UM ENCONTRO MUITO ESTRANHO
Para José N. Félix
Pretendia anexar
ao presente relatório
um atestado de saúde
que peguei no sanatório;
mas optei por guardá-lo
registrado em um cartório.
Não gosto de falatório
e abomino a mentira,
o boato e a fofoca
só me provocam à ira,
pois sempre digo a verdade,
mesmo aquela me fira.
Sei que o cara quando pira
sofre a alucinação,
porém essa experiência
para a qual peço atenção
foi tão real como é
a miséria da nação.
Próximo a uma estação
de trens, em noite chuvosa,
abriguei-me num boteco
de uma varanda espaçosa,
quando um velhote chegou
mancando em busca de prosa.
Uma brisa misteriosa
com ele o bar adentrou,
piscou um olho pra mim,
uma pinga encomendou,
e, sem ser meu convidado,
à minha mesa sentou.
Um sambinha assoviou:
- "Eu, na verdade
indiretamente sou culpado
da tua infelicidade..." -
e nesse exato momento
faltou luz pela cidade.
Rindo com sonoridade
diz: - "Assim está melhor:
a natureza da noite,
como quis o Criador,
deve ser escura e fria
- para o crime e o amor."
Achei aquele senhor
muito espirituoso
e um brinde à sua saúde
propus, mas ele, jocoso,
preferiu brindar à Morte,
com seu hálito sulfuroso.
E prosseguiu, misterioso:
- "Conheço seus pensamentos.
Há muito o espionamos
pelos Quatro Elementos.
Conheço todos seus planos
e sei dos seus sentimentos.
Sei que em alguns momentos
você perde a esperança,
mas vim propor-lhe negócios
de estrita confiança...
Antes, vou pedir um prato
qu’é pra gente encher a pança:
- Ô sêo garçom, sem lambança,
diga lá ao cozinheiro
que prepare uma cabeça
de bode pai-de-chiqueiro,
mas me traga, como entrada,
sangue do bode, primeiro."
"- Meu distinto cavalheiro"
- espantado, retruquei -
"e quais são esses negócios
que me vens propor, meu rei?
Se for coisa desonesta,
saiba que recusarei.
Drogas nunca trafiquei,
Nem nunca matei ninguém.
Jamais amigo, roubei
o que pertence a alguém,
e sempre, por toda vida,
procurei fazer o bem."
- “Ó meu querido neném,
bom rapaz, coração puro...
Tu não vales um vintém
na podridão dos monturos:
apodrecerás, meu bem,
um dia, por trás dos muros.
Eu ofereço, sem juros,
felicidade terrena:
glória, poder e riqueza,
e o prazer sempre em cena,
em troca de tua alma:
veja se não vale a pena!"
Lobo, chacal e hiena
uivaram na noite escura.
Trouxeram sangue de bode
misturado a rapadura.
No prato caíra morta
rechonchuda tanajura.
Quis brincar com a Criatura
que me fazia careta:
- “Valei-me, Nossa Senhora!,
que eu encontrei o Capeta!...
- Ora, vê se não amola,
pobre velhote perneta!
Me dizes ser Coisa Preta
sem dar a comprovação?
De seus poderes terríveis
quero uma demonstração:
que reine nesse boteco
agora a depravação!"
Nesse instante, no salão,
adentrou devasso bando,
a sorrir, a se abraçar,
e falar de contrabando.
Uma mulher ficou nua
sobre uma mesa, dançando.
Outras a foram imitando,
e alguns homens também.
Eram dez, ou vinte, ou trinta
- talvez fossem mais de cem -
e alguns nos convidavam
para ir dançar também.
- "Inda duvidas, meu bem,
que sou o Anjo Exilado?
Pois então passemos logo
a fazer nosso tratado:
já virei a ampulheta,
o jogo está começado.
Eu gritei: "Xô, desgraçado!
Isso é só um sonho ruim.
Na hora em que acordar,
estarás longe de mim.
Mas já que estás presente,
quero ir até o fim."
Vi um anjo serafim
tocando sua trombeta.
Chegou pra perto de mim
então o Bode Perneta,
e já foi dizendo assim:
“Aperte a mão do Capeta!"
Cumprimentei Coisa Preta,
que então se transformou
em um distinto, elegante
- aristocrático senhor -
a debochar com ironia
da virtude e do amor:
- "Ora, me faça o favor!...
Pra que serve honestidade?
Me aponte um só dos ricos
que nunca agiu com maldade:
se quer viver na miséria
seja honesto de verdade!
E a infidelidade
é que salva o matrimônio:
pra ser feliz no amor
um pacto com o Demônio
é necessário fazer,
nada a ver com Sant'Antônio..."
No boteco, um pandemônio:
grasnava rasga-mortalha.
Uma briga entre os devassos
fez surgir uma navalha,
atiçando ainda mais
os impulsos da canalha.
- “Nossa Senhora me valha!,
Bom Ciço ou Frei Damião:
nunca mais na minha vida
quero brincar com o Cão!
Ai, como está demorando
essa alucinação..."
- "Onde boto a minha mão,
prospera, cresce a riqueza.
Sou patrono do sucesso,
e triste da realeza
que duvidar dos poderes
que tem o Deus da Baixeza!
Já degolei com firmeza
cabeças imperiais.
Mandei crucificar muitos
que se diziam imortais.
Fiz a turba da Judéia
optar por Barrabás.
Com sangue e com funerais
fiz muitas revoluções,
a cristãos e outros tolos
ministrei boas lições,
sempre dei aos bons poetas
as grandes inspirações.
Sou eu quem tenta os ladrões
e seduz todas as putas.
Provoco as controvérsias
que sempre acabam em lutas.
Implanto gula e luxúria
e o amor pelas disputas.
Só as almas mais astutas
é que na vida prosperam.
Aqueles que contra mim
praguejam e se desesperam,
não sabem que são mais meus
que os que em casa me esperam.
Felizes os que vieram
à Missa Negra do Cão!
Sabem-se almas perdidas,
não passaram a vida em vão:
a verdade está na guerra,
irmão matando outro irmão."
Nesse instante, no saguão,
numa bandeja de ouro,
uma cabeça de bode
- ao lado um ovo goro -
serviram à nossa mesa,
onde pousara um besouro.
- "A mosca do mau agouro
sempre é minha convidada."
- diz Ele, e: - "Não costumo
dividir minha noitada,
mas vou te dar um pedaço
da cabeça ensanguentada."
Eu provei da empreitada
e confesso que achei boa,
e disse assim para Ele:
- "Se és o Diabo em pessoa,
o que pode interessar-te
em um sujeitinho à toa?"
- "Contra ele mesmo caçoa,
alma minha, fraca e vil...
- Tu és, amigo, retrato
do povo do teu Brasil:
muito fácil de enganar,
basta ter um bom ardil.
Manda à puta que a pariu
a tua credulidade!
Insistes na esperança?
Ora, já não tens idade...
Quebra esse teu quietismo,
vai bagunçar a cidade!
Vais deixar minha maldade
só com a classe dominante?
Brasileiro pobre e triste
é o que serás doravante,
com seus políticos ladrões
e a tua Igreja pedante!
Pensas que a cada instante
não pagam tributo a mim
os poderosos de sempre,
a canalha, a classe ruim
que pegou a tua terra
e que a deixou assim?
Se queres comer capim
- rá, rá! - santa paciência!...
Agora tenho um encontro
com a nobre jurisprudência:
fica aí com teu pudor
e a tua pura inocência!"
Turvou-se-me a consciência
e logo caí no chão.
Acordei todo ensopado,
lambia-me um negro cão.
Ninguém mais via por perto
- tudo estava tão deserto
como a terra do sertão.
Para José N. Félix
Pretendia anexar
ao presente relatório
um atestado de saúde
que peguei no sanatório;
mas optei por guardá-lo
registrado em um cartório.
Não gosto de falatório
e abomino a mentira,
o boato e a fofoca
só me provocam à ira,
pois sempre digo a verdade,
mesmo aquela me fira.
Sei que o cara quando pira
sofre a alucinação,
porém essa experiência
para a qual peço atenção
foi tão real como é
a miséria da nação.
Próximo a uma estação
de trens, em noite chuvosa,
abriguei-me num boteco
de uma varanda espaçosa,
quando um velhote chegou
mancando em busca de prosa.
Uma brisa misteriosa
com ele o bar adentrou,
piscou um olho pra mim,
uma pinga encomendou,
e, sem ser meu convidado,
à minha mesa sentou.
Um sambinha assoviou:
- "Eu, na verdade
indiretamente sou culpado
da tua infelicidade..." -
e nesse exato momento
faltou luz pela cidade.
Rindo com sonoridade
diz: - "Assim está melhor:
a natureza da noite,
como quis o Criador,
deve ser escura e fria
- para o crime e o amor."
Achei aquele senhor
muito espirituoso
e um brinde à sua saúde
propus, mas ele, jocoso,
preferiu brindar à Morte,
com seu hálito sulfuroso.
E prosseguiu, misterioso:
- "Conheço seus pensamentos.
Há muito o espionamos
pelos Quatro Elementos.
Conheço todos seus planos
e sei dos seus sentimentos.
Sei que em alguns momentos
você perde a esperança,
mas vim propor-lhe negócios
de estrita confiança...
Antes, vou pedir um prato
qu’é pra gente encher a pança:
- Ô sêo garçom, sem lambança,
diga lá ao cozinheiro
que prepare uma cabeça
de bode pai-de-chiqueiro,
mas me traga, como entrada,
sangue do bode, primeiro."
"- Meu distinto cavalheiro"
- espantado, retruquei -
"e quais são esses negócios
que me vens propor, meu rei?
Se for coisa desonesta,
saiba que recusarei.
Drogas nunca trafiquei,
Nem nunca matei ninguém.
Jamais amigo, roubei
o que pertence a alguém,
e sempre, por toda vida,
procurei fazer o bem."
- “Ó meu querido neném,
bom rapaz, coração puro...
Tu não vales um vintém
na podridão dos monturos:
apodrecerás, meu bem,
um dia, por trás dos muros.
Eu ofereço, sem juros,
felicidade terrena:
glória, poder e riqueza,
e o prazer sempre em cena,
em troca de tua alma:
veja se não vale a pena!"
Lobo, chacal e hiena
uivaram na noite escura.
Trouxeram sangue de bode
misturado a rapadura.
No prato caíra morta
rechonchuda tanajura.
Quis brincar com a Criatura
que me fazia careta:
- “Valei-me, Nossa Senhora!,
que eu encontrei o Capeta!...
- Ora, vê se não amola,
pobre velhote perneta!
Me dizes ser Coisa Preta
sem dar a comprovação?
De seus poderes terríveis
quero uma demonstração:
que reine nesse boteco
agora a depravação!"
Nesse instante, no salão,
adentrou devasso bando,
a sorrir, a se abraçar,
e falar de contrabando.
Uma mulher ficou nua
sobre uma mesa, dançando.
Outras a foram imitando,
e alguns homens também.
Eram dez, ou vinte, ou trinta
- talvez fossem mais de cem -
e alguns nos convidavam
para ir dançar também.
- "Inda duvidas, meu bem,
que sou o Anjo Exilado?
Pois então passemos logo
a fazer nosso tratado:
já virei a ampulheta,
o jogo está começado.
Eu gritei: "Xô, desgraçado!
Isso é só um sonho ruim.
Na hora em que acordar,
estarás longe de mim.
Mas já que estás presente,
quero ir até o fim."
Vi um anjo serafim
tocando sua trombeta.
Chegou pra perto de mim
então o Bode Perneta,
e já foi dizendo assim:
“Aperte a mão do Capeta!"
Cumprimentei Coisa Preta,
que então se transformou
em um distinto, elegante
- aristocrático senhor -
a debochar com ironia
da virtude e do amor:
- "Ora, me faça o favor!...
Pra que serve honestidade?
Me aponte um só dos ricos
que nunca agiu com maldade:
se quer viver na miséria
seja honesto de verdade!
E a infidelidade
é que salva o matrimônio:
pra ser feliz no amor
um pacto com o Demônio
é necessário fazer,
nada a ver com Sant'Antônio..."
No boteco, um pandemônio:
grasnava rasga-mortalha.
Uma briga entre os devassos
fez surgir uma navalha,
atiçando ainda mais
os impulsos da canalha.
- “Nossa Senhora me valha!,
Bom Ciço ou Frei Damião:
nunca mais na minha vida
quero brincar com o Cão!
Ai, como está demorando
essa alucinação..."
- "Onde boto a minha mão,
prospera, cresce a riqueza.
Sou patrono do sucesso,
e triste da realeza
que duvidar dos poderes
que tem o Deus da Baixeza!
Já degolei com firmeza
cabeças imperiais.
Mandei crucificar muitos
que se diziam imortais.
Fiz a turba da Judéia
optar por Barrabás.
Com sangue e com funerais
fiz muitas revoluções,
a cristãos e outros tolos
ministrei boas lições,
sempre dei aos bons poetas
as grandes inspirações.
Sou eu quem tenta os ladrões
e seduz todas as putas.
Provoco as controvérsias
que sempre acabam em lutas.
Implanto gula e luxúria
e o amor pelas disputas.
Só as almas mais astutas
é que na vida prosperam.
Aqueles que contra mim
praguejam e se desesperam,
não sabem que são mais meus
que os que em casa me esperam.
Felizes os que vieram
à Missa Negra do Cão!
Sabem-se almas perdidas,
não passaram a vida em vão:
a verdade está na guerra,
irmão matando outro irmão."
Nesse instante, no saguão,
numa bandeja de ouro,
uma cabeça de bode
- ao lado um ovo goro -
serviram à nossa mesa,
onde pousara um besouro.
- "A mosca do mau agouro
sempre é minha convidada."
- diz Ele, e: - "Não costumo
dividir minha noitada,
mas vou te dar um pedaço
da cabeça ensanguentada."
Eu provei da empreitada
e confesso que achei boa,
e disse assim para Ele:
- "Se és o Diabo em pessoa,
o que pode interessar-te
em um sujeitinho à toa?"
- "Contra ele mesmo caçoa,
alma minha, fraca e vil...
- Tu és, amigo, retrato
do povo do teu Brasil:
muito fácil de enganar,
basta ter um bom ardil.
Manda à puta que a pariu
a tua credulidade!
Insistes na esperança?
Ora, já não tens idade...
Quebra esse teu quietismo,
vai bagunçar a cidade!
Vais deixar minha maldade
só com a classe dominante?
Brasileiro pobre e triste
é o que serás doravante,
com seus políticos ladrões
e a tua Igreja pedante!
Pensas que a cada instante
não pagam tributo a mim
os poderosos de sempre,
a canalha, a classe ruim
que pegou a tua terra
e que a deixou assim?
Se queres comer capim
- rá, rá! - santa paciência!...
Agora tenho um encontro
com a nobre jurisprudência:
fica aí com teu pudor
e a tua pura inocência!"
Turvou-se-me a consciência
e logo caí no chão.
Acordei todo ensopado,
lambia-me um negro cão.
Ninguém mais via por perto
- tudo estava tão deserto
como a terra do sertão.
Agradeço Hilton que um poeta e filósofo destaque uma cria nossa que a mentes menores decerto pareceria repulsiva ou desaconselhável.
ResponderExcluirO início ficou muito bom, essa coisa de atestado de sanidade mental... Ha, Ha!
Grato pelas companhias nobres, matuto se encabula...
Aproveito pra dar o endereço do meu blog: antonioadrianomedeiros.blogspot.com
Mais uma vez agradeço a divulgação, sou nordestino semi-anônimo.
Abraço,
Antônio Adriano de Medeiros