quinta-feira, 16 de junho de 2011






1 – Como ocorreu seu contato inicial com a literatura?




Ainda criança. Meu pai era um grande leitor, embora não tivéssemos muitos livros em casa. Éramos pobres; minha infância foi difícil. Uma época triste, não trago boas lembranças. Um dia ele me presenteou com Os Contos dos Irmãos Grimms, uma edição completa. Acho que isso hoje não é mais permitido, alguns contos dos Grimms traumatizam a criança. Além de ofender certa crítica literária de vertente feminista, segundo a qual os contos dos Grimms perpetuam uma dominação machista, a sujeição e a passividade femininas. Ou de teor marxista: a injustiça social e a opressão de classe é resolvida por meios mágicos, o que escamotea a realidade da luta de classes. Ou que a intenção dos irmãos Grimms era educar as crianças, mas para a sociedade burguesa, para a ideologia da concorrência desenfreada típica do capitalismo. Engraçado era que meu pai era marxista, mas ele não enxergava tão longe. Para ele, o livro era bom e merecia a minha atenção. Mas eu até posso entender algumas dessas ressalvas, aquelas de que alguns contos são em demasia “adultos”. Originalmente esses contos se destinavam realmente ao público adulto; a intenção dos Grimms era preservar a tradição camponesa oral alemã. Há contos de confrontação com a morte, de estranhos duendes (Rumpelstilskin), ansiosos por almas ingênuas, pactos demoníacos, pais que dão os filhos em troca de prosperidade, bruxas, dragões… Eu adorava esses contos, os mais pesados. Mas lia-os de dia. À noite tinha medo, muito medo; todos os bichos perversos presentes nos contos importunavam-me o sono. Contudo, acho que valeu a pena tanto pavor na infância. Os Grimms são a primeira, e permanente, influência na minha literatura. Por exemplo, no meu romance – bem como nos outros –, As Almas que se Quebram no Chão, a presença do demonismo, de obsessões, do horror, é fundamental. Como escreve James Joyce: “Terror é o sentimento que arrasta a mente à presença de tudo que seja grave e constante nos sofrimentos humanos e o unifica com a causa secreta”.



2 – Quais são suas influências literárias e quais autores contemporâneos você destacaria?




Além dos grandes, aqueles que sempre estamos relendo, Homero, Shakespeare, Cervantes, e de um livro imprescendível a qualquer escritor que se preze, falo das Sagradas Escrituras, destaco as modernas literaturas russa e norte-americana. Mas porque elas não rejeitam o sobrenatural, o mítico, a abertura à transcedência, o mistério que é a realidade. É óbvio que aqui generalizo, há escritores americanos, tais como John Steinbeck, Sinclair Lewis, que se preocupam em entender a psicologia e o comportamento humanos num contexto social. Isso não me interessa! A visão de mundo que me instiga é aquela da tragédia, da epopéia… O homem em meio a forças gigantescas; Deus e o demônio lutando por sua alma, e ele instigado a cada segundo a tomar um partido. Infelizmente o romance moderno, em especial, o europeu, e somos influenciados por ele, rompe com esta visão de mundo. O seu interesse é o mundo secularizado; o romance se aproxima perigosamente do jornalismo, pois o que anseia é retratar os aspectos sociais, cotidianos, da vida moderna. Ora, alinho-me ao grande Dostoiévski e sua visão de Shakespeare. Para ele, o “realismo” de W. Shakespeare não se limitava a uma imitação empobrecedora da vida cotidiana; o bardo inglês era para ele um profeta enviado por Deus “para nos proclamar o mistério do homem e da alma humana”. Estou justamente com os dois, com esta percepção.
Autores contemporâneos… Cito os vivos: Philip Roth, Mario Vargas Llosa, Thomas Pynchon, J. M. Coetzee… Mas nenhum me dá tanto prazer, e remói a alma – suas palavras são profundas, sombrias, traiçoeiras –, quanto Cormac McCarthy. Ele é o meu contemporâneo favorito.



3 – Comente sobre a temática de seu romance “As almas que se quebram no chão”.




Há uma frase de Goethe que muito aprecio: ele afirma que se temos um destino, a percepção de que estamos a cumprir um, então, nosso dever é viver esse destino. Bem, os personagens de meu romance, ao contrário, tendem a fugir das próprias responsabilidades. A escolha é pela diversão, mas de maneira inconsequente. Ignoram que um modo de sair-se bem nos estudos (eles são estudantes na época da queda do muro de Berlim) , ou na vida de um modo geral, é tomar cuidado com as experiências extremas, as convivências supérfluas, os lugares obscuros. Um parêntesis: talvez eu seja supersticioso, mas para mim um quarto, uma casa, um prédio abandonado, pode ser sim um lugar ruim. Uma influência de minhas primeiras leituras, a dos Grimms? É bem provável. Então, são pessoas de vidas desperdiçadas, e embora passem por crises interiores constantes, recusam a experiência da conversão. Conversão aqui entendida com a postura apropriada de seriedade para com as coisas da vida. E seguem adiante, mas para espalhar erros por onde passam. Essa é a temática do livro. Mas essas pessoas, como personagens, podem ser, e são, fascinantes. Talvez pela razão de que assim é o homem, assim somos nós. Somente alguns poucos, por uma graça inexplicável, conseguem fazer algo de si: criar algo duradouro e amar desinteressadamente.
E como pano de fundo de seus dramas coloquei o evento mais significativo de nosso tempo, a queda do Muro de Berlim; um tempo que se estende à unificação da Alemanha. Além de Berlim, os personagens transitam por Leipzig, Moscou; há viagens a Praga, na República Tcheca, alguns acabam em Amsterdam, buscam a Romênia, outros retornam para o Brasil, continuam no Nordeste… Enfim, o livro tem um aspecto épico que muito me agrada. Esforcei-me para fazer um bom trabalho, espero ter conseguido.



4 – Você prepara um novo romance denominado “O Advento”. Comente sobre sua temática.




Comecei O Advento antes de ter As Almas que se Quebram no Chão publicado. Mas é que não consigo passar muito tempo sem escrever. Assusta-me a vida sem a literatura! Se n’As Almas… os personagens são estetas, n’O Advento dou um passo adiante, a discussão é ética. Explico: no meu curso de filosofia em Berlim ocupei-me bastante com Nietzsche e Kierkegaard. Fiz um seminário sobre o Entweder/Oder (o título em alemão de sua obra-prima: Ou… Ou…), onde Kierkegaard discute as fases da existência, a estética e a ética, a partir de uma questão aristotélica: Como devemos viver? O “esteta” é aquele que assume conscientemente uma vida descompromissada, recusando os deveres e as responsabilidades que para o “ético” são fundamentais. No meu livro, essa discussão gira em torna da paternidade. Aderbal Semei, o personagem principal, um escritor de um livro só, a recusa como um incômodo aos seus projetos pessoais. Uma posição que entra em choque com o que a namorada espera; ela quer ter filhos. Partindo de uma ideia completar, colhida em Dom Quixote – o episódio do Curioso Impertinente – e n’O Eterno Marido, de Dostoivéski, Semei passa, numa mistura de sentimentos confusos – tara, recusa às reinvidicações da amada, simples deboche –, a desejar que a namorada se apaixone por um amigo em comum.
Os aspectos sombrios, os quais, como eu disse, prezo bastante, giram em torno da ideia de maldição. É comum, entre os personagens d’O Advento, desejar o pior ao outro… Semei é um personagem bíblico! No Segundo Livro de Samuel, lemos que ele encontra Davi, o qual se encontra em fuga de Saul, e passa a amaldiçoá-lo; segue uma trajetória considerável atrás de Davi lançando-lhe as mais terríveis imprecações. O meu Semei é algo parecido, embora ele sofra mais… A maldição nele parece ser uma punição de Deus, a pior coisa que possa acontecer a um homem. Se ele a merece, e como vai lidar com isso, o livro revela, ou deixa em aberto ao leitor.



5 – Em uma de suas entrevistas você diz: “Sem a ajuda de fontes importantes do conhecimento – a fé, a tradição, a revelação, a experiência de santos e místicos – corremos o risco de cairmos o tempo todo, como se tateássemos no escuro, próximo ao abismo da morte.” Qual o papel da literatura em um tempo onde as grandes tradições são renegadas por estéticas experimentais e pela perspectiva niilista que parece assolar toda forma de pensamento?




Não acho que as estéticas experimentais são um problema… William Faulkner, por exemplo, usa muito bem , em sua literatura, técnicas modernas de narrativa. O experimentalismo se torna um problema quando o norte é a novidade pela novidade. O que, no caso, não é norte. É bússola sem rumo, leva o barco para o abismo. O problema dos artistas hoje é que eles acham que a arte começa com o Dadaísmo. No Brasil, com a Semana de Arte de 22. E tudo o que há antes é, para usar uma frase de Plutarco, “areais estéreis, infestados de bestas selvagens”. Então, o artista gira os olhos para inovações, embriagando-se de superficialidades. Meu Deus, como eu posso escrever prosa e poesia decentes sem o conhecimento dos clássicos? Posso, mas encho mais ainda de porcarias um mundo já saturado de asnice. O nihilismo é consequência desse empobrecimento da cultura. Concluindo, eu diria que a realidade das coisas, o próprio sentido da existência, não podem ser compreedidos ao menos que estejamos prontos para mergulhar no vasto universo da tradição, a qual, no nosso caso, significa o legado judaico-cristão e greco-romano.




Um comentário:

  1. Karleno Márcio Bocarro nos dá um exemplo de porque é um de nossos melhores intelectuais e romancistas de nossa atual literatura.

    Na busca incansável de seu personagem, como aquele Salieri, do Filme do Milos Forman, incapaz de aceitar sua mediocridade, por um lugar na História – lugar este que não lhe pertence –, o livro As almas que se quebram no chão, de Karleno Bocarro, possui todas as qualidades de uma grande obra; dentre elas, a que eu mais gosto: a capacidade de nos desafiar, de nos instigar a buscar outras histórias, informações, leituras... e de onde, muitas vezes, buscamos a nós mesmo.

    Tudo isso com a grandeza sutil dos maiores mestres. Ignorar uma obra como esta, ou as futuras grandes obras que virão da pena de Karleno Bocarro, é ignorar o que a nova Ficção Brasileira tem de melhor.

    Além do mais, seu autor é um grande conhecedor dos meios e das influências que lhe despertaram e aprimoraram um talento tão grande. Principalmente em uma época de tantos escritores de faxada, completam,nte ignorantes do mínimo de História da Literatura, ver alguém imbuído de tanto talento quanto de sabedoria para maturar este atlento é-nos sempre um motivo de alegria e de esperança. Não ler este que é um dos mais bem escritos e enigmáticos romances de nossa Literatura, como os próximos que seu autor prepara para nos brindar, para mim, é assinar um atestado de ignorância.

    Não obstante, convido a todos para um passeio pelo Blogger de Hilton Valeriano; sem dúvidas um dos espaços mais bem elaborados e preocupado com a qualidade de tudo que nele é publicado... é o tipo de lugar, infelizmente, muito pouco freqüentado pela grande maioria dos internaltas, menos àqueles que buscam sempre o melhor conteúdo.

    Silvério Duque

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