uma prosa de observação com os nossos manguezais. Mesmo assim, a gente insiste numa conversa na busca de entendimento e integração. De resto, como conviver se não houver comunhão? Como entender, sem a percepção de que, em grande parte do Nordeste, só contamos com duas estações, jocosamente denominadas De Sol ou De Chuva?

Sutil baraúna,
no cerne, guarida ao aço,
galhos à graúna.

A água cansada
se espreguiça pela terra.
Vida inventada.

Nas negras raízes,
perambulam mistérios.
Manguezal antigo.

A poesia é uma arte que tem ajudado proficuamente nesse afazer. E muito bem se presta para tal, porque é uma “lucidez enternecida”, no dizer de Armindo Trevisan, que completa: “Quem se dispõe a ouvir poesia tem uma certa comunhão com a natureza e com os outros homens”. Nesse aspecto, estou convencido de que haicai é vida. Reflete um estado de existência na explosão de um instante. Diz daquilo que une o poeta ao fato presente. As lembranças fluem, as projeções se fazem, mas, o fato desencadeador do poema do haicai é do momento. Não se trata de algo explicável, mas da explicitação da sensibilidade, da síntese – lucidez –, por vezes, decorrente do sentimento de presença - enternecimento. De resto, somos assim, pensamos com a cabeça e com o coração. E, nesse contexto, a poesia é alimento, na medida que faz entendimento, que gera retorno.

Uma cuia d’água
à sombra do umbuzeiro,
o sol tudo espreita.

O cheiro de terra
molhada refaz o tempo,
que a chuva apagou.

A nuvem se ocupa
em construir animais.
A chuva cavalga.

Pela brevidade – ou quase urgência de dizer, para não perder a explosão do que nos assalta naquele átimo de tempo – lança-se mão do haicai, poema que alcançou a sua plenitude como filosofia e arte através do poeta japonês do século XVII, Matsuo Bashô.


Após a trovoada
passeio do sol sobre a terra.
Tempero divino.

Desmancha na brisa
o cheiro doido da manga.
Fome não alisa.

Olhares-lamentos.
Ah! A boca da caatinga
come os pensamentos.

Esse terceto poético, o haicai, longe de ser uma prática literária ou exposição de um gênero ou forma de poesia, é a exteriorização de uma filosofia de vida, de quem nasceu e convive com as peculiaridades de uma parte deste país continental. Se uns desfrutam de neve, frio invernal, caídas folhas outonais ou renovadas flores primaveris, temos muito sol e, por vezes, imploramos pela celebração da chuva. Guardadas as referências próprias, além de características físicas específicas, temos a personalidade e os hábitos de um povo curtido por um clima tropical.

A boca da noite
usa raspa de juá:
sereno perfumado.

Na rua deserta,
a chuva encharca o casal.
Beijo molhado.

O sol passeando
sobre a pele do riacho
que se ri e foge.

No livro “365 Haicais de Sol e Sol e Chuva”, dentro do simbolismo de um ano de experimentação vivencial – racional e afetiva – com uma região, sua natureza e seus seres racionais e irracionais, exponho instantes experimentados nas minhas andanças, principalmente pelo sertão nordestino. A maturidade dá paciência para enxergarmos a Natureza que nos cerca. A complexidade do todo nos leva à análise. O haicai tenta a simplicidade da parte, na expressão da síntese. E assim, se dá essa espécie de arte de conversar com a Natureza.



(*)Cloves Marques - Escritor, poeta, fotógrafo, natural de Delmiro Gouveia/AL. Reside, há mais de 40 anos, no Recife/PE. Publicou, entre outros, Pra não Morrer de Amor (poema), É Eterno, Mas é Preciso (poema), Crônicas do Encontro (crônicas), Umareru – Instantâneos de Natal (haicai), Haicai ao Recife (haicai), Máscara em Haicai (ensaio, haibum e haicai), 365 Haicais de Sol e Chuva (haicai – premiado, em 2005, com Menção Honrosa, pela Academia Pernambucana de Letras e Conselho Municipal de Cultura do Recife); Tankas de Amor Amado (tancas - premiado com Menção Honrosa, em 2006, pelo Conselho Municipal de Cultura do Recife); NOTURNO, Tankas da Madrugada (poemas tankas). Participou de diversas exposições fotográficas e de antologias. É membro da UBE/PE e sócio efetivo da Academia de Letras e Artes do Nordeste, da Academia Recifense de Letras e Academia de Artes e Letras de Pernambuco; e do Grêmio Haicai Arrecifes..

8 comentários:

  1. Obrigada pela visita ao Leitora. Andei passeando pelo Poesia Diversa e gostei muito. Vou colocar nos meus favoritos.

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  2. Estimada Gerana, sua presença aqui é uma honra! Seja bem vinda! Um grande abraço!

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  3. Acho perfeita a definição do haicai como a arte de conversar com a natureza. Mas também gosto muito dos haicais urbanos. A arte de conversar com a nutureza das coisas essenciais, talvez. Na verdade, sou fascinada por haicais. :) Abraço!

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  4. Gostaria de manter contato com Nydia Bonetti.
    Hilton, você poderia me enviar o e-mail dela?
    Meus antecipados agradecimentos, com um forte abraço,
    Cloves Marques
    clovesms@terra.com.br

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  5. O Cloves é um belíssimo haijin! Curiosamente cabralino. Foi o que achei.

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  6. Meu amigo Gustavo, sua presença estava fazendo falta aqui! Um abraço!

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  7. O cheiro de terra
    molhada refaz o tempo
    que a chuva apagou.

    Uma forma poética que nos comove ao comentar as imagens de um passado que retorna, em uma tarde de chuva.

    Parabéns, Cloves.

    Guin Ga

    yashibro@yahoo.com.br

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  8. Prezado Guin, seja bem vindo ao Poesia Diversa!

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