quarta-feira, 7 de novembro de 2012

ANTÔNIO ADRIANO MEDEIROS: POEMA


 
 
UM ENCONTRO MUITO ESTRANHO


Para José N. Félix


Pretendia anexar
ao presente relatório
um atestado de saúde
que peguei no sanatório;
mas optei por guardá-lo
registrado em um cartório.

Não gosto de falatório
e abomino a mentira,
o boato e a fofoca
só me provocam à ira,
pois sempre digo a verdade,
mesmo aquela me fira.

Sei que o cara quando pira
sofre a alucinação,
porém essa experiência
para a qual peço atenção
foi tão real como é
a miséria da nação.

Próximo a uma estação
de trens, em noite chuvosa,
abriguei-me num boteco
de uma varanda espaçosa,
quando um velhote chegou
mancando em busca de prosa.

Uma brisa misteriosa
com ele o bar adentrou,
piscou um olho pra mim,
uma pinga encomendou,
e, sem ser meu convidado,
à minha mesa sentou.

Um sambinha assoviou:
- "Eu, na verdade
indiretamente sou culpado
da tua infelicidade..." -
e nesse exato momento
faltou luz pela cidade.

Rindo com sonoridade
diz: - "Assim está melhor:
a natureza da noite,
como quis o Criador,
deve ser escura e fria
- para o crime e o amor."

Achei aquele senhor
muito espirituoso
e um brinde à sua saúde
propus, mas ele, jocoso,
preferiu brindar à Morte,
com seu hálito sulfuroso.

E prosseguiu, misterioso:
- "Conheço seus pensamentos.
Há muito o espionamos
pelos Quatro Elementos.
Conheço todos seus planos
e sei dos seus sentimentos.

Sei que em alguns momentos
você perde a esperança,
mas vim propor-lhe negócios
de estrita confiança...
Antes, vou pedir um prato
qu’é pra gente encher a pança:

- Ô sêo garçom, sem lambança,
diga lá ao cozinheiro
que prepare uma cabeça
de bode pai-de-chiqueiro,
mas me traga, como entrada,
sangue do bode, primeiro."

"- Meu distinto cavalheiro"
- espantado, retruquei -
"e quais são esses negócios
que me vens propor, meu rei?
Se for coisa desonesta,
saiba que recusarei.

Drogas nunca trafiquei,
Nem nunca matei ninguém.
Jamais amigo, roubei
o que pertence a alguém,
e sempre, por toda vida,
procurei fazer o bem."

- “Ó meu querido neném,
bom rapaz, coração puro...
Tu não vales um vintém
na podridão dos monturos:
apodrecerás, meu bem,
um dia, por trás dos muros.

Eu ofereço, sem juros,
felicidade terrena:
glória, poder e riqueza,
e o prazer sempre em cena,
em troca de tua alma:
veja se não vale a pena!"

Lobo, chacal e hiena
uivaram na noite escura.
Trouxeram sangue de bode
misturado a rapadura.
No prato caíra morta
rechonchuda tanajura.

Quis brincar com a Criatura
que me fazia careta:
- “Valei-me, Nossa Senhora!,
que eu encontrei o Capeta!...
- Ora, vê se não amola,
pobre velhote perneta!

Me dizes ser Coisa Preta
sem dar a comprovação?
De seus poderes terríveis
quero uma demonstração:
que reine nesse boteco
agora a depravação!"

Nesse instante, no salão,
adentrou devasso bando,
a sorrir, a se abraçar,
e falar de contrabando.
Uma mulher ficou nua
sobre uma mesa, dançando.

Outras a foram imitando,
e alguns homens também.
Eram dez, ou vinte, ou trinta
- talvez fossem mais de cem -
e alguns nos convidavam
para ir dançar também.

- "Inda duvidas, meu bem,
que sou o Anjo Exilado?
Pois então passemos logo
a fazer nosso tratado:
já virei a ampulheta,
o jogo está começado.

Eu gritei: "Xô, desgraçado!
Isso é só um sonho ruim.
Na hora em que acordar,
estarás longe de mim.
Mas já que estás presente,
quero ir até o fim."

Vi um anjo serafim
tocando sua trombeta.
Chegou pra perto de mim
então o Bode Perneta,
e já foi dizendo assim:
“Aperte a mão do Capeta!"

Cumprimentei Coisa Preta,
que então se transformou
em um distinto, elegante
- aristocrático senhor -
a debochar com ironia
da virtude e do amor:

- "Ora, me faça o favor!...
Pra que serve honestidade?
Me aponte um só dos ricos
que nunca agiu com maldade:
se quer viver na miséria
seja honesto de verdade!

E a infidelidade
é que salva o matrimônio:
pra ser feliz no amor
um pacto com o Demônio
é necessário fazer,
nada a ver com Sant'Antônio..."

No boteco, um pandemônio:
grasnava rasga-mortalha.
Uma briga entre os devassos
fez surgir uma navalha,
atiçando ainda mais
os impulsos da canalha.

- “Nossa Senhora me valha!,
Bom Ciço ou Frei Damião:
nunca mais na minha vida
quero brincar com o Cão!
Ai, como está demorando
essa alucinação..."

- "Onde boto a minha mão,
prospera, cresce a riqueza.
Sou patrono do sucesso,
e triste da realeza
que duvidar dos poderes
que tem o Deus da Baixeza!

Já degolei com firmeza
cabeças imperiais.
Mandei crucificar muitos
que se diziam imortais.
Fiz a turba da Judéia
optar por Barrabás.

Com sangue e com funerais
fiz muitas revoluções,
a cristãos e outros tolos
ministrei boas lições,
sempre dei aos bons poetas
as grandes inspirações.

Sou eu quem tenta os ladrões
e seduz todas as putas.
Provoco as controvérsias
que sempre acabam em lutas.
Implanto gula e luxúria
e o amor pelas disputas.

Só as almas mais astutas
é que na vida prosperam.
Aqueles que contra mim
praguejam e se desesperam,
não sabem que são mais meus
que os que em casa me esperam.

Felizes os que vieram
à Missa Negra do Cão!
Sabem-se almas perdidas,
não passaram a vida em vão:
a verdade está na guerra,
irmão matando outro irmão."

Nesse instante, no saguão,
numa bandeja de ouro,
uma cabeça de bode
- ao lado um ovo goro -
serviram à nossa mesa,
onde pousara um besouro.

- "A mosca do mau agouro
sempre é minha convidada."
- diz Ele, e: - "Não costumo
dividir minha noitada,
mas vou te dar um pedaço
da cabeça ensanguentada."

Eu provei da empreitada
e confesso que achei boa,
e disse assim para Ele:
- "Se és o Diabo em pessoa,
o que pode interessar-te
em um sujeitinho à toa?"

- "Contra ele mesmo caçoa,
alma minha, fraca e vil...
- Tu és, amigo, retrato
do povo do teu Brasil:
muito fácil de enganar,
basta ter um bom ardil.

Manda à puta que a pariu
a tua credulidade!
Insistes na esperança?
Ora, já não tens idade...
Quebra esse teu quietismo,
vai bagunçar a cidade!

Vais deixar minha maldade
só com a classe dominante?
Brasileiro pobre e triste
é o que serás doravante,
com seus políticos ladrões
e a tua Igreja pedante!

Pensas que a cada instante
não pagam tributo a mim
os poderosos de sempre,
a canalha, a classe ruim
que pegou a tua terra
e que a deixou assim?

Se queres comer capim
- rá, rá! - santa paciência!...
Agora tenho um encontro
com a nobre jurisprudência:
fica aí com teu pudor
e a tua pura inocência!"

Turvou-se-me a consciência
e logo caí no chão.
Acordei todo ensopado,
lambia-me um negro cão.
Ninguém mais via por perto
- tudo estava tão deserto
como a terra do sertão.

Um comentário:

  1. Agradeço Hilton que um poeta e filósofo destaque uma cria nossa que a mentes menores decerto pareceria repulsiva ou desaconselhável.

    O início ficou muito bom, essa coisa de atestado de sanidade mental... Ha, Ha!

    Grato pelas companhias nobres, matuto se encabula...

    Aproveito pra dar o endereço do meu blog: antonioadrianomedeiros.blogspot.com

    Mais uma vez agradeço a divulgação, sou nordestino semi-anônimo.

    Abraço,
    Antônio Adriano de Medeiros

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