1 – Quando ocorreu seu contato inicial com a literatura?
R – Por volta de 63, 64. Tive um sonho que me impressionou muito e o transcrevi, com lápis e papel, ao acordar. Como não tinha máquina de escrever, datilografei-o antes do início do expediente na agência do Banco do Brasil de Pombal, alto sertão da Paraíba, passei o texto a um colega que já fizera teatro na capital e lia muito. Ao terminar a leitura, ele disse: “Que conto, cara!” Reagi ingenuamente: “Conto não, Bezerra: isso foi um sonho que tive esta noite”. Ele enviou a matéria para um amigo seu, de João Pessoa, professor de literatura, que estava justamente preparando uma antologia à base de mimeógrafo e, de repente, me vi entre poetas e contistas nacionais de grande porte. Estimulado a produzir mais, senti que me faltava leitura para tanto. Foi aí que me valeu a grande quantidade de gente culta que – surpreendentemente - havia no lugar onde não havia nenhuma biblioteca. Tomei emprestado montes de livros de deus e do mundo. Lá mesmo ainda tentei escrever um romance, que deu em nada, envolvi-me com teatro, eu e esse mesmo Bezerra produzimos o primeiro longa-metragem paraibano de ficção em 35 mm – “O Salário da Morte”, dirigido por Linduarte Noronha, famoso pelo documentário “Aruanda”, mola-mestra do Cinema Novo e, somente quando me vi trabalhando em João Pessoa, resolvi encarar novamente o gênero romance e fiz o “Israel Rêmora”, que obteve o Prêmio Fernando Chinaglia, em 74, que resultou na publicação do livro pela Récord.
2 – Quais são suas influências literárias e artísticas?
R – O “Israel Rêmora” foi escrito por dois motivos: o chefe de meu setor no BB, ouvindo-me contar as mil e uma coisas que vivera no sertão, disse-me que, se eu botasse aquilo tudo num livro, ele o compraria. Coincidiu que eu estava maravilhado pela leitura de um volume de contos de Hemingway – “As Aventuras de Nick Adams” – quase todo autobiográfico, fascinante por sua imensa simplicidade temática e técnica. O autor que mais me deslumbrara até então, Tolstói, dissera algo a respeito do “Guerra e Paz” que também me impressionara muito: “Nada há nesse meu livro que eu não tenha vivido”. Somadas as coisas, fiz o “Israel”.
3 – Qual a sua visão sobre o grande Nordeste, em sua dimensão cultural?
R – Quando cheguei do interior de São Paulo – Sorocaba – e me vi numa região da qual tinha as piores impressões, o impacto contrário foi de tal monta, que me senti como se houvesse mudado de país. Que vivia noutro, mais criativo, delirante. O Nordeste – acho que por ser a única área do Brasil sem contato com vizinhos estrangeiros – isolara-se na grande originalidade que acabaria gerando Jorge Amado, Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Raimundo Carreiro,. Gláuber Rocha, Graciliano, Zé Lins, Vladimir Carvalho, Gilberto Freire, Luiz Carlos Vasconcelos, Kléber Mendonça Filho, Marcelo Gomes, etc, etc, etc.
4 – Como pólo geográfico do romance Relato de Prócula, comente sobre a Paraíba e sua dimensão literária e artística.
R – Um dia o jogador Edmundo, furioso com o juiz, chamou-o de Paraíba. A revolta, aqui, foi enorme. Ocorreu-me, então, a ideia de propor a um de nossos jornais, que sempre colocasse na capa de seu caderno de arte dos domingos o retrato de página inteira de um paraibano de nome nacional. Levei, como amostra, o de Ariano Suassuna, que eu acabara de pintar para meu painel “Homenagem a Shakespeare”, pertencente ao acervo da UFPB ( como se ele fosse Touchstone – o histrião inteligentíssimo de “Como Gostais” (As You Like It). “Mas isso teria vida curta”, disseram-me, ao que lhes estendi uma relação de 70 personagens ilustres do estado, pois já esperava o questionamento. Daí minha série, que começou com “Pense grande como o paraibano Assis Chateaubriand, que fundou os Diários Associados, o Museu de Arte de São Paulo e a TV brasileira”; “Pense grande como o paraibano Pedro Américo, o maior pintor acadêmico do país, autor dos célebres Grito do Ipiranga e Batalha do Avaí”; “Pense grande como o paraibano Ariano Suassuna, autor da peça O Auto da Compadecida e do romance A Pedra do Reino”; pense grande como o paraibano Walter Carvalho, o maior diretor de fotografia do Brasil, autor de trabalhos como “Central do Brasil” e “Lavoura Arcaica”; “Pense Grande como a paraibana Marcélia Cartaxo, urso de ouro do Festival de Cinema de Berlim por sua Macabeia em “A Hora da Estrela”. E vieram, em seguida, José Américo de Almeida, que revolucionara a literatura nacional com “A Bagaceira”; Zé Lins e seus famosos “Menino do Engenho” e “Fogo Morto”; Vladimir Carvalho, com seus grandes documentários “O País de São Saruê” e “Companheiros Velhos de Guerra”; o ator Zé Dumont; o poeta Augusto dos Anjos; o maestro José Siqueira (fundador da Orquestra Sinfônica Nacional); Celso Furtado, nosso maior economista, etc, etc, etc. Não é uma terra excepcional? Pequenina, a Paraíba detém o maior número de gênios por metro quadrado no Brasil.
5 – O que é ficção e realidade no Relato de Prócula?
R - Bem, havia um Padre Martinho em Pombal. Coloquei-o fazendo Pilatos num espetáculo ao ar livre, aqui em João Pessoa, coisa que fiz durante três anos. Coloquei-o tentando o suicídio – coisa que um amigo, jornalista, fez. Coloquei-o imaginando ter feito curas, coisa que aconteceu comigo. Alguns outros personagens do romance - Dr. Atêncio Wanderley (o homem mais culto que já vi) e Horácio (que trabalhou comigo no filme “O Salário da Morte”)- foram, realmente, grandes amigos meus, ambos já falecidos. Por fim, coloquei o padre tendo vários insights sobre Cristo, na verdade vividos por mim.
6 – Você realmente ficou naquela região para a pesquisa referente ao romance? Toda referência ao cinema é sua?
- Vivi em Pombal de 1963 a 1970. Casei-me lá. Lá eu tive meus dois filhos. Lá fiz literatura, teatro, cinema, fui ator nas duas áreas. Além de trabalhar no filme pombalense, participei de “Fogo Morto” e “Soledade”, rodados no estado nos anos 70, depois num curta baseado em livro meu, “A Canga”, dirigido por Marcus Vilar (com mais de vinte prêmios, nacionais e internacionais ) e. no final do ano passado, participei dos longas pernambucanos “O Som o Redor”, de Kléber Mendonça Filho, e “Era uma vez Verônica”, de Marcelo Gomes. Encerrei o ano com o curta “Antoninha” - no sertão da Paraíba, de Laércio Ferreira. Todos três com estreia marcada pro segundo semestre.
7 – Comente sobre a dimensão intertextual presente na narrativa do Relato de Prócula.
R – Meu grande problema, nesse romance: equilibrar a história que se passa na Paraíba contemporânea, com o tal relato de Prócula, mulher de Pilatos, em que se revela uma nova interpretação do que teria sido Jesus, possivelmente cidadão romano como Herodes, como historiador judeu Flavio Josefo, como o filósofo Filon de Alexandria (cujo sobrinho ainda iria ocupar o cargo de Pôncio em Jerusalém). Eu já trabalhara o tema no meu romance “A Verdadeira Estória de Jesus”, publicado pela Ática, em 79, romance que nasceu de um ensaio que eu submetera justamente ao verdadeiro Padre Martinho, lá em Pombal, que ficou desconcertado com minhas teorias.
8 – No Relato de Prócula, o livro parece desempenhar uma função social integradora e reveladora da cultura numa perspectiva humanista, ou seja, como desdobramento do homem como um ser instaurador do sentido, da significação. Penso na grande biblioteca do personagem Padre Martinho e toda sua simbologia. Comente sobre essa temática.
R – Meu personagem padre mantém uma biblioteca e cinemateca respeitável, em seu sítio, em Pombal, abertas ao povo, e sua paixão pelo cinema, nascida quando viu Linduarte filmando “Aruanda” na infância, depois “O Salário da Morte”, na juventude, levam-no a dar entrevista no Programa do Jô, no final do romance, capítulo inspirado na que deu um outro paraibano fantástico- Ivan Cineminha – capaz de responder qualquer coisa sobre a Sétima Arte. É nesse espaço que Padre Martinho diz à sua terra, Pombal, que não mais é um padre.
9 – Comente sobre seu premiado poema Trigal com corvos.
R – Meu primeiro romance, “Israel Rêmora”, é feito com poesia e prosa. Depois de cada capítulo, contado na terceira pessoa, vemos um poema, na primeira pessoa, em que o fato é, de certo modo, comentado. Voltei a fazer poesia, agora de cordel, em 1978, quando escrevi o texto da “Cantata pra Alagamar”, do maestro José Alberto Kaplan ( a primeira em língua portuguesa), gravada pela Marcus Pereira, de São Paulo. Bem, aí houve um certo tempo, em minha vida, em que senti vontade de trabalhar com palavras livres de narração. Habituado, no entanto, ao trabalho de maior fôlego do romance, optei por um poema longo. Passei mais de uma década lutando com o livro, indo e voltando a ele, fiquei entre os finalistas de um Prêmio Nestlé com ele, retrabalhei-o, retrabalhei-o, até que não consegui burilar mais nada e o lancei. O primeiro a conhecer meus originais foi o Affonso Romano de Sant´Anna, que me mandou enorme e-mail elogiando-o. Depois que o livro saiu, recebi dezenas de comentários entusiásticos e o Prêmio da União Brasileira de Escritores de 2005. Foi uma grande experiência. Tanto, que depois de terminar o “Relato de Prócula”, resolvi encerrar a vida mergulhando noutro poema longo – “Marco do Mundo” – que meus 70 anos indicam destinar-se a ficar incompleto e, por conseguinte, inédito.
Oi Adorei o seu blog, gostaria de convidar você ao meu blog de textos existenciais, obrigado!
ResponderExcluirSeja bem vinda!
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